ISCTE. Contrato de documentário sobre tauromaquia tem “erro”, diz realizador

ISCTE. Contrato de documentário sobre tauromaquia tem “erro”, diz realizador


O gerente da produtora a quem o trabalho foi entregue pelo ISCTE-IUL por ajuste direto rejeita que o documentário seja para televisão. Protocolo entre o ISCTE-IUL e a Direção-Geral de Património Cultural desmente contrato e mostra que as verbas não provêm da universidade pública


No último ano, a tauromaquia – e as touradas, muito em particular – tem estado debaixo dos holofotes. As opiniões dividem-se, mas cada vez mais se perceciona que o não à continuação daquilo que para uns é uma tradição e para outros são maus-tratos a animais está a ganhar adeptos – que rejeitam que os dinheiros públicos sejam usados para a manutenção da atividade.

Este mês, o i avançou que o ISCTE-IUL encomendou um documentário para televisão sobre tauromaquia. E agora, contactado pelo i, o gerente da empresa à qual a instituição de ensino público adjudicou o serviço por ajuste direto diz que o contrato celebrado entre o ISCTE–IUL e a sua produtora Talentos Delicados – Produção e Realização de Programas de Televisão, Lda., para a “realização de documentário para televisão ISCTE-IUL”, como se intitula, tem “um erro” – indica que é para televisão – que é da responsabilidade “de quem o redigiu”. Carlos Papafina, segundo outorgante do contrato, afirma ainda que o erro é também responsabilidade “de quem leu” o documento, como ele, que o assinou “de boa-fé” sem ler com a atenção devida, uma vez que o acordado já tinha sido previamente discutido.

O gerente da produtora garante ainda o que também Luís Capucha, diretor do Departamento de Ciência Política e Políticas Públicas do ISCTE-IUL, já tinha afirmado: o documentário não será emitido em televisão e nem sequer é para divulgação pública, ao contrário do que se lê no contrato.

O documentário, como esclareceu Luís Capucha, integra o projeto “Tauromaquia, Património Cultural de Portugal”, do qual é coordenador. O projeto, por sua vez, “decorre do Orçamento Participativo do Governo cuja votação ocorreu em 2017, no sentido de preparar uma candidatura da Tauromaquia a Património Cultural de Portugal”, explicou na altura ao i. Contudo, nada disso é especificado no contrato ao qual o i teve acesso. Luís Capucha fez entretanto chegar ao i o “Protocolo de Colaboração entre a Direção-Geral do Património Cultural e o Instituto Universitário de Lisboa”, que especifica os moldes do dito projeto.

No documento lê-se então que “o projeto, de caráter científico, visa desenvolver um levantamento sistemático e atualizado dos elementos relevantes que caracterizam a cultura tauromáquica”, com “procedimentos multimétodo, incluindo a recolha e análise documental (textos, registos fotográficos, filmes e outras ferramentas de registo de imagens e sons), a realização de entrevistas a informadores privilegiados e a produção de documentários em vídeo e fotografia”.

Este “levantamento nacional dos bens da cultura tauromáquica” inclui, além de “rituais taurinos”, “profissionais e outros agentes da festa de toiros”, “artefactos e instrumentos específicos”, “expressões linguísticas”, etc., “as polémicas e controvérsias: o antitaurinismo, os seus argumentos e as suas práticas ao longo dos séculos, incluindo as proibições da festa de toiros e o seu desenlace, bem como as relações entre a cultura taurina e outras formas de cultura – cultivada e de massas -, nomeadamente no que essa relação envolve de dominação cultural no universo das culturas e das indústrias culturais”. Conclui-se, assim, que ao contrário do que o contrato assinado entre o ISCTE-IUL e a Talentos Delicados deixa transparecer – ao prever a “realização de documentário para televisão com duração de 30 minutos, que incide sobre tradições e costumes da tauromaquia nacional […] [com] imagens de uma corrida mista de toiros; testemunhos e imagens de figuras relevantes da tauromaquia portuguesa; recurso a imagens e vídeo de arquivo; filmagens com recurso a tecnologia de ponta (câmaras full HD 1920×1080 e 4K); sinopse que assinale os vários conceitos, designações, elementos, funções e técnicas do universo tauromáquico português, nomeadamente o cavaleiro, novilheiro, forcado, toiros, cavalos, tipologias das praças de toiros, toureiro a pé, toureiro a cavalo, pega, lide, procedimentos obrigatórios no regulamento tauromáquico (desembarque, reconhecimento, apartação, sorteio, embolação), bandarilhas, música, curros, campinos, médicos, veterinários, entre outros” -, o projeto contrapõe, afinal, as duas visões da tauromaquia.

Este fator, de resto, esteve no centro das críticas do deputado único do PAN, André Silva, que disse na altura que o documentário “não é sobre um determinado tema em que há uma perspetiva isenta e se colocam duas mundivisões em confronto. Não, isto é, de facto, um contrato para encomendar um elogio à tauromaquia” e “a realização deste documentário pressupõe, como se vê na cláusula primeira, que só vão participar os agentes da atividade”.

Quanto ao uso de verbas do ISCTE-IUL – instituição pública de ensino, financiada pelo Estado – para a realização do documentário, o “Protocolo de Colaboração entre a Direção-Geral do Património Cultural e o Instituto Universitário de Lisboa” confirma o que Luís Capucha já tinha dito ao i – que o dinheiro provém do Orçamento Participativo Portugal, uma iniciativa que permite aos cidadãos votarem em projetos por eles idealizados. A origem da verba, contudo, não é igualmente referida no contrato, que diz apenas que é o primeiro outorgante – o ISCTE-IUL – que deve assegurar o pagamento de cerca de 9980 euros mais IVA.

De resto, Carlos Papafina, o gerente da empresa Talentos Delicados, a quem o ISCTE-IUL adjudicou, por ajuste direto, a realização do documentário, é também responsável pelo canal de televisão Sol e Toiros e dispõe de um espólio significativo de imagens relacionadas com a tauromaquia, além de experiência na área – sendo esse o motivo, na sua visão, que levou à escolha da sua empresa para o trabalho.