Em setembro de 2000 eu estava em Gaza. Havia um movimento de feliz convencimento de que a libertação definitiva da Palestina estava assegurada. Malhas que o império tece, diria Fernando Pessoa. Ramallah podia não acreditar em lágrimas, como a Moscovo de antigamente, mas elas vinham aí, de chofre, saltando dos olhos de seus filhos como se jorrassem de uma fonte. A Palestina livre não passaria de um sonho breve como uma noite de Verão. Os muros seriam erguidos, duros e brutos, em redor da Faixa de Gaza.
41 quilómetros de comprimento. A largura divide-se entre 6 e 8 quilómetros. Total? 365 quilómetros quadrados. Um país entre muros. Um arremedo de país, fechado dentro de si próprio.
A população é sobretudo composta de refugiados. Muitos fugiram da guerra israelo-árabe de 1948. Outros foram aparecendo, aqui e ali, numa busca sôfrega de liberdade. Ah! Liberdade. Bela palavra mesmo quando não tem significado.
Com uma taxa de crescimento de 3,2%, a Faixa de Gaza é a sétima no mundo no desenvolvimento demográfico. Um exagero. No planeta Terra poucas zonas estão tão densamente povoadas. Nos outros planetas o problema não é, francamente, nosso.
Gaza é uma cidade muito, muito antiga. É habitada desde o século XV antes de Cristo, pelo menos. Em 2005, os israelitas decidiram entregá-la, finalmente, aos palestinianos. Todos os judeus foram forçados a abandoná-la.
“Team Gaza”. É um filme datado de 2016. Enfim, mais um documentário do que um filme. O enredo não tem nada de muito especial. Quatro jovens que vivem em Gaza, fechados no corredor de muros levantados por Israel, criam um clube de futebol. É em campo que conseguem esquecer toda a balbúrdia na qual se transformou as suas vidas. Vivem num edifício bombardeado pelo inimigo. Para lá do relvado, rezam e lutam por um mundo à sua maneira. Mas o mundo não é, definitivamente, aquilo que julgam que é. É a vida entre escombros de uma Gaza aprisionada. Quem pode derrubar os muros? A violência ou o sonho?
Futebol sem pés. Nunca mais voltei a Gaza ou à Palestina. Duvido muito que algo tenha mudado. Pelo menos para melhor. Guardei amigos que me enviam desiludentes notícias ocasionais. Um deles vive em Deir Al Abah. Trabalha para uma organização extraordinária: um clube construído para vítimas da guerra, na maioria amputados. Sim. Isso mesmo. Gente que consegue jogar futebol sem pés.
As vítimas palestinianas que sobreviveram às tentativas de protesto contra as movimentações unilaterais israelitas na Faixa de Gaza multiplicaram-se exponencialmente. De um dia para o outro, os hospitais entupiram-se com mais de 4000 feridos e as morgues receberam 140 mortos. “Fui ferido durante os protestos de 4 de Maio e fiquei sem uma perna”, lamentava Msabeh. E como a perna lhe fazia falta. Afinal, estamos a falar de um avançado do Al Awda, clube da cidade de Khan Younis. Pouco depois mudava-se para Deir Al Balah, a terra que abriu as portas para todos os deserdados da região.
O Centro de Reabilitação de Deir Al Balah é gerido por Fuad Abu Ghaliun, antigo jogador que é, hoje em dia, o responsável pelo Comité Paralímpico da Faixa de Gaza e presidente da Federação Palestiniana de Futebol Para Amputados.
Sim, sim, leram bem.
“A verdade é que a questão dos amputados tem sido levada muito a sério em vários países», comentou recentemente. «Quando assisti à final do campeonato do mundo de futebol para amputados entre a Inglaterra e a Turquia, percebi que era inevitável implantar o processo na Faixa de Gaza”.
Ora, a verdade é que o clube tem algo de exclusivo. Mamoud Alnaouk, outro antigo profissional no futebol israelita, foi recusado. Motivo? Não tinha nenhuma das pernas. É obrigatório para os candidatos que tenham pelo menos uma delas.
Reparem no que aconteceu a Islam Amoon. Perdeu o braço direito. Nada de irremediável, dirão alguns. O problema é que Amoon era guarda-redes. Era não: é. Continua a ser orgulhosamente guarda-redes. “Quando soube da existência deste clube e deste centro de treinos percebi que tinha de vir para cá”, contou. “Claro que foi complicado, no início, mas depois entrei no espírito que nos manda atirar para trás das costas as nossas deficiências e lutar para que elas não se sintam. Tenho uma mão e conto erguer um troféu com ela”.
O trabalho dos técnicos do Centro de Reabilitação de Deir Al Balah, na Faixa de Gaza, perceberam rapidamente que cada caso é um caso. A diversidade faz deles mestres. Quando se luta firmemente pelo reconhecimento universal da Palestina, há gente praticamente anónima que põe muitas rodas dentadas a funcionar.
Frederick Mansell e Laurens Samsom vieram da Holanda para registar em película a vida emergente do futebol na Palestina. Filmaram os becos, os bairros decadentes, a bola rolando no meio dos voluntários da Brigada Al Qasam. E chegaram à conclusão indesmentível de que nada será capaz de se interpor na relação entre o homem e a bola. São praticamente irmãos.