“A escuridão é barata”, diz-nos Dickens no “Conto de Natal”. A frase surge-lhe diante do miserabilismo de Ebenezer Scrooge, personagem tão avarento que poupa até nas velas, preferindo subir as amplas escadas que dão acesso ao seu escritório no mais profundo breu. E se à escuridão se chega solitariamente pelos mais diversos caminhos, o sentido que a ela leva denuncia sempre uma atitude radical. Como um cerco que se antecipa à vida e obra daqueles que tudo empenham, que às suas alucinações dão trela suficiente, e as vêem entrar no mundo, ganhar corpo, caminhar sobre a terra.
Na sua obra, Pedro Costa parece guiado por um intento sacrificial. Como um pintor que subtraísse a harmonia às composições. Com um sobrenatural ouvido para esses “sons agudos e palavras orantes” que, “cortadas pelo tutano”, raspam no mais fundo das existências, ele intui a canção dos desequilíbrios, o magma e esses ritmos tenebrosos que desatam a pulsar quando o contraste se acicata e se torna ameaçadora a disputa entre duas forças. Ali, o negro é a cor de um combate, de uma sufocante saturação. Há nele uma noite máxima alcançada uns passos além do mundo. Mas este limiar, este “fim dos fins” tem um preço elevado.
Um zumbido persiste em nós muito depois de nos termos disposto a perder e recuperar os sentidos diante da escuridão que, por estes dias, transformou o Museu de Serralves num outro lugar. “Pedro Costa: Companhia” é uma drástica elaboração expositiva que consegue transpor para um espaço de celebrações aquele corte transgressivo com que o cineasta nos confronta nos seus filmes. Como notou um crítico, ele “sabe muito bem que há uma cumplicidade criminosa entre a narrativa convencional e as representações historiográficas recheadas de heróis e momentos triunfais”. Ora, nesta mostra a recusa é a mesma, e não se fica pelo repúdio, mas constrói um espaço para ser percorrido por assombrações.
Pedro Costa surge-nos aqui como alguém que deixa a porta do seu quarto aberta. Uma intimidade repercutida por divisões, galerias, corredores e passagens, num desastre de beleza movendo-se, esquiva, entre sombras alterosas. Não se pode dizer que a exposição lhe seja dedicada, mas que este é um universo pessoalíssimo, regido por leis próprias, e que nos fornece um mapa das suas obsessões. Neste “quarto escuro onde tudo estremece tão de dentro” (Bénard da Costa), encontramos em diálogo, e como se nas vésperas de um crime, influências várias, ecos que tornam espesso o ar que se respira ali. São as obras de tantos artistas que parecem espiar-se entre épocas, colaborar, trocando cigarros e outras impressões.
Quando deparamos aqui com a última carta que o poeta Robert Desnos escreveu à mulher do campo de concentração de Flöha, a um ano da sua morte, não estamos diante de um documento nem dramático nem histórico, mas daquela hora, daquele furtivo e deslumbrante gesto amoroso, de alguém que, furiosamente alheado das suas circunstâncias, diz a quem ama que lhe queria oferecer “100 000 cigarros louros, doze vestidos de grandes costureiros, o apartamento da Rua de Seine, um automóvel, a casinha da mata de Campiègne, a de Belle-Isle e um raminho de flores de cinco tostões”. De quem se escapa ao mundo, e lhe sobrevive encorajando a mulher a sentir toda a presença da sua falta: “Na minha ausência, compra à mesma as flores, que eu tas pagarei. O resto, prometo-o para mais tarde. Mas, acima de tudo, bebe uma garrafa de bom vinho e pensa em mim.”
É um gesto em que se precipita fulgurantemente a sobrevivência de tantos mais homens, e uma carta que Pedro Costa tem reescrito, não só no filme “Juventude em Marcha” (2006), mas como quem colhe uma rosa negra de uma roseira de cinzas. É esse efeito de júbilo diante de um acto que transcende a própria história, e se torna capaz de inventar homens de novo, no que têm de comum desde que se encontram até ao último dos seus dias. E se, como o crítico Andy Rector frisou, um dos aspectos mais flagrantes na obra deste cineasta é a forma como, na sua prática de um território sitiado, acumula ressonâncias sociais e formais de filme para filme, sublinha ainda que o cineasta vê os seus filmes não como criações mas como encontros. “Estes filmes escrevem, e ousam escrever epicamente e para lá dos Limites sobre a vida, a morte, as verdadeiras ruínas, a guerra, o amor, o suicídio, a diplomacia, o colonialismo, a ficção, o imperialismo, o falhanço histórico, a velhice e a juventude.”
Esta exposição é, por isso, antes de mais um território sitiado, o espaço de deflagração onde as figuras, tanto dos filmes de Costa como dos de outros realizadores, de outras obras que o têm acompanhado, criam diante de nós o seu próprio mundo, pronunciando “trémulos diários à luz de velas”, e deixam-se ouvir enquanto “sujeitos e não objetos manipuláveis” – aqui, “são elas que delimitam a existência”, como escreveu António Guerreiro a propósito de “Juventude em Marcha”. “Não são função de outra coisa, não representam papéis, não são símbolos; são presenças expostas, corpos dotados de uma imanência política.”
Foi necessária uma grande reestruturação e remodelação, um plano desenhado em colaboração entre Pedro Costa e o arquitecto José Neves para dar curso a todos estes caminhos cruzados, às zonas onde se torna palpável a contaminação entre obras de Robert Bresson, Danièle Huillet, Jean-Marie Straub, Chantal Akerman, António Reis, Walker Evans, João Queiroz, John Ford, Jeff Wall, Jacques Tourneur, Maria Capelo, Andy Rector, Jean-Luc Godard, Max Beckmann, Paulo Nozolino, Jacob Riis, Rui Chafes e outros. A descoberta é um ir às apalpadelas, com a sensação “do Escuro a lamber-nos”. Aos poucos, vai ficando claro que a este encontro só poderemos chegar perdidos também.
A própria arquitetura, a disposição das obras, os espaços vazios atormentam o visitante, entre assombro e esplendor, não há harmonia nem consolo. Não há um padrão, mas resistências, saliências. Como disse Rector do já citado filme de Costa, é como se na preparação desta exposição se tivesse gasto um ano em cada elemento: “luz, composição, repérage, som, discurso, escansão, movimento, duração, construção narrativa, gesto épico, etc.” Vai-se acentuando a impressão de estarmos diante do produto de um inconsciente, e, a propósito do efeito de contracena entre todas as pessoas e obras convocadas para esta conversa até ao fim da noite, vale a pena citar Walter Benjamin: “Na estrutura deste mundo, o sonho faz abanar a individualidade como um dente podre”.
O labirinto cria uma dramaturgia em que, depois da inescrutabilidade inicial, as trevas e as luzes se contestam violentamente numa linha que quase podemos tocar. (“Deve haver um limite para além do qual a imagem estática, frontal, ascética, se torna insuportável e esse traço invisível, essa ferida, jamais poderemos deixar de a ver”, escreveu Pedro Costa certa vez a propósito de um filme de outro autor.) E damo-nos conta de como nenhuma das referências aqui surge em vão. Tudo faz parte da carne, do olhar, da respiração de um cineasta que consegue “estar em todo o lado, na sombra”. Vários níveis sensoriais correspondem a várias entradas no labirinto, e o tal zumbido com que dele saímos é como aquela lucidez com que acordamos no meio da noite, tomados de uma euforia ou de um súbito terror próprios desses instantes em que nem abandonámos inteiramente o sonho, nem estamos já cingidos pela realidade, e tivéssemos não cinco, mas sete ou oito sentidos.
Descrever alguns dos passos seria aqui inglório quando a atmosfera não é menos responsável pelo estado febril de que somos acometidos diante dos rostos marcantes de Ventura, de Vanda e outros, da força com que se é olhado à margem da vida, num balanço para a morte. E há os excertos de filmes, esses fragmentos, restos de palavras, gestos e ações que se repetem, criando fantasmas. O cinema tanto enche uma tela e se nos impõe fiel à ideia de que “a imagem só tem uma salvação: tornar-se criadora ou destruidora” (Pedro Costa), como quase nos segreda a partir dos televisores encastrados nas paredes, ficando claro que o tempo não mede outra coisa que não a si mesmo, e que certas fitas, realizadas há muitas décadas, readquirem a intensidade da sua surpresa quando o escuro nos conduz a elas lembrando que “a realidade é concebida ao mesmo tempo que o olhar” (Philippe Blon).
Esta terrífica exposição vai, por isso, muito além de uma exploração da estética e das influências que saem e voltam ao escuro da obra do cineasta português. Há algo nela que se nos propõe como um destino, um abrigo e uma forja, como uma razão para nos deixarmos consumir pela escuridão, e sermos feridos pela sua tensão, quando nos deixamos ver e tocar por esses seres famintos de que a luz nos protege.