Não haverá mais dolorosa conclusão e nem tão simples quanto o incontornável facto de, muito possivelmente, nalgum futuro mais ou menos próximo, aquele livro de poemas que acabará por marcar gerações, depois de ter feito o seu longo caminho, a sua via crucis até ser reconhecido como uma verdadeira obra-prima, ter tido na sua primeira edição, em 2018 (ou no ano anterior ou no que vem), uma tiragem de uns meros 100 exemplares. E de isso ter bastado. Ter-se mostrado suficiente para a atenção que um bom, até mesmo um excelente livro de poesia merece dos leitores nos nossos dias.
Não que as coisas tenham alguma vez sido muito diferentes, há algumas décadas ou no séc. xix. Mas ainda se imprimiam uns 300, nalguns casos 500 exemplares de obras que afetaram o curso da literatura. Simplesmente, dentro de mais umas décadas, talvez um século, se houver vida inteligente que possa obter um reflexo da face de um poema escrito por estes dias, terá de ser uma experiência assombrosa ter na mão um dos cem originalmente impressos. E, desses cem, quantos se terão entretanto perdido para sempre? Por incúria, também porque os papéis, hoje, têm na sua composição uma série de químicos e irão resistir menos, consumir menos vidas, contar a passagem de menos gerações.
Também se pode argumentar que talvez seja justo que se percam obras fenomenais por falta desses leitores que se transformam em "prosélitos fanáticos que não descansam enquanto não partilharem com outros a sua singular emoção" (Julien Gracq). É o olvido que, tal como o silêncio, muitas vezes nem aguarda que o leitor feche o livro, o deixe como um morto de lado, como esses empregados de um triste café de província que voltam as cadeiras sobre as mesas, convidando o último cliente a abandonar o seu lugar ainda antes da hora de encerramento. O leitor de poesia é hoje esse último cliente, demorando-se a beber o seu copo, vendo as pedras de gelo desfazer-se… Sai quase enxotado. E isto faz-nos pensar que, como em qualquer fim de mundo, é provável que o mundo acabe um dia destes não com um estrondo nem entre lágrimas e soluços, mas um pouco antes da hora marcada. Com um empregado nervoso apressando-nos, retirando o copo em que contemplámos pela última vez a hipótese de uma morte mais digna do que essa de se acabar escorraçado.
O livro que teve apenas cem exemplares é "A outra voz", de Antônio Moura. Saiu em agosto, com selo da Editora Patuá, e sendo uma reunião sólida de 66 poemas, não me atreveria a lançar sobre ela o peso de ter de afetar de alguma maneira o curso da literatura ou da poesia. De resto, este poeta nascido em Belém do Pará, em 1963, que viveu por uma temporada em Lisboa e que ganha a vida como publicitário, tem aqui apenas o seu quinto livro, e alegra-se pelo facto de a poesia não ter mercado, não estar sujeita às suas leis. "É uma das últimas coisas livres no mundo, quem sabe a última", disse há uns anos numa entrevista. "E do ponto de vista ontológico, a poesia é uma das mais belas descobertas do mundo. Do ser e do mundo, interior e exterior. Do vir a ser, do devir.
É também um vislumbre, uma fresta para o maravilhoso. Do eterno jogo do efémero com o eterno."
Espreitando o copo que este poeta bebe lá, voltado sobre si, escutando a sua balada, podíamos começar pelos versos que nos mostram os dentes a mais que há no exotismo deste poeta paraense que assim nos fala "Do fundo do coração": "Do fundo do coração/ – úmido chão escuro-musgo –/ brotam mandrágoras carnívoras// – ágora suja/ onde vêm dormir/ ao relento/ os mendigos da alma (…) Do fundo do coração/ – depósito de lixo –/ nada sai de límpido/ – fonte entupida de resíduos/ dos dias/ idos/ dos olhares/ dos mortos e dos vivos// De lá não sobe a labareda do espírito, mas/ uma nuvem de mosquitos/ – cisterna de água parada/ que a mão da infanta/ descuidada/ destampa"…
O poema prossegue, e o que aqui logo se perde é o seu desenho na página, a forma como se dispersa, indiciando a profusão de sentidos. É que Moura é o praticante de uma concisão drástica em que os versos lembram grades por entre as quais se vislumbram cenas, figuras e expressões que passam do folclore à mitologia com uma exuberância selvagem. A sua pesquisa consegue elaborar na linguagem que usa materiais de uma diversidade fabulosa e que lembra uma amálgama de achados feitos por um biólogo e um antropólogo em territórios virgens, em regiões onde o sentido está coberto pelos órgãos e os músculos de uma natureza entre o vegetal e o animal, com tanto de monstruoso como de belo: "A urina perde-se no mar, esquecida/ O mar e o céu, o mar e o seu/ eterno rancor contra a carne/ sem escudos /¾ crivada de setas ¾/ a cada vento movendo a data/ moendo as noites, as sete chagas/ do calendário seteno/ de mais uma semana a ir/ manar-se à morte/ ante o mar/ o sempre insone/ que agora invocas/ para ter como resposta/ o monstruoso rosnado/ (multilhões de aqua-/ leões verdejubados)/ e aí calar"… – versos de um poema sem título que integra uma anterior recolha poética do autor.
Há sempre um trabalho que leva em conta a dimensão visual dos poemas, estes enchem-nos a vista, e lemos neles o seu desafio entre "pureza e perigo", num livro que se organiza em quatro partes – O jardim da ilusão, Personae, Arqueologia barroca e A outra voz – que não são estanques, antes extravasam num retrato entre a brandura e a convulsão, com um estilo que vive de mestiçagens e que nos devolve a língua enlouquecida pelo mundo.
Como notou Claudio Daniel num texto a propósito desta poesia, torna-se útil recordar aqui os conceitos da poeta e ensaísta portuguesa Ana Hatherly sobre a "reinvenção da escrita" e a "reinvenção da leitura’, uma vez que "o leitor é convidado a percorrer vários caminhos possíveis para a leitura, fruição e interpretação dos textos poéticos". Cada sinal que se ofereça à interpretação é tomado como recurso, aproveitado como impulso, e as páginas amarelecem com a leitura, ganham a iridescência de estranhos fungos, e em momentos tornam-se as de um diário recolhido em tantas viagens, e somos expostos a um bestiário que alguém que não esteja familiarizado com a fauna da região Norte do Brasil terá dificuldade em perceber se são criaturas que se destacam das origens amazónicas do poeta ou do seu imaginário fortalecido por aquele "lugar caudaloso, de enormes rios" e "uma floresta gigantesca, muito sol e muita chuva ao mesmo tempo", como o descreveu Moura. A receita, no fim, é tudo menos simples: "Um tanto de mentira, um quanto de verdade, assim/ vai se erguendo o mito, teia entretecida com os fios// da vida e da irrealidade, boca a boca, ouvido a ouvido/ e algumas manchas de escrito, assim vai-se fazendo// do finito, infinito – uma palavra e um caminho que/ sem se salvar do tempo consegue escapar do olvido, vida// e arte entrelaçadas em grandes travessias de oceanos,// pequenos barcos por furos dentro das matas, algumas/ visões extraordinárias, muito de banal e cotidiano, e/ no meio da vegetação emaranhada, no centro da clareira// borbulha o caldeirão da feiticeira, o aroma do amor, suas/ especiarias misturadas ao odor azedo da dor – gordura fria// e fundidos no ar o olor das flores e o odor das fezes (…)".
Aquele "país-continente" que teimamos em desconhecer, unindo as pontas e perdendo o interior, é uma hipótese que se abre há muito a um enriquecimento desta língua que ganhou usos de que, deste lado do Atlântico, tantas vezes nem suspeitamos. E esse outro mundo que tanto nos fascina quando assusta e até repugna não diz nem a metade do trabalho de um poeta que, se aprendeu aquele mimetismo que se inspira na natureza, não se fica pela superfície, mas, como ensinava Klee, toma o fôlego da sua criatividade e mostra-se capaz de rivalizar com ela na criação de novas formas e novos seres. Se o paraíso numa hora aparece "perdido escondido a céu aberto", noutra é o modo como, "pela fenda da fruta/ o verão enfia/ a sua espada/ rubra". Mas se entende a poesia como "uma forma de existência em diálogo com a existência cósmica", Moura não deixa também de dialogar com outras vozes, outros poetas, e presta-lhes homenagem, e tem estes versos para Gérard de Nerval: "rosa que se abre e sopra seu vapor doente/ e inflama a carnívora corola da loucura,/ flora que devora os colibris do pensamento,/ anjos que tentam inúteis por um momento/ conter a noite branca e negra do precipício,/ a flor demoníaca que brota nos ouvidos". Ou estes, para Jane Austen: "Quanto mais velha uma pessoa fica/ mais o tempo parece querer devorá-la,// se cai, o passar dos anos não param/ para esperá-la tentar reerguer-se e// daí encenar uma nova caminhada/ A esta altura da estrada – espantalho// em meio à plantação, braços abertos/ ao sol, à chuva e aos corvos da memória,// ainda vês à frente um horizonte – arte,/ caminho que se abre para toda parte".