O caso de Tancos é um mero pretexto, tal como era a pedra da famosa sopa do frade. Não passa duma farsa política e duma armadilha em que governo e Presidente da República se deixaram envolver, manipulados por certos “frades” interessados, por um lado, em cozinhar uma “sopa de pedra” envenenada contra um governo sustentado por partidos de esquerda e, por outro lado, em aproveitar a sofreguidão dum chefe do Estado desejoso de abalar a popularidade desse governo, para calar as críticas que uma direita desiludida e insatisfeita lhe vinha fazendo com insistência.
Infelizmente, o executivo tinha um erro de casting a exercer as funções de ministro da Defesa. Faltou a Azeredo Lopes determinação e força para exigir imediatamente às chefias militares a responsabilidade por um rápido esclarecimento de tão tóxica trapalhada. Além disso, só muito timidamente, quase inaudivelmente, se atreveu a sugerir o óbvio, ou seja, que não lhe competia a ele, ministro da Defesa, montar a guarda aos paióis militares nem verificar o estado da vetusta rede à volta deles. E esta é mesmo a parte mais ridícula da grotesca acusação que jornalistas e opositores de direita dirigiram ao ministro. É deveras estranho, aliás, que não tenha ocorrido a esses jornalistas e opositores responsabilizar o ministro da Administração Interna pelo roubo de meia centena de pistolas Glock duma armaria da PSP, ainda antes da farsa de Tancos.
Quanto ao Presidente da República, é óbvio que, apesar de ser tão perspicaz, não se deu conta de que, sendo por inerência comandante Supremo das Forças Armadas – e, por isso, última instância do poder político e militar -, mais tarde ou mais cedo também acabariam por lhe tocar à campainha, face à escalada de dúvidas e percalços em que é fértil a farsa de Tancos. Após a inevitável queda do ministro da Defesa, a imprensa de direita, ávida de “sangue e arena”, passou rapidamente a apontar a António Costa as suas armas (que não são as Glock roubadas à PSP). E também já há quem pergunte o óbvio: então e o que sabia o PR, comandante supremo das FFAA?!
Uma coisa é certa: a direita mais radical, dentro e fora do PPD-PSD, já conseguiu vergar o presidente deste partido, Rui Rio, pondo-o a vociferar em público contra o Orçamento do Estado e contra o governo, mostrando que também ele é muito capaz de dar largas à pior demagogia política. A farsa de Tancos já é, para Rui Rio, um casus belli contra António Costa. E se não se puser a pau – isto é, se não recolher a tempo a colher de pau com que também decidiu remexer nesta sopa de pedra -, vai acabar, logicamente, a questionar o comandante supremo das FFAA. O que seria motivo de grande regozijo para as extremas–direitas parlamentares: a do PPD-PSD e a do CDS-PP.
Nesta absurda e tóxica sopa de pedra, que continua a ferver no caldeirão da democracia portuguesa, não é só a extrema-direita – e o centro-direita a claudicar perante ela – que se regozija com o ambiente político malsão em que o país vive. Para avaliarmos a verdadeira dimensão desta perversa trapalhada, há que ter em conta o oportunismo e o ódio velho que o PCP continua a destilar contra o PS, apesar de ainda se sentir constrangido a sustentar o governo na Assembleia da República. Adaptando a táctica tão cara ao PPD-PSD durante o executivo do “bloco central” (1983-1985) – “um pé no governo e outro na oposição” -, o PCP recorre aos sindicatos da CGTP, que ele influencia e controla. Basta ouvir o dirigente comunista da Fenprof, Mário Nogueira, a destilar contra o governo PS todo o ódio que lhe vai na bílis, para se perceber que o PCP também está a remexer (indirectamente, pois claro!) nessa tão indigesta e perigosa sopa de pedra. Como pensa o PCP e Mário Nogueira o diz: o governo PS é de direita. E então, direita por direita, talvez mais valha, para o PCP, ter a de Cavaco, Rui Rio e Cristas em Belém e São Bento.
O que se passa não é apenas uma “grande agitação” política causada pelo OE 2019, em debate na Assembleia da República. Vai mais longe do que isso. Se observarmos mais de perto os propósitos de certos grevistas – em protesto contra um governo que, apesar das dificuldades e erros inevitáveis, é de longe o melhor que já tivemos nestas duas primeiras décadas do séc. xxi -, perceberemos que tais protestos não se confinam à legítima reivindicação de melhores condições salariais e profissionais. São protestos com outros objectivos políticos: para deitar abaixo o governo – caso em que PCP, PPD-PSD e CDS-PP estão de mãos dadas, numa cena nada original que tem precedentes – e tentar dividir as esquerdas (PCP incluso) que sustentam o executivo na AR.
Será apenas coincidência para quem acredita em bruxas. Mas é bem real a convergência entre, por um lado, as manobras e estratagemas urdidos contra o governo por uma direita radical (predominante no PPD-PSD e no CDS-PP) e, por outro lado, os protestos cada vez mais agressivos levados a cabo por vários sindicatos e ordens profissionais, como será o caso de sindicatos da PSP e da GNR, dos enfermeiros e enfermeiras ao melhor “estilo Ana Rita Cavaco” (ligados ao PPD-PSD), dos médicos agora representados por um bastonário assaz reaccionário e, claro, dos professores da Fenprof liderados por Mário Nogueira e os do sindicato da UGT, desde sempre ligado ao PPD-PSD.
Com eleições gerais à vista – para o Parlamento Europeu e, sobretudo, para a Assembleia da República -, o governo do PS vai ser objecto de tiro ao alvo durante todo o ano de 2019, quer por parte da direita radical, disposta a tudo para regressar ao poder, quer por parte dos partidos à esquerda do PS, sobretudo o PCP, disposto a tudo para recobrar forças e tentar sacar votos ao BE e ao próprio PS. Face ao cenário que descrevi, a questão que se coloca, quanto a mim, é a de saber onde situar a fronteira entre a legítima contestação ao governo e os ataques insidiosos e persistentes que ponham em crise o próprio regime democrático. A quem achar que eu exagero, recomendo que olhe bem para o que está a ocorrer no Brasil, nos EUA, nas Filipinas, na Turquia, na Hungria, na Polónia e noutros países duma União Europeia cada vez menos democrática.
Não nos iludamos: a farsa de Tancos tem sido o pretexto para confeccionar uma perigosa sopa de pedra capaz de intoxicar o debate político. Não é a deliciosa sopa que me leva a Almeirim de vez em quando. É uma zurrapa adulterada que está a envenenar a política e a democracia em Portugal. Aliás, nem sequer se sabe se só houve um assalto aos paióis de Tancos, através dum oportuno “buraco” na rede, ou se o caso não passa duma farsa para encobrir sucessivos “desvios” e um inventário que estava por fazer…
Escreve sem adopção das regras
do acordo ortográfico de 1990