Sou de Vila Franca de Xira, gosto de touradas e nunca deixarei de ter os seres humanos em patamares acima dos restantes seres vivos. Isso não faz de mim um empedernido bárbaro das cavernas, desprovido de senso e exalando um fervoroso desprezo pela natureza e pelos seres vivos. Mas nunca deixarei de respeitar os outros por expressões de personalidade, de gosto ou do exercício dos direitos, liberdades e garantias de modo diverso daqueles que são os meus. Não é o que acontece com muitos dos civilizados que se ajuntam à porta das praças de toiros para insultar outros cidadãos ou perturbar espetáculos devidamente autorizados pelas autoridades.
Houve um tempo em que se instrumentalizavam as pessoas e as circunstâncias para fins políticos.
Houve um tempo em que se instrumentalizavam as “coisas” para os fins políticos dos humanos.
Há um tempo em que, tendo os animais saído da tipificação como “coisas” no Código Civil, se instrumentalizam as pessoas, os animais e as circunstâncias para fins políticos.
É o tempo em que a alegada civilização convive bem com o pior que as mais arcaicas formas de fazer política tem, em que a selvajaria dos fins justificarem os meios, as meias-verdades, as mentiras, as opacidades, as incoerências ou as faltas de senso parecem medrar no perfil do exercício político.
É um tempo que se desafia a si mesmo, não pela singularidade das soluções políticas, por arresto negativo ou foco minimalista nas dimensões positivas, mas pela inconsistência das respostas, pela insustentabilidade das opções políticas e pela incapacidade de gerar uma ideia sólida para o futuro do país.
Como na pega em meio tauromáquico, deveria haver sempre alguém que enfrentava o touro pelos cornos, alguns ajudas que complementariam o exercício de coragem do primeiro forcado atenuando o impacto da força estrutural do animal e depois, no final, brilhava o rabejador, em círculos mais ou menos intensos em função da bravura do bicho, mas o plano pseudo-civilizacional atual é outro.
Quem devia pegar no toiro pelos cornos prefere fazer de rabejador, para nos entreter no final da lide, em manobras inconsequentes e meramente lúdicas. Em círculos, não hesita em invocar valores e princípios que a prática anterior, atual e futura tratará de contrariar se as circunstâncias políticas o impuserem. Para o rabejador civilizado, os fins justificam os meios, espera-se que a memória dos portugueses seja curta e o escrutínio esteja em registo de serviços mínimos. O rabejador civilizado pode até contar com toda a sorte da lide e poder continuar a ter condições para entreter o público em praça, mas haverá sempre um momento em que perceberá que o exercício civilizacional é não pactuar com o uso indevido dos recursos públicos, seja nos serviços diretamente tutelados ou noutras expressões da economia e da sociedade, da criação de emprego à modernização das respostas que o Estado deve concretizar com os cidadãos no centro da organização.
Civilizacional é ser tolerante, não fomentar uma estratégia de divisão dos portugueses só porque é preciso conquistar um voto parlamentar, arfar um sopro de alegada modernidade vegan ou simplesmente tentar distrair os portugueses com o acessório, quando persistem gritantes problemas na saúde, na educação, na coesão territorial e na igualdade de oportunidades.
Bárbaro é anunciar o fim da austeridade para depois concretizar uma insustentável modelação exaurida dos serviços do Estado que contraria o enunciado, nos termos, na extensão e no prazo.
Bárbaro é permitir que para o exercício de funções públicas seja invocada a ética, os valores e princípios de um Estado de Direito e a exigência republicana para depois conviver bem com banhadas de ética à esquerda e à direita, nebulosas fronteiras entre os negócios e a política e uma generalizada tolerância com os incumprimentos. É que, quando se ataca a liderança de Rui Rio pelas sucessivas trapalhadas, importa não esquecer que, em julho de 2015, o PS aprovou e submeteu aos candidatos a Deputados um Compromisso Ético em que, sob compromisso de honra, os deputados dariam “prioridade ao exercício do seu mandato, só o podendo suspender para o exercício de funções governativas ou de cargos que decorram de escolha ou eleições em representação do PS”.
Estando claro que a polémica da tourada é mais para distrair do que para ser levada a sério. É sério que se assistam a avanços civilizacionais simbólicos e reais em vários nichos do mercado eleitoral, mas se constatem com facilidade graves retrocessos civilizacionais em áreas que dizem respeito a muitos portugueses, além das zonas urbanas. E bem pode o Bloco de Esquerda no ataque de ansiedade em rota para a governação brandir Portugal como país desigual, enquanto olha para cima, quando tem promovido diversas desigualdades interpares. Ou favorecer nichos eleitorais não se pode constituir em desigualdade perante a generalidade da população?
O problema é que sem pega, sem primeiro forcado e as ajudas, nem sequer se chega ao rabejador, mas há quem persista em querer ser rabejador e logo civilizado, para entreter.
Uma vez mais, só contam os fins.
NOTAS FINAIS
CORTESIAS O Bloco de Esquerda abandonou a cafeína reivindicativa, acutilante e consequente. Agora não passa de um cappuccino. Muita espuma e pouco café. Para tentar o governo, já nem a Europa é obstáculo. É um Capuccino de Esquerda.
LIDE Um Estado de Direito minimamente exigente não se devia resignar perante os profusos exemplos de deficiente funcionamento do sistema judicial e da articulação deste com outros poderes para configurar respostas indignas de uma Democracia com mais de quatro décadas de existência.
PEGA Em Portugal há demasiadas quintinhas. Quintais em que cada um procura preservar como reduto da sua autoridade, direitos ou privilégios. A emergência aérea na Grande Lisboa sublinhou os riscos destas infraestruturas em meio urbano, a indisponibilidade do Montijo e a resposta do Aeroporto de Beja.
Escreve à quinta-feira