Mais de um milhão de carateres. É verdade. Em três anos e meio, estive em contacto semanal convosco e “massacrei-vos” com muita informação e, espero, alguns saberes. Partilhei experiências, comentei factos e tentei, de alguma forma, interessar-vos por temas e situações.
Os assuntos terão sido mais ou menos interessantes conforme o gosto dos leitores, mas como não consigo deixar de ser incisivo e entusiástico naquilo que faço e na forma como defendo as minhas ideias, porventura alguém se terá ofendido com o que escrevi – se foi o caso, desde já as minhas desculpas, que não foi com intenção.
Todavia, tudo tem um fim e há alturas para o reconhecer. Hoje, este cão deixa de passear por aqui. Que não se infiram já grandes razões… não se passou nada, nem comigo, nem com o meu cão, nem na excelente relação que sempre tive com o i e com a sua direção e redatores, revisores e equipa.
Este cão passeou com toda a liberdade, sem trela, sem qualquer laivo de censura, sem uma palavra sequer de orientação: apenas elogios, liberdade, apoio e este espaço de cerca de 6500 carateres, com o privilégio de uma página ímpar com fotografia a cores. “Um luxo!”, diriam as professoras da BBC do curso de Comunicação e Saúde que fiz há umas décadas. No entanto, há um momento em que temos a sensação de estarmos a fartar os leitores e, porventura, de estarmos “fartos de nos ouvirmos a nós próprios” – e esse é o único motivo que faz o cão deixar de passear por aqui, mesmo com o incentivo que tive do Vítor Rainho para continuar.
A dada altura, há uns anos, decidi fechar a caixa de comentários porque, se apanho os cocós do meu cão real, não queria que esta coluna fosse, na versão on-line, uma cloaca a céu aberto, não havendo um saco suficientemente grande para apanhar toda a porcaria que aqui era colocada; aliás, achei graça, ao rever alguns artigos de há anos, por constatar que as ofensas eram mais dos comentadores para outros comentadores do que propriamente para mim. No entanto, mesmo isso não tolero, porque fica abaixo do que considero “civilidade”. E o cão exige respeito, tolerância e educação… ou educacão!
Outro aspeto que gostaria de frisar, mesmo que ad latere, é que, ao contrário do que alguns pensam e outros verbalizaram, este cão passeou sempre pro bono, ou seja, fê-lo pelo gozo de escrever um milhão de carateres e quase 200 artigos em três anos e meio sem nada receber em troca, a não ser a amizade da equipa do i.
Em 2019, eu e o cão talvez voltemos a andar aqui, num formato diferente, com uma regularidade diversa e com outros assuntos, mas não quero antecipar o que pode ser uma surpresa.
Queria, portanto, despedir-me de todos os leitores e espero que de alguma coisa tenha servido – a mim deu-me gozo e alegria, mesmo que com muito trabalho e alguns sufocos quando a Margarida me mandava um mail in extremis porque me tinha esquecido de enviar o artigo… mas o cão chegou sempre ao destino, ininterruptamente, inclusive dos cuidados intensivos de Santa Marta, no dia 12 de dezembro do ano passado.
Não queria terminar sem referir que estou muito apreensivo com o que se está a passar no mundo. Tive a oportunidade de, há uns tempos, visitar a exposição sobre a ascensão do nazismo em Munique. Trata-se de uma mostra que conta como Hitler ascendeu, de 1918 a 1939. O chamado “pré-guerra”. O que se vê, a forma sinuosa de atingir o poder, a maneira como a democracia claudicou e se deixou aprisionar, o populismo que obnubilou as escolhas, a falta de empatia das massas ululantes, o colocar peça sobre peça ao erigir o nazismo, meticulosamente, com experimentações e sabendo claramente o que se fazia, deixaram–me estupefacto: não por ver ali, na realidade, o que já tinha visto em filmes como o “Ovo da Serpente”, de Ingmar Bergman, ou “Cabaret”, de Bob Fosse, mas por assinalar tantas e tantas semelhanças com o que se está a passar hoje em tantos e tantos países… e por isso quero tirar o chapéu a Angela Merkel, personagem que a dada altura execrei (muito à custa do inefável Herr Schäuble), mas que, quanto a este aspeto, tem estado acima da maioria dos chefes de Estado e de governo do mundo.
Termino com duas fotografias: a da minha cadela, a Tenrinha, que passeia comigo e que me inspirou para o nosso passeio convosco aqui, às terças-feiras, e o Leon, um cão eslovaco, pertencente a Janko, um sem-abrigo que conheci, com quem tive longas conversas e de quem fiquei amigo. Duas realidades. Dois percursos de vida dos donos. Dois cães, cada um com a sua história – a Tenrinha também foi abandonada e só depois resgatada, foi atacada e ferida… mas teve sorte de encontrar uma casa e ter comida e paz. O Leon, espero que a tenha porque, se a tiver, quer dizer que o seu dono Janko também a terá. Merece tanto como eu. Se algum dos leitores passar no Glockenspiel, ao lado do Museu do Brinquedo, por baixo das arcadas, mesmo em Marienplatz, talvez os vejam. Se sim, deem-lhes um abraço da minha parte. Somos todos refugiados, até mesmo de nós, da nossa angústia existencial, das nossas desilusões e tristezas, e até da nossa parte menos humana.
Obrigado e até sempre!
Pediatra
Escreve à terça-feira