Melilla: frente a Granada, na outra margem do Mediterrâneo, um semi-círculo protege o porto. O Cabo das Três Forcas estende-se no sopé do Monte Gurugú e na embocadura do Rio do Ouro. Cerca de 50 mil pessoas vivem neste território de pouco mais de 12 quilómetros quadrados. Enclave espanhol em Marrocos. Como Ceuta.
Union Deportiva Melilla: fundada em 1943, desapreceu 13 anos mais tarde. Em 1976 foi ressuscitada. Disputa a II Divisão B de Espanha, Grupo 4. Mas não julguem que é o único clube desta cidade com tudo de especial. Há muitos outros, apesar da escassa população: Club Deportivo Real Melilla; Club Deportivo Tesorillo; Melilla Club de Fútbol; Clube de Fútbol Melilla Industrial; Melilla Fútbol Club.
O entusiasmo pelo jogo é grande.
Hoje, pelo final da tarde, o Real Madrid joga em Melilla para a Taça do Rei. Pouco importa se os merengues, agora já sem Julen Lopetegui, se apresentem amputados de muitos dos seus principais jogadores. Não é por isso que o Estádio Alvarez Claro deixará de rebentar pelas costuras: 12 mil espectadores não faltarão ao acontecimento.
Houve tempos em que o derbi norte-africano entre o Union Deportiva Melilla e a Associación Deportiva Ceuta levava as duas cidades espanholas ao rubro. Tempos esses em que as equipas atravessavam o Mediterrâneo, percorriam quilómetros dentro do território de Espanha, e cruzavam de novo o mar para se encontrarem sem passarem por Marrocos. Custo de ser enclave.
Mas houve ainda outro tempo, mais antigo, no qual de Ceuta a Melilla não se viam fronteiras. Todo o norte de África que se estendia de Larache a Tânger, na costa atlântica, e de Ceuta às Ilhas Chafarinas, na costa mediterrânica, era protectorado de Espanha: chamavam-lhe o Marrocos Espanhol e incluía, a sul da região, o Sara Espanhol. No meio, o Marrocos Francês. Toda esta confusão se prendia com a facilidade com que o Reino Unido e França decidiram dividir determinadas partes do mundo através da célebre Entente Cordiale, assinada para pôr um ponto final a quase mil anos de litígio entre ambos. A Entente foi posta em prática no dia 8 de Abril de 1904. Depois, França e Espanha decidiram entre si as zonas de influência no norte de África através de um acordo datado de 27 de Novembro de 1912. A brincadeira teria um fim em 1958 quando o Marrocos Espanhol foi, finalmente, integrado no Reino Independente de Marrocos. Todo? Não. Ceuta e Melilla mantiveram irredutivelmente espanholas e Tânger manteve o estatuto muito especial de Cidade Internacional, com administração repartida entre o Reino Unido, França, Espanha, Holanda, Bélgica e Portugal. Portugal, leu bem. Que nomeou mesmo dois governadores para o território, Luís António de Magalhães Correia (1945 a 1948) e José Luís Archer (1951 a 1954).
Entretanto, pelo meio de todas estas disputas políticas e diplomáticas, o futebol medrava. E havia mesmo uma federação que organizava campeonatos.
O campeonato. O futebol do Marrocos Espanhol chegou mesmo a conseguir apurar uma equipa para disputar a I Divisão de Espanha. A proeza coube ao Atlético de Tetuán, da cidade do mesmo nome, ali nos contrafortes de Ceuta, fundado em 1933 por um jogador que tinha actuado no Atlético de Madrid, como está bem de ver. O Atlético Tetuán não se aguentou mais do que uma época no topo: 1951-52. Mas trouxe aos estádios espanhóis um dos grandes nomes do futebol marroquino, comparado ao formidável Ben Barek: Chicha. Um nico de gente, com metro e meio de altura e 50 quilos de peso, mas montanhas de talento. De tal forma que, na única ocasião que o Barcelona jogou em Tétuan, os seus dirigentes quiseram levá-lo para o juntarem a Kubala e a Basora. Chicha recusou. Gostava de viver em Marrocos.
Se o Marrocos Francês ficou com as grandes cidades históricas da região, como Fez, Meknes, Rabat e Marrakesh, os espanhóis orgulhavam-se dos feitos desportivos de um clube surgido em 1912: o Sporting Melillense, de Melilla, pois claro!
Pioneiro e fundador da Associação de Africana de Clubes de Futebol, organizadora do primeiro campeonato. Que se disputou por inteiro no campo da Sociedade Hipica de Melilla, com vitória da equipa dos ingleses da cidade, o Reina Victoria Eugenia, assim mesmo, à castelhana, mas com a rainha no pensamento. Orgulhosos do seu feito, os dirigentes do Reina Victoria Eugenia levaram o conjunto numa digressão a Espanha, apresentando-o aos públicos de Madrid, Barcelona e Valência. Nunca até aí uma equipa africana tinha jogado na Europa.
Os clubes foram surgindo como cogumelos: San Fernando, Iris, Santa Bárbara, Racing, Fortuna, Deportivo España. E a qualidade da competição melhorou significativamente com o reforço de jogadores vindos de Espanha e que cumpriam em Marrocos o serviço militar, aproveitando para fazer uma perninha aqui e ali.
O público, por seu lado, vivia as partidas com entusiasmo e educação extrema. Em 1927, Ricardo Zamora, El Divino, um dos melhores guarda-redes de todos os tempos, foi convidado para participar de um encontro de promoção em Melilla. A viagem de Ricardo foi inolvidável! Era tanto o seu prestígio que o “ferry” que ligava Málaga a Melilla partiu com duas horas de atraso por ter esperado que ele acabasse de arbitrar um combate de boxe. A recepção foi de tal ordem que os jogadores escolhidos para jogarem contra Zamora foram aconselhados a não rematarem à baliza para não incomodarem o senhor. Por isso, não houve muitas defesas que fizessem as pessoas saltarem nas bancadas.
A Associação Africana transformou-se na Federação de Futebol Hispanomarroquina. Organizava uma prova que dava ao vencedor acesso à III Divisão de Espanha. Disputava-se em grupos e com uma fase final. Nos anos-40, tanto o Atlético Tétuan, o África Ceuti, o Melilla C. F., o Unión Juventud Español de Melilla, o U.D. Melilla, o U.D. Tangerina, o Mahgreb El-Aksa, o Imperio Riffien, o Escuelas Hispano Árabes, o Larache e o Pescadores de Alhucemas, entre outros, puderam jogar na metrópole. Depois da independência marroquina, a Fedração Hispanomarroquina desapareceu, os clubes passaram a ser membros da Federação de Marrocos, e as equipas dos enclaves de Ceuta e Melilla ficaram numa espécie de limbo competitivo. Como territórios sob administração espanhola a solução acabou por tornar-se mais do que evidente: foram absorvidos pela Federação Espanhola. O Ceuta está hoje na III Divisão. O Melilla apronta-se para receber o Real Madrid. Coisas da vida que a história vai guardando…