Crise da democracia, crise do Ocidente


A deriva demagógica e populista está a crescer a olhos vistos, conduzida por caudilhos sem escrúpulos, sem educação, sem cultura e sem preparação


Não sei se os políticos portugueses no activo – os que se esforçam por pensar a política, não os que preferem fazer chicana e achincalhar os adversários – se deram ao trabalho de ler a excelente entrevista (publicada pela Visão em 18 de Outubro) que a jornalista Emília Caetano fez ao economista e historiador francês Nicolas Baverez, um democrata liberal de centro-direita, admirador e biógrafo de Raymond Aron, que por acaso também é, porventura paradoxalmente, uma das referências da minha formação política como republicano, laico e social-democrata de esquerda – não de centro-esquerda, atenção!

A entrevista é excelente, não só pela forma como foi conduzida mas, sobretudo, pelas análises que Nicolas Baverez foi fazendo com grande poder de síntese. Quer sobre a crise que a democracia atravessa, “a mais séria desde os anos de 1930”. Quer sobre as próximas eleições para o Parlamento Europeu, que correm “o risco de se tornarem um referendo à imigração”. Quer sobre o Brexit que aí vem, “verdadeira tragédia política, já que todos saem perdedores” e que “uma das razões da catástrofe dos anos de 1930 foi a divisão entre a Europa e os EUA, ao mesmo tempo que o Reino Unido se separava da Europa continental”. Quer sobre a China, que “entrou na mundialização com regras viciadas” e que “pilha as empresas tanto no interior como no exterior”. Quer sobre a presidência de Trump, “que está a destruir um século de soft-power dos EUA, a fracturar o Ocidente e a desmantelar a ordem que reinava desde 1945, e que era muito protectora da liberdade, das grandes alianças estratégicas e dos tratados de comércio”. Quer sobre a nova crise, “que virá da finança da sombra, do shadow-banking, que é muito importante, designadamente na Ásia, ou talvez do endividamento das empresas não financeiras”.

Neste contexto global mais ou menos assustador, convirá recordar – e agora sou eu a falar – que Donald Trump foi eleito 45.º presidente dos EUA após uma campanha demagógica contra as elites, nomeadamente contra os banqueiros, mas, logo que se instalou na Casa Branca, não hesitou em nomear banqueiros oriundos da Goldman Sachs e outros abutres financeiros para os mais altos cargos da sua Administração. Decisão tanto mais hipócrita e cruel quanto se sabe que Trump deveu a sua eleição às populações mais pobres vítimas indefesas da crise dos subprime, que pôs na rua centenas de milhares de americanos cujas casas, oneradas por hipotecas que eles não conseguiam reembolsar, foram confiscadas por banqueiros que não tiveram a menor preocupação de informar esses cidadãos sobre a subida em flecha das taxas de juro que sobrecarregavam as hipotecas.

Convirá igualmente salientar que o capitalismo de tipo oligárquico – que tem dominado os regimes democráticos em que a regra é o “rotativismo” entre o centro-esquerda e o centro-direita no governo – alimenta-se, e muito, das suas próprias crises. Aliás, as chamadas “regras prudenciais” concebidas como remédios para a grave crise financeira aberta em 2008 favoreceram, paradoxalmente, o desenvolvimento do shadow banking, ou “banca da sombra”, constituída pela finança das seguradoras, dos fundos altamente especulativos – os hedge funds – e de outros fundos comuns de investimento financeiro. Em 2014, por exemplo, esta finança representava, no mundo, duas vezes o PIB dos EUA, país que, por seu turno, concentrava, só por si, 40 por cento desse shadow banking!

Segundo Nicolas Baverez, há hoje no mundo um stock de nada menos do que 250 biliões de dólares de dívidas públicas e privadas, a inflação começa a ressurgir, nomeadamente nos EUA graças às políticas erradas de Donald Trump, e não se sabe o que irá acontecer em Itália. Outro elemento inquietante – salienta Baverez – é que, se vier aí novo choque financeiro, já não resta muita margem de manobra nas políticas monetárias e orçamentais. O espírito de cooperação que serviu para amortecer o choque de 2008 foi destruído, em consequência do grande abalo que ditou o fim da “mundialização liberal”. Para além da sua tão duvidosa capacidade para regenerar o capitalismo, o pensamento neoliberal é, de facto, uma catástrofe intelectual para a qual contribuíram decisivamente as chamadas “direitas e esquerdas de governo”, sobretudo na Europa, reunidas respectivamente no PPE e no PSE, com a bênção duma tecnocracia europeia completamente incontrolável.

As oligarquias económicas e financeiras, as plutocracias, as tecnocracias e os políticos medíocres e oportunistas que a elas se submeteram, têm enormes responsabilidades na gravíssima crise da democracia e na persistência das grandes injustiças e disparidades económicas e sociais que afectam as populações de países supostamente democráticos. A deriva demagógica e populista está a crescer a olhos vistos, conduzida por caudilhos sem escrúpulos, sem educação, sem cultura, sem preparação, e tanto ou mais medíocres e porventura tão corruptos como alguns desses políticos tradicionais.

A crise nivelou por baixo as aspirações da generalidade dos eleitores, que se contentam com a promessa duma “vassourada” sem cuidarem de conhecer bem os que a farão, nem os interesses que estão por trás. Há uma lamentável cena protagonizada pelo presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro, numa igreja evangélica, que dá bem a medida de quão baixo desceram os instintos dos que o elegeram e de quão alto subiram os riscos de implantação de regimes fascistas e/ou de ditaduras autoritárias. Disse, às tantas, Bolsonaro: “Eu tenho a certeza de que não sou o mais capacitado, mas Deus capacita os escolhidos”. Ou seja, se ele existe, e Bolsonaro acredita que sim, Deus deve ser muito incompetente, porque já “capacitou” Trump, Erdogan, Duterte, Maduro e outros “escolhidos”, isto sem esquecer Hitler, Mussolini, Franco, Estaline e alguns mais que iam dando cabo do mundo…

 

Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990