Que o mercado transforma a mercadoria, ou melhor, que nem sequer há mercadoria nem mercado, apenas um pântano económico que passou a ser o único modo de conceber a Polis, estamos cansados de o saber, sabemo-lo fisicamente, sabemo-lo na apatia, na simpatia e na histeria, se tínhamos a ilusão de algumas áreas estarem protegidas dessa erosão, desenganemo-nos, elas estão cada vez mais expostas aos elementos corrosivos, o problema está num certo trompe l’oeil que nos rodeia de um glamour cultural que faz de um cenário apocalíptico um papel de parede para o seu salão. O mimo é o artista supremo num cenário mutante sem outro fundamento para além do estar disponível para exploração económica. O problema da submissão da arte à utilidade imediata, seja ela qual for, mesmo com fins pedagógicos, faz com que o contacto com a realidade da mesma se evite, se manipule com a melhor e a pior das intenções. Se se quiser aprofundar os diversos vetores desse problema, Silvina Rodrigues Lopes, com a intensidade e rigor que lhe são próprios, desenvolve-os no texto “A literatura como experiência”. Nesse mesmo texto Silvina mostra-nos como é uma ilusão julgar que a arte se libertou finalmente de ter uma função, mas que se submeteu à mais manipulável das funções, a de ser ARTE, face à qual devemos ter uma postura de adoração. Assim se dispõe a emanar uma aura que permitirá criar tantos negócios que se imaginam distribuidores de cultura. Perdendo a mobilidade de um acontecimento livre de um poder de gestão, criam-se recursos que se vão maquilhando conforme as necessidades de um público.
Transformar o que era (ou assim o víamos) um movimento de resistência num produto requintado de cultura é o que acontece a tanta boa gente levada pela conversa das pequenas transigências para que o que importa se mantenha em circulação. Mas o que é o que importa? e o que é pôr em circulação? Se o grande empresário cultural subiu a punho, e hoje entre os bustos gregos da sua biblioteca se olha modestamente como aquele que deu um contributo fundamental para o mundo português das letras, é algo que tem a sua importância, mas o que é que acontece hoje fora da cabeça do herói? Os livros sofreram uma inflação desmesurada, tornando-se inacessíveis à maior parte dos interessados, a gaveta dos autores é mudada para uma cómoda tão larga que se confundem os alhos com os bugalhos, e os tempos de produção dos livros são reduzidos ao mínimo, para que se mantenha a dinâmica espectacular das novidades. Nesta relação com o tempo começa outro grande perigo: o da tradução. Estando a falar de tradução literária o caso complica-se e as ferramentas diminuem. Este delicado assunto, tão debatido por tantos pensadores, tem algumas premissas de que não se deve abdicar, a necessidade de tempo, de um confronto repetido entre as línguas e os seus sentidos possíveis. Lembremo-nos do que Rimbaud respondeu à mãe quando lhe perguntou como ler o texto: “isso lê-se literalmente e em todos os sentidos possíveis”. O tradutor deve, pois, ter tempo para percorrer o maior número de sentidos que conseguir. Cada língua é um mundo de sentidos, traduzir não é transportar um pacote de uma margem para a outra. Escrever na sua língua é já um trabalho de tradução. Traduzir de outra Língua é ter de forma mais patente a estranheza que é presenciar um acontecimento e querer recriá-lo na sua Língua, recriação que será necessariamente outra coisa. Deste modo, todos os esforços de tradução são de louvar, todos os tradutores cometem erros, a questão é saber se lhes é dado tempo de alterarem os textos ou não. A obra completa de Rimbaud recentemente editada, creio ser um exemplo da pressão editorial para que o circo das novidades se mantenha afastado dos tempos mortos. O livro tem o bom carácter de ser bilingue, o que permite ao leitor de língua francesa de ter acesso ao original. Mas o seu alvo é o leitor de português, aí, em geral, o texto é transportado de uma língua para a outra como se se tratasse apenas de questões técnicas, sem “marcas do desespero”. As excepções são algumas, onde se tenta inovar a disposição do poema, e se cometem erros mais graves, vou apenas citar um desses poemas onde a pressa faz estragos consideráveis. No poema: “Ó estações, ó castelos”, Rimbaud é transformado num pequeno feiticeiro de Oz com tendências pietistas. “Ó estações, ó castelos! / que alma não tem mazelas? / ó estações, ó castelos! / Magia, que ninguém elude, / da ventura fiz o estudo. // viva, oh viva cada vez / que canta o galo francês.”, a alma sem mazelas fica bastante longe da “alma sem defeitos” pois não é a uma vida dolorosa que Rimbaud se refere, não se trata de comiseração, mas de algo bem mais substancial, é a ideia de perfeição da alma que é posta em causa, ela e todo o poderio clerical, que alma não é digna do cantar do galo, da euforia dos pés à cabeça, do ver-se clarim? Quanto à “Magia, que ninguém elude, da ventura fiz o estudo.” é incompreensível o destaque da Magia como centro do verso, “fiz o estudo mágico da felicidade, que ninguém engana”, não se trata de um truque de cartas que ninguém elude, mas de um estudo que é mágico, um estudo que ninguém engana pois só o começa quem mergulhar de alma e corpo, Robert Duncan diz da felicidade “quero dizer, claro, que a felicidade ela mesma é uma floresta na qual ficamos perplexos e desnorteados (bewildered, turn wild) onde devimos selvagens, ou aí moramos como Robin Hood, fora da lei e em casa.” é neste parentesco que leio o estudo mágico da felicidade. “viva, oh viva, cada vez / que canta o galo Francês.” “O vive lui, chaque fois / Que chante le coq gaulois”, ignorar o “ó, viva ela” (talvez a felicidade, no masculino em francês) pode ser uma opção, mas dizer o galo francês em vez de gaulês é ignorar toda a temporada no Inferno onde está pintado a vermelho a importância para Rimbaud do povo Gaulês. A ventura continua, num tom sentimental tão estranho ao jovem Arthur. Se a poesia tem a “desvantagem” de não dar dinheiro, que a sua tradução pelo menos tenha a vantagem de ter tempo.
“Fizeste bem em partir, Arthur Rimbaud! Os teus dezoito anos refratários à amizade, à malevolência, à estupidez dos poetas de Paris, assim como ao zumbido da abelha estéril da tua família ardenesa um pouco demente, fizeste bem espalhá-los aos quatro ventos, lança-los sob a lâmina da sua guilhotina precoce. Tiveste razão em abandonar o átrio dos preguiçosos, os cafés dos mija-liras, pelo inferno das feras, pelo comércio dos manhosos e o bom-dia dos simples.
Este impulso absurdo do corpo e da alma, esta bala de canhão que atinge o alvo quando o faz explodir, sim, é aí a vida de um homem! Não se pode, indefinidamente, ao sair da infância, estrangular o próximo. Se os vulcões mudam pouco de lugar, a sua lava percorre o grande vazio do mundo levando virtudes que cantam nas suas feridas.
Fizeste bem em partir, Arthur Rimbaud! Ainda somos alguns a acreditar, sem provas, a felicidade possível contigo.”
René Char