Em 1817, a jovem Mary Shelley escrevia aquele que foi considerado o primeiro romance de ficção científica: Franken-stein. O livro contava a história de um ser, construído a partir da junção de órgãos de cadáveres humanos, a quem era transmitida a centelha da vida. Talvez não tenha sido a visão de Mary Shelley a única a influenciar diretamente a ideia de transplantar órgãos com o objetivo de salvar vidas. Mas a verdade é que a ideia dos transplantes de órgãos foi fazendo o seu caminho nas décadas seguintes, sobretudo entre a comunidade de investigação médica, e foi ganhando força na segunda metade do séc. xx. E a razão era simples: porque não aproveitar um órgão funcional, de um dador que dele não necessitava, para substituir um órgão doente a quem dele necessitava?
Foram precisos que 150 anos passassem sobre o romance de Mary Shelley, para que Thomas Earl Starzl, nos Estados Unidos, realizasse o primeiro transplante de um órgão humano com sucesso – isto é, tendo o recetor do órgão transplantado sobrevivido mais de um ano ao transplante. Esse órgão foi o fígado e estávamos em 1967. O fígado (do latim iecur ficatum) é a maior glândula do corpo humano. É o órgão básico da coordenação fisiológica: desintoxica o organismo, sintetiza o colesterol, o fibrinogénio e a albumina, e outras moléculas indispensáveis ao funcionamento do corpo. Até 1967, quando o fígado deixava de funcionar por alguma razão, doença crónica ou outra, a esperança de sobrevivência era mínima, e milhões de pessoas morriam em todo o mundo de doenças hepáticas. O feito de Starzl e da sua equipa de cirurgiões tinha trazido para o mundo real o mundo da ficção científica, abrindo com isso uma porta de esperança para milhões de pessoas em todo o mundo. Hoje, 50 anos depois do primeiro transplante bem-sucedido, não só os transplantes hepáticos mas também os de muitos outros órgãos – pele, rins, coração, entre outros – são cirurgias comuns, contribuindo decisivamente para o aumento da esperança de vida a que a humanidade assistiu nas últimas décadas.
Mas a verdade é que os transplantes, sendo cirurgias relativamente comuns, não são intervenções triviais. Entre muitas outras condicionantes, a realização de um transplante depende do aparecimento de um dador compatível, o que nem sempre existe, e obriga por vezes a longos períodos em lista de espera que podem ser fatais para o recetor. Todos nós ainda nos lembramos do recente caso, acompanhado pela imprensa, da situação de um cantor célebre esperando durante meses que um coração compatível com o seu organismo surgisse. Muitos outros casos, menos mediáticos, existem e, muitas vezes, são fatais. Mas, recentemente, investigadores médicos, cientistas e engenheiros, trabalhando em conjunto, sugeriram uma nova possibilidade.
E se imprimíssemos tridimensionalmente o órgão de que precisamos?
A tecnologia de impressão 3D, ou fabricação digital, tornou-se uma realidade nos últimos anos. Componentes em pequenas séries, poliméricos, metálicos ou cerâmicos, imprimidos tridimensionalmente, a partir de um ficheiro de dados descrevendo a geometria do objeto, são uma realidade que já podemos encontrar com alguma facilidade em empresas, laboratórios ou mesmo centros comerciais ou FabLabs de acesso aberto ao público (e.g. http://fablablisboa.pt/). Mas daí até “fabricar” um órgão, a distância parece ser grande. Fabricar um órgão vivo a partir de uma impressora 3D parecerá, ao cidadão comum, tanto ficção científica como eventualmente pareceriam os transplantes de órgãos aos leitores de Frankenstein no início do séc. xix. Mas a verdade é que estamos muito mais perto da impressão tridimensional de órgãos agora do que se estava do simples transplante no início do séc. xix. Tanto assim é que diversas empresas de biotecnologia anunciaram em 2018 a sua capacidade para, num futuro próximo, terem capacidade para imprimir, total ou parcialmente, órgãos que podem ser usados em transplantes.
Parecendo ficção científica, o que é facto é que quase todas as tecnologias parciais que permitirão construir de raiz, por impressão 3D, um órgão existem atualmente. De uma maneira muito simplificada, o processo inicia-se com a recolha de células do recetor e a sua cultura, por forma a que se multipliquem no laboratório. Depois, estas células são carregadas numa bioimpressora 3D conjuntamente com um biomaterial de suporte, por exemplo um hidrogel, onde podem crescer e desenvolver-se. A bioimpressora imprime este biomaterial compósito, formado pelo hidrogel e pelas células, na forma e dimensões desejadas. Após a maturação do tecido biológico e, eventualmente, da eliminação parcial do material de suporte, que inclusivamente poderá ser reabsorvido pelo próprio organismo, o órgão está pronto para ser implantado no paciente.
Esta tecnologia terá ainda de ser aperfeiçoada, de passar pelo crivo dos testes in vivo e de passar por todo o processo de regulamentação que permitirá a sua aplicação clínica. Mas, considerando o estado em que atualmente nos encontramos de desenvolvimento da biotecnologia, da ciência de materiais e das engenharias de tecidos e de controlo de sistemas mecânicos e digitais, e da própria prática clínica, não é difícil prever que durante a próxima década, alguém, algures no planeta Terra, dirá pela primeira vez: “Queria encomendar um bom coração, tamanho xxl, feito à medida. Por favor.”
Professor de Engenharia de Materiais do Instituto Superior Técnico