13 de novembro de 1970. “Amália, quem é você?” “Ninguém!”

13 de novembro de 1970. “Amália, quem é você?” “Ninguém!”


A seguir ao “Telejornal”, Amália Rodrigues deu uma grande entrevista a José Mensurado. Eram tempos nos quais ainda se fumava em direto. E a fadista dizia coisas com o à-vontade de quem pensava tanto na morte como o Romeiro do “Frei Luís de Sousa”. Mário Castrim foi assassino! 


Maria de Fátima gostava de fados tristes. Fados chorados. A cada letra, uma desgraça. Nessa noite lamentou ter saudades da saudade.

“Cansada de ter saudade/ Tudo fiz para esquecer/ E hoje tenho saudade/ De saudade já não ter”.

A malta gostou. Maria de Fátima Bravo tinha um público fiel. Lá nisso, não havia que chorar. 

“Sem força p’ra suportar/ A minha fatalidade/ Ajoelhei a rezar/ Cansada de ter saudade”.

Amália diria no fim da sessão: “O fadista é fatalista e pessimista!”

E quando Amália falava de fado, estava falado. Antes das “Saudades da Saudade” houve o romântico encontro do cantador Henrique Manuel com uma saloia.

“Tão portuguesa de lei/ Que eu, com franqueza, não sei/ Se há outra saloia assim”.

Ah! Tanto portuguesismo também rimava com fatalismo. Mas aqui não medrou o pessimismo.

“Tu és a mais linda joia És a joia dos amores/ Anda cá linda saloia/ Põe a trouxa na tipoia Que eu vou-te levar a Loures”.

Amores perdidos por entre o perfume das madressilvas.

“Essa saloia que tem/ Um rosto formoso de anjo/ Mas gostava de saber/ Como é possível haver/ Anjos de trouxa à cabeça?”

Misturava-se o bucolismo com a desgraça. E esperava-se pela Amália. A Amália soube sempre fazer-se esperar. Pelo meio, os espetadores tiveram direito a um bocado de futebol. Ou melhor: “Foste ao Futebol Sem Mim”. Era do “Tarzan do 5.o Esquerdo”, gravado em 1958.

E mais saudades, sempre saudades. O fado não vive sem saudades.

“Vocês sabem lá/ A saudade de alguém que está perto/ A mais, é pior/ Do que a sede que dá no deserto/ É chama/ Que a vida ateia sem dó/ Na alma da gente ao sentir/ Que vive só…”

Isto era tudo na televisão.

A televisão era já a companhia preferida das noites dos portugueses.

E Amália dava uma entrevista a José Mensurado. 

Mário Castrim, o guru dos críticos televisivos, não gostava de José Mensurado. Coisas de política, dizia-se. A verdade é que Castrim vinha de lá com a vara da caneta e malhava a esmo no Mensurado, sem piedade, que é também sentimento afadistado. No dia seguinte lia-se: “Aconteceu Amália! Aconteceu Amália apesar do pesadelo de uma entrevista canastrão, imprópria para um jornal manuscrito de escola, quanto mais para uma noite televisiva. Mensurado refugiou-se no convencionalismo mais banal, para já não falar das ocasiões em que interrompeu Amália, a pretexto de dar uma ajuda que não ajudava nada, antes complicava tudo. Até contra isso Amália lutou – e venceu!”

A prosa de Mário Castrim era elegante, mesmo quando assassina. Penetrava na carne como punhais afiados.

“Sabemos quando as pessoas são naturais a sério ou quando são naturais a representar. Importa antes falar dessa subtil arte de conversar que, por diversas vezes já, Amália conseguiu demonstrar que possui no mais elevado grau. Ao falar da ciganada que era a vida no lar paterno, ficamos a pensar em quem seria o Pigmaleão que deu a esta gata borralheira a arte de bem dizer as palavras portuguesas numa sabedoria que só muito raramente se encontra.”

Entretanto, as orelhas de José Mensurado ferviam.

A tímida Amália protagonizava uma certa timidez nos seus momentos de exposição em entrevistas. “Às vezes sou tão preguiçosa a falar que digo coisas que não quero dizer.” Uma certa malandragem na desculpa. E atirava, coquete: “Não sei pensar. É uma coisa que todos fazem e só não faz quem quer.” Ah! Senhora Dona Amália, não diga isso…

Em 1970 fumava-se em direto. Até se fumava nos telejornais, para auxiliar o desenrolar das notícias. 

E Castrim sentenciava: “Esta mulher que diz não saber pensar atingiu um elevado estádio de sabedoria – aquele que nos leva à convicção de que somos mais do que uma centelha efémera, somos própria eternidade no preciso instante em que fitamos com bonomia, quase com perdão, o tão quase nada de vida que nós somos.”

O fado entrou na eternidade. Amália também. Nessa noite não cantou. Falou para todos os que quiseram vê-la na pantalha.

Maria de Fátima cantou: “Vocês sabem lá/ Que tormento é viver sem esperança/ É ter coração/ Coração que nem dorme, nem cansa/ Não há maior dor nem viver mais cruel/ Que sentir o amargo do fel/ Em vez de mel/ Vocês sabem lá…”

Está claro que Amália Rodrigues sabia. Falava do tempo e do galope do tempo. Dos anos que passavam por ela à velocidade que só os anos conhecem. Não tinha medo das rugas. Não tinha medo da velhice. Não tinha medo da morte.

“Não tenho paciência para ouvir os meus discos antigos”, confessou. “Perdi qualidades, mas ganhei outras. Sou uma pessoa a quem a vida tratou bem. Perdi frescura, mas ganhei riqueza interior.”

Amália falava, Portugal ouvia.

Mário Castrim escrevia, de longada: “Muito, muito antes de abrir o programa com Amália, logo a seguir ao Telejornal, aconteceu uma nova rubrica na televisão portuguesa. Ficará incluída na TV Juvenil e será conhecida por Conversas Diversas. Ficará à conta de Maria Alberta Meneres. Ontem foi só a apresentação. Pelo tom que Maria Alberta imprimiu à conversa, pelos temas abordados, pelos desenhos do cenário, tudo parecia inculcar estarmos mais na presença de uma rubrica mais infantil do que juvenil. Causará uma certa impressão ver, no mesmo programa, o Joaquim Magalhães falar do Guimarães Rosa e ver a Maria Alberta Meneres contar historietazinhas de botões de rosa do tempo em que era pequenina.”

Castrim era mesmo assim: impiedoso.

Amália sorria no ecrã. Mensurado despedia-se com as orelhas a arder, tanto como as orelhas de Maria Alberta Meneres.

Maria de Fátima cantava Amália: “Porque será que tudo me castiga?/ O que será que eu canto esta toada, esta cantiga/ Que a experiência da vida me ensinou/ Foi ontem, como hoje/ E sempre e sempre o que há de vir/ Oh Deus, olha por mim/ Quero dormir”.

Dormiu e Deus olhou…