Roberto Bolaño. Como um cego chamando luz ao trovão

Roberto Bolaño. Como um cego chamando luz ao trovão


Uma nova reunião de inéditos do autor desaparecido em 2003 leva a pensar que o baú continuará a pingar enquanto se tratarem sobras como “peças de um puzzle”


Como vem acontecendo com outras figuras gradas da cultura latino-americana, absorvidas com uma sofreguidão e um fascínio imoderado pela cultura de massas, os imortais restos de Roberto Bolaño aguardam a finalização do processo de criogenia. Em breve será difícil falar dele sem ter de enxotar os clichés e exotismos artificiais que ficam a boiar na consciência de quem nem o leu ou leu superficialmente.

Num artigo publicado recentemente na revista “Quatro Cinco Um” – publicação brasileira que começou a ser distribuída entre nós no passado mês de Maio -, Valeria Luiselli falava dessa avalanche que, para embalar e expedir a obra de Frida Kahlo para todos os cantos do mundo, ao longo dos anos, tem produzido “uma rasa fridolatria”, e isto forçando a imagem da artista deficiente, símbolo do feminismo radical, “a vadia sem vergonha na cara”, “o ícone chique, género-fluido, belo e monstruoso”.

Em menor grau, isto tem vindo a passar-se com o escritor chileno apelidado de “génio” a torto e a direito – algo que, como se sabe, legitima a publicação de cada nado-morto que tenha ficado nos cadernos, em páginas dactilografadas ou no disco duro do computador quando, em 2003, o transplante de fígado não chegou a tempo e lhe foi arrancada a luz, o papel, a tinta e aquele fôlego desaustinado.

Sabemos que tachar de génio um escritor nosso contemporâneo passa, normalmente, por um pacto entre editores, agentes publicitários e críticos levianos, para que se impinja indiscriminadamente toda a sua produção, a qual terá, necessariamente, momentos mais memoráveis que outros. Neste caso em particular, vale a pena lembrar um breve ensaio que Jorge Luis Borges incluiu no volume “El tamaño de mi esperanza” (1926) – obra cuja reedição não autorizou, e que foi María Kodama quem decidiu publicar menos de uma década após a sua morte, vendo-a tornar-se um inesperado êxito de vendas na Argentina. Chama-se “A aventura e a Ordem”, e nele Borges, por quem Bolaño nutria uma admiração sem limites (“Quando Borges morra, acaba-se de um só golpe tudo. É como se Merlin morresse, ainda que os cenáculos literários de Buenos Aires não sejam certamente Camelot.”), lembra que “contemporâneo de nós não há labor algum de génio, e isso porque conhecemos todas as nobres selvas que ele saqueou para edificar a sua alta pira e as madeiras perfumadas que servem de incenso e resplendor nas chamas”.

Portanto, quando a genialidade de Bolaño é aclamada em uníssono, o que fica claro é que os críticos não fazem mais do que assumir publicamente a sua ignorância face às obras que o antecederam e inspiraram, colocando-se do lado das vítimas do marketing, ou seja, das operações para vender livros à boleia de rasas idolatrias.

Entre nós, foi na antecipação da publicação de “2666”, e a partir do momento em que a Quetzal passou a editar a obra de Bolaño – até então publicada com o selo da Teorema -, que se erigiu uma inaudita campanha promocional em volta do autor, fazendo de Bolaño mais um valor inquestionável da literatura mundial. Isto mesmo foi evidenciado recentemente, quando José Mário Silva reagiu à edição de “Sepulcros de Cowboys” – volume que reúne sem grande critério três inéditos desencravados dos arquivos de Bolaño – afirmando que, “ao contrário do que sucede com outros ficcionistas, os inéditos póstumos de Bolaño nunca são acontecimentos menores ou marginais.”

Aí está um selo de garantia cujo brilho se desvanece tão cedo quanto o leitor tome sobre si a tarefa de ler os inéditos, surpreendendo-se com uma porção de páginas um tanto inconsequentes, mesmo que partilhem com os títulos fechados em vida do autor aquela inclinação de alguém que sabia levar a prosa num voo picado. Mas só uma leitura viciada por um transtorno do déficit da atenção com hiperactividade pode marimbar-se na falta de um rumo, de uma estrutura minimamente coesa, preferindo fixar-se nos sobressaltos e nessa qualidade imediatamente reconhecível que tornou esta escrita sinónimo de uma potência textual desgrenhada, derivando de um lirismo agreste e do tipo de deambulação entre o desconsolo e a feérie, tão própria da adolescência e da busca desesperada pela dose seguinte de êxtase.

Eis uma passagem onde ficam claros os dotes deste autor que começou como poeta, e um desses realmente provocadores, malcriados, que, como não se cansam de lembrar os mais moles entre os seus admiradores, “tinha o hábito de sabotar sessões literárias”:

“À sua maneira, foi pródigo em pormenores. Disse que a povoação não tinha mais de sessenta casas, duas tabernas, uma loja de víveres. Disse que as casas eram de adobe e que alguns pátios eram cimentados. Disse que a povoação tinha entre dois mil e três mil anos e que os naturais de lá trabalhavam como assassinos e vigilantes. Disse que perto da povoação passava um rio chamado Río Negro pela cor das suas águas e que ao bordejar o cemitério formava um delta que a terra seca acabava por chupar. Disse que as pessoas às vezes ficavam grandes bocados a contemplar o horizonte, o Sol que desaparecia por detrás do monte El Lagarto, e que o horizonte era cor de carne como as costas de um moribundo. E o que é que esperam que apareça por lá?, perguntei-lhe. Não sei, disse ele. Depois disse: uma verga. E depois: o vento e o pó, talvez.”

Do mesmo modo que agora é popular a fruta desidratada, não arriscaria muito se dissesse que Bolaño é um romântico desidratado, alguém que trouxe da poesia, e de mestres como Nicanor Parra, aquela noção de que levar a escrita a sério passa por uma aposta de vida ou morte. (Quem pode esquecer a homenagem que fez a Parra, dizendo que “escrevia como se no dia seguinte fosse ser electrocutado”…)

Numa entrevista dada em 1999, além de explicar por que razão tantos dos seus personagens ou são poetas ou têm alguma coisa que ver com a poesia, diz que sempre admirou as vidas dos poetas, “essas vidas tão desmesuradas, tão arriscadas”. Mas defende também que “a melhor poesia deste século foi escrita em prosa”. É natural, por isso, que depois de lhe ter sido diagnosticada uma incurável doença hepática, em 1992, se tenha largado de versinhos, e, até à sua morte, haja tentado igualar as proezas “de Joyce, ou de Proust, ou de Faulkner, que sujeitaram o arco a uma tensão que escapou à poesia deste século”.

José Riço Direitinho (no “Público”) e José Mário Silva (no “Expresso”) não fizeram mais do que apresentar desavergonhadas paráfrases do prólogo assinado por Juan Ródenas nesta “prenda” póstuma – e é até provável que, ao invés de um conluio, se trate apenas de mais um caso de preguicite – doença crónica partilhada pelos delegados de propaganda editorial que têm cativas há décadas as escassas vagas da crítica. Mas este novo título de Bolaño remete-nos para o único, mas glacial, percalço que enfrentou “2666” aquando da sua campanha de promoção em Portugal. Tão confiantes estavam no génio da obra que tinham em mãos, que se lembraram de convidar Rogério Casanova para o recensear na “Revista LER” (dirigida até hoje pelo editor da Quetzal, Francisco José Viegas). Ora, Casanova, esse E.T. que nos visitou por uns anos, produziu um breve ensaio em que procede à mais penetrante análise da bestial obra-prima falhada de Bolaño. O tiro saiu pela culatra, furando os olhos dos que em fila aguardavam um refrão com o champanhe já aberto.

Naquele texto, Casanova expunha as debilidades do projecto sobre o qual Bolaño se lançou com o desespero de quem se esforça por cumprir uma auto-profecia, um livro que, na desmesura da sua ambição, acabava por ver os seus “temas e motivos friccionados sem produzirem chama ou calor”. E o pior é que, se “um grande romance é frequentemente uma carta de amor à literatura; ‘2666’ parece mais um epicédio, uma longa lamentação pelas suas falhas e inadequações”, notava o crítico.

“Bolaño é um mestre da tangente, do episódio, do non sequitur (‘o estilo era estranho, a escrita era clara e por vezes até transparente, mas a maneira como se sucediam as histórias não levava a lado nenhum’) (…) A inventividade torna-se rapidamente um vício, em vez de um instrumento”, escreveu Casanova. E se é justo relembrar o mais acertado juízo que se produziu entre nós sobre aquele título que tantos exaltam como o ponto alto da obra de Bolaño, a razão por que se torna útil, em face desta reunião de inéditos, referir a leitura de Casanova é por, da sua sentença, se poder desentranhar também uma apreciação que cabe perfeitamente a “Sepulcros de Cowboys”. E essa é uma análise que deveria desencorajar a publicação de outros textos incompletos, derivativos e não, como se pretende, fragmentos que funcionam como “peças de um puzzle”, consolidando um vigoroso universo literário.

Se nas melhores ficções curtas de Bolaño se percebe “a confiança cega na fluência da sua própria imaginação para levar a história ao lugar certo”, nestes inéditos damos com o autor entre ensaios e falsas partidas. Ora, “como um cego chamando luz ao trovão” (Hugo Mujica), a sensação que fica é de que os clarões não chegam para que a prosa seja mais do que um circuito de linhas de alta tensão, mas que não levam a luz a casa de ninguém. E aos poucos vamos perdendo a esperança de que nos possam sequer conduzir a algo mais do que um beco sem saída.

“As suas pessoas e paisagens são miragens; têm o rigor da ilusão, não da construção artística”, dizia Casanova. E é uma pena que esta ambição de corda ao pescoço tenha levado Bolaño a perder de vista os exemplos de Parra e Borges, que nunca embalaram no credo de que são as “grandes obras, imperfeitas, torrenciais, as que abrem grande caminho no desconhecido”.

O primeiro dirigiu-se certa vez aos jovens incitando-os a escreverem o que quisessem, “no estilo que lhes pareça melhor”… “Passou demasiado sangue sob as pontes/ para continuar-se a crer/ que possa seguir-se um só caminho.// Em poesia tudo é permitido.// Com a condição expressa/é evidente/ de superar-se o papel em branco.” (Tradução de Jorge de Sena). O segundo, no ensaio acima citado, oferece uma lição de sobriedade, retirando ênfase à oposição entre aventura e ordem: “A mim parecem-me ambas disciplinas válidas, se houver heroísmo em quem as segue. Que uma não se encha de ciúmes face à outra; que a insolência nova não seja a paga do antigo decoro, que não se exerçam muitas artimanhas em simultâneo.” E, assim, um Borges muito jovem concluía: “Grato é o gesto que numa brusca solidão resplandece; grata é a voz que denúncia a nossa comunidade com os homens (…) Graves e eternas são essas profundas trivialidades de se apaixonar, de caminhar, de morrer.”