“Nas terras mortas, onde não há pão, os pobres nascem pobres, os ricos nascem ricos, os pobres morrem pobres, os ricos morrem ricos”, e por aí irá até que alguma coisa mude. Provavelmente nunca. À espera de nada se vive então neste Alentejo que Sérgio Tréfaut descreve apenas como Sul de Portugal, na década de 1950. A partir de “Seara de Vento”, de Manuel da Fonseca, no filme que poderia ter sido “O Pão” mas que saiu “Raiva” só. Difícil que sobre espaço para mais do que isso para eles, os pobres. Como estas três mulheres (Isabel Ruth, Leonor Silveira e Rita Cabaço, na sua primeira aparição no cinema) de preto, sempre, na soleira da porta de um monte no meio de nada.
Nesse Alentejo da década de 50, que poderia ser o Alentejo da década de 30, quando ocorreram na verdade os factos que Manuel da Fonseca transpôs para a época em que escreveu o seu romance, 20 anos depois, não há espaço para o romantismo. “Havia uma dimensão romântica no ‘Seara de Vento’ da qual eu me tinha afastado e pensei em ‘O Pão’, mas havia aí ainda um resto de romantismo soviético ou uma idolatria da beleza do povo. Um morto é um morto. Sofrimento é sofrimento. Viver mal é viver mal, não inventem romantismos à volta disso. Preferi falar da revolta e por isso o filme ficou ‘Raiva’. Sem romantismos.”
Foi logo da primeira vez que o realizador leu a obra de Manuel da Fonseca, com quem o seu pai, alentejano, tinha convivido, que decidiu que dele faria um filme com Isabel Ruth no papel de Amanda Carrusca. “Foi esse o ponto de partida”, recorda ao i. “Apaixonei-me pelo livro, é um grande romance e tem um potencial cinematográfico evidente. O próprio Manuel da Fonseca foi convidado duas vezes, primeiro por espanhóis e depois por americanos, para adaptá-lo ao cinema. Porque parece um western nalgumas coisas, noutras tem também uma dimensão meio épica, de conflitos sociais evidentes. Mas contrariamente aos romances neorrealistas, em que habitualmente o herói envereda por um caminho militante, político, de transformação da sociedade, neste caso temos um solitário que claramente não quer ir por esse caminho, que quer tentar encontrar uma solução visceral própria.”
O herói à procura do seu caminho é Palma. Palma contra o grande senhor, contra Elias Sobral (Diogo Dória), e Palma é Hugo Bentes, personagem que é real, não é ficção, naquele cartaz de “Alentejo, Alentejo”, documentário de 2014. E tudo certo. Para “Seara de Vento”, obra incontornável do neorrealismo português publicada em 1958, Manuel da Fonseca inspirara-se na história trágica de um camponês que na década de 1930 foi injustamente acusado de roubar cereais a um agricultor. Desempregado, Palma vê no contrabando a solução para acabar com a fome da sua família, oprimida como eram os pobres, sempre pobres, pelos ricos, sempre ricos.
“O que conta aqui é esta relação de poder, um ciclo de poder onde quem tem a propriedade das terras – no fundo, quem tem o dinheiro – manda na política, manda na igreja, manda na polícia e, no Brasil dos dias de hoje, mandaria também na justiça. É mais ou menos a mesma coisa”, analisa o realizador num paralelismo com o momento político que atravessa o Brasil, onde nasceu e onde o filme foi estreou também na Mostra de São Paulo em semana de eleições. “Portanto esse círculo de alguma maneira vicioso, esse arquétipo de sociedade é válido nos anos 30, nos anos 50, hoje ou há 200 anos. Reescreve-se da mesma maneira que o Chico Buarque nos anos 80 adapta a ‘Ópera dos Três Vinténs’ do Brecht dos anos 30, que por sua vez adaptara a ‘Beggar’s Opera’ do John Gay de 1700 e qualquer coisa. Contam a mesma história para qualquer tempo. O tipo de relações é o mesmo.”
No caso da história de Palma e da sua família, Tréfaut manteve-a no tempo em que Manuel da Fonseca a contou. Nos anos 50, numa homenagem também ao realizador. Mas tentar localizá-la duas décadas para trás ou para a frente será, como já se viu, exercício de pouca importância. Relevante, sim, é que ela se tenha mantido lá atrás, num lugar que precisará de legenda para se identificar como Portugal. No tempo em que o país era a preto e branco. “Em Portugal, a história da transformação das classes sociais e de as pessoas mudarem de vida passou sempre por sair do país, passou pela emigração. Foi o caso do Alentejo também: as pessoas que não queriam morrer à fome vinham para Lisboa ou para a cintura industrial de Lisboa para começarem a trabalhar.”
E não dava para seguir um caminho que não fosse o do preto e branco, explica o realizador: “Há um cinema contemporâneo que quer adaptar tudo para os dias de hoje. Eu acho que é importante também contar um pouco do que foi um Alentejo que durou séculos em Portugal e de uma realidade social que durou séculos e que continua. E sem querer ser moderninho, sem querer dizer ‘somos todos iguais neste momento’.”
Daí que, há cinco anos, quando escreveu a primeira versão do argumento de um filme que não tinha o título final ainda, Sérgio Tréfaut tenha escrito, antes de qualquer outra coisa: “A imagem é a preto e branco”. Aqui porque corresponde à “busca de uma verdade”. Mas chegaram a fazer-se testes para um “Raiva” a cores. “Era tudo falso. Tudo mentira. Aquele monte, que foi construído para o filme, filmado a cores parecia-me um cenário de publicidade de chocolates ou de iogurtes. O Alentejo filmado a cores parecia uma publicidade do Azeite Galo e há toda uma estética da falsidade que é utilizada para o retrato do Alentejo em telenovela. Eu não queria estar nessa mentira. Além disso, muitas reconstituições históricas são feitas com as pessoas trajando o que é o típico traje da reconstituição histórica, os figurantes com uma roupa cheirando a naftalina, e eu não queria isso. Queria chegar próximo de uma verdade que é a do Manuel da Fonseca e de uma sensibilidade que foi a dele, portanto fui para o preto e branco que acho que é muito mais fiel ao que poderão ter sido os anos 50 do ponto de vista da cabeça das pessoas.”
E é verdade que é a preto e branco que continua o país desse tempo no imaginário coletivo português. Assim o descreviam os que chegavam de fora, das ex-colónias, mesmo 20 anos depois, e assim o recorda o realizador, ele próprio chegado a Lisboa do Brasil, onde nasceu, no pós-25 de Abril. “Tinha nove anos quando cheguei a Portugal pela primeira vez, em 1974. Apesar da sensação de felicidade expressa pelas pessoas e do clima de euforia pós-revolucionário a sensação que tive era a de um país a preto e branco.”