João Bénard da Costa soube da chegada destes tempos novos. Ficou no umbral, e ainda se deixou tomar pelo calafrio, sabendo ameaçado o processo lento e árduo em que o seu esplendor se educara. Mas, ao perceber como as tecnologias da informação foram deslocando o conhecimento para um território de constantes reciclagens, não quis adaptar-se. A memória era um tempo interior, uma razão ritmada por rimas afetivas, sujeita à progressão melódica em que uma existência se cumpre por meio dos elos que cultiva. Uns meses mais e contar-se-ão dez anos da morte deste Mendel dos filmes, uma figura tutelar da cinefilia do século XX que nos fez o favor de não se tornar consensual.
Ainda que a sua presença não se tenha esbatido, o seu prodigioso saber parece-nos cada vez mais remoto, um testemunho de uma outra época, em que saber não se confundia com a especialização, mas rompia com a síntese enciclopédica, vincado pela experiência e a emoção, num nó corrediço que dava relevo à comunicação como um ato de verdadeira partilha. Nesse sentido é que JBC parece afastar-se deste tempo a um ritmo seu, como se fosse ele quem se despede, e nós, os que estamos vivos, quem derivou incertamente. Na poderosa evocação que dele fez, o seu amigo Peter von Bagh diz-nos que “era um homem mais antigo do que a curta distância que nos separa dele como homem concreto”. E que, se nos deixou em 2009, “graças ao que escreveu e fez, vive de um modo mais palpável que a maioria de nós”.
Estas palavras chegam-nos já póstumas, quatro anos depois de também este amigo e colaborador da Cinemateca Portuguesa ter desaparecido. Não chegou assim a ver o arranque da publicação de “Escritos sobre Cinema”, um autêntico monumento editorial que irá reunir tudo o que JBC escreveu entre 1980 e 2009 – compreendendo não só os textos para catálogos editados ou co-editados pela Cinemateca, como as célebres folhas distribuídas nas sessões de cinema daquela instituição e nas da Fundação Calouste Gulbenkian. Do primeiro tomo, dedicado aos realizadores e às suas obras (o segundo será dedicado a outras personalidades e temas), o volume já disponível conta com mais de 1300 páginas. E, seguindo a estrutura dicionarística – levando em conta o quanto Bénard da Costa gostava desta forma e a praticou -, não vai além da letra C (Crichton), o que nos dá uma perspetiva da magnitude deste empreendimento. O projecto começou a desenhar-se logo após a morte de JBC, e o atual director da Cinemateca, José Manuel Costa, explica que, entre a decisão de avançar e a saída deste primeiro volume decorreu um intervalo prolongadíssimo, e como este “é a dupla medida do esforço envolvido e do contexto: sendo um trabalho de equipa (…) foi uma tarefa a que a casa meteu ombros com as suas forças internas no exato momento em que estas forças mais estiveram sob tensão acrescida”.
É uma tarefa hercúlea, e que provoca vertigens também por um compromisso que se lança sem um fim à vista. Encarada como mais uma forma de “honrar o legado do autor destes textos e a própria história da Cinemateca”, a edição é um primor, pelo manifesto cuidado em dar a ler este “mar de textos” acompanhado do aparato crítico que se justifica, elucidando sem fatigar, e prescindindo de todo o luxo que não seja o tornar disponíveis estes textos para as tantas possibilidades de leitura e consulta que oferecem. É um exemplo amoroso e que deveria provocar a vergonha em quantas casas editoriais se empenham mais em servir o cliente preocupado em compor a estante, e com isso obrigam os leitores a desembolsar pequenas fortunas por calhamaços que os acorrentam à secretária, e frustram o desejo de portabilidade de muita da melhor literatura. Este é, por isso, aquele tipo de trabalho que já nem nos autorizamos a esperar das instituições que temos, e que estão lá mais para inglês ver.
Por 25 paus, um qualquer leitor, nem sequer um cinéfilo, leva este volume generoso, e vai-se a ouvi-lo palrar maravilhosamente, sendo o gozo maior o de abrir ao calhas e topar com o homem lá naquele entusiasmo do tempo em que o tempo abundava, e se criavam terríficos mestres de cerimónia, fazendo do assassínio das horas vagas uma das belas artes. É, de resto, esse o testemunho que nos vai chegando de tantos dos que puderam conviver com João Bénard da Costa, ou ouvi-lo a apresentar uma sessão. Na preparação deste artigo, dando uma cotovelada a um amigo realizador que frequentava as sessões, quis saber a impressão que lhe deixou a ele. Para lá do elogio ao desassombro do homem, diz que chegou a vê-lo entrar na sala, ser só então informado do filme que se ia exibir, e que, no mesmo tempo de que necessitaria para aclarar a voz, já o ariete escancarava as portas da memória desenhando um saboroso percurso pelas pequenas revelações e histórias como pelas noções essenciais, numa erudição ao serviço do sonho, daquele homem que se põe diante do grande ecrã como se fosse ter depois a eternidade, de olhos fechados, para explorar por si essas imagens e planos que o levaram por outros mundos.
Este volume é já, por isso, e ainda que mais nenhum se lhe seguisse, um pequeno tesouro literário, mesmo para quem (e é esse aqui o caso) confia e não precisava de ir confirmar estas descrições, e gosta mesmo mais de sentir como este projecionista estava tão impregnado da paixão das imagens que, “escrevendo à mão, ia por ali numa fúria doce e sem emendas a deitar o fogo à frase, dominando a sensação como dominam os aspectos técnicos os engenheiros de som, luz e imagem. Não se confunde, por isso, com o género de literato gabarola que diz que já mudou a literatura, quando na introdução do livro “Muito Lá de Casa”, dizia: “Levei ao extremo um género que comecei a cultivar em vários ‘dicionários’ de catálogos e Ciclos da Cinemateca ou da Gulbenkian. Misturar com alguma informação, muito delírio e, com base na vida e na obra de movie stars, meter-me por outras vidas e por outras obras que, como as deles, comigo se moveram. A misturada é de tal grau que vale para este livro o aviso que antecede tantos filmes: Qualquer semelhança entre os personagens retratados e carácteres reais ou fictícios é mera coincidência.”
Pois aí está essa definição do dicionário que é a bengala com que uma biblioteca trota e vira mundos. E JBC admite que o dicionário tem saco para aguentar uma boa dose de desarranjo e ficção. “Ninguém venha buscar a este livro outra história que não seja a minha. Esta é uma obra de ficção. Esta não é uma obra documental. Mas é um dicionário? Podia dizer que sim, citando, salvo o devido respeito, predecessores como Flaubert ou Borges.”
Se o aviso não é imediatamente transferível daquele título para este que agora temos em mãos, há um gosto pela liberdade que JBC tomou da grande literatura e de que nunca abdica. Peter von Bagh abre bem os braços no seu texto, como a medir um peixe desses que escandalizam a imaginação, e dá-nos assim uma boa ideia da grandeza da intervenção do amigo: “O João é um caso impossível em termos de classificação. Não é um historiador, e também não é um crítico. Era simplesmente um grande escritor que, felizmente para nós, encontrou no cinema o fulcro da sua realização literária. Como tão belissimamente o cinema tem tudo, não vejo o que possa faltar ao universo literário de João Bénard da Costa: é facto e ficção, história e sociedade, tanto quando mais intensamente pessoal, e portanto acima de tudo poesia – escrita com a linha de pensamento cem por cento acabada, combinando beleza clássica e sentido de improvisação.” Já vai longa a citação. Vamos só matar o parágrafo e abrir o próximo agarrado a este pelo cordão umbilical, porque a refeição ainda vai a meio.
“O sentido de humor, a sua imagem de marca, é também uma forma ampla e profunda de conhecimento, abolindo todas as fronteiras entre alto e baixo, tragédia e farsa. Uma piada absurda ou uma observação lateral sobre o estilo e a mise-en-scène de um filme eram sempre tanto mais. Pertencia à escola da ficção de Borges, a associações fabulosas, as ideias e os sonhos partilhados estão na essência da vida. Uma quantidade de informação fabulosa.” E se o amigo finlandês mediu bem a altura de JBC no que respeita ao estilo e ao modo, na clamorosa homenagem que lhe faz reflete também o quanto a sua cinefilia não era atemporal, antes “inseparável da experiência portuguesa”. E porque o seu papel não foi o de alguém que soube responder ao atraso de vida do país, tendo um papel formativo. JBC entendia, assim, que “uma projecção tem de ser um acontecimento electrizante, ou de pouco vale. Uma sessão de cinema, mesmo na rotina diária de uma cinemateca, tem de ser a projecção de um filme – uma coisa de que o espectador se lembre, talvez toda a vida”. Houve por isso a consciência plena de que mais do que passar filmes, lhe coube correr as cortinas para que o país mofado pudesse sentir-se arejado, fixando o seu horizonte bem para lá da atascada moral servida pelos sistemas de Salazar.
Bagh não perde também a oportunidade de vincar um traço que separa Bénard da Costa, não só dos maus da fita, como das existências que, sendo boazinhas, torcendo pelo final feliz, não fazem muito pela ação, e, no final de contas, com todos os seus bons sentimentos e a sua admiração não passam também de espectadores afundados no assento, indo de sessão em sessão, sem dar uma oportunidade à vida de ser outra coisa: “O seu carisma não dependia minimamente da participação em reuniões formais, e muito menos dos jogos de poder de uma grande organização. Era convincente graças ao facto de a sua cinefilia ser absoluta. Personificava a raison d’être que qualquer organização tem de ter, a ligação directa ao coração da causa – os filmes – em tempos em que o comando foi assumido pelos pormenores organizativos. Tinha a chave do segredo original das cinematecas. Para usar a expressão inventada por Eisenstein sobre Chaplin: tinha um ‘olhar de criança’.”
Na sua qualidade de subdirector e diretor interino da Cinemateca, Pedro Mexia foi quem primeiro aprovou a proposta de Luís Miguel Oliveira, então chefe de programação, de se avançar com este projecto editorial, e, há semanas, num texto a propósito da publicação do primeiro volume, dizia que “a autoridade de Bénard era a de quem ‘estima a arte porque dela ‘sabe’, para retomar os termos camonianos”. E logo acrescentava que “ver muito cinema é indispensável; mas acresce a uma cultura vasta, um gosto educado, a um juízo esclarecido e a uma intuição aguda, traços de uma certa concepção aristocrática das artes, velha como o mundo.” Mais à frente, nesse texto publicado no “Expresso”, conclui: “A abordagem de Bénard da Costa é de pendor exclusivista, inigualitário: é-se ou não se é cineasta, ou bom espectador, tem-se ou não se tem bom gosto”. Portanto, dependendo de quem o lembra, Bénard foi um homem primeiramente comprometido com o “efeito libertador” da cinefilia – “a melhor cinefilia reescreveu a história de forma memorável”, lembra Peter von Bagh – ou alguém que, dando a conhecer os objetos da sua paixão adquiriu uma certa distinção, enquanto “príncipe amigo das artes, um monarca que não promulga constituições mas as ‘outorga’”.
Ao invés do papel de “passador” de filmes, de alguém que dá a conhecer, José Manuel Costa tem destacado a dimensão pedagógica da intervenção de JBC, e numa reportagem do “Público”, aquando da estreia do filme de Manuel Mozos dedicado ao antigo diretor da Cinemateca – “Outros Amarão as Coisas que Amei” (2015) -, explicou o papel tutelar de JBC dizendo que “ele foi a pessoa certa no contexto certo: havia, em Portugal, uma fome acumulada durante décadas em que a cultura cine-clubista foi decisiva para manter a cultura do cinema, mas sem a possibilidade de ver os filmes. Como todos os jovens que na década de 1960 estavam apaixonados por cinema, líamos avidamente, sabíamos os títulos dos filmes de Eisenstein de cor, tínhamos visto uns fotogramas… mas não tínhamos visto nenhum. E de repente surge uma pessoa com uma vontade torrencial de mostrar a história do cinema…”
Outro aspeto que o atual director da Cinemateca destacava – e que nos devolve às palavras de Von Bagh, ao descrever JBC como “um antigo no sentido nobre do termo, a personificação de uma cultura cinematográfica (compreendendo o cinema, escrevendo sobre ele, mostrando-o de forma eloquente) que parece ter desaparecido” -, é quando nos diz que, a acirrar a ferida da sua ausência, está a forma como, nos últimos anos, “a completa acessibilidade ao património trouxe uma falta de orientação, um vaguear num vazio”. E adiantava que “mais do que fazer um ciclo John Ford, o importante hoje é dar às pessoas pistas de leitura do Ford. O que faz falta é essa intermediação, essa contextualização, com alguma profundidade.”
“Escritos sobre Cinema” surge, por isso, não só como uma obra que contextualiza os filmes e reescreve a história, mas como “um acto coloquial” que nos convida para outros tantos mundos, a partir dos quais é possível olhar de volta para este, estranhá-lo imensamente e, desse modo, reconhecê-lo. José Manuel Costa entende que a “folha da Cinemateca” foi “uma pequena grande revolução”, cuja natureza era “ajudar-nos a passar ‘para o outro lado’”, cativando o nosso gosto para abrir-nos o campo de visão. E isto passava, como refere no prefácio, “pelo voo especulativo e o desafio ao imaginário, convidando, insisto, ao visionarismo do espectador. Mais do que descrever o que lá estava, a folha elaborava sobre o que o autor via, sem qualquer problema em ir para além do que um descrição objectiva caucionaria, no que penso ter sido um dos maiores trunfos de todos estes escritos.”