Se número de morador de favela não se sabe, só se estima, sondagem só mesmo de boca por este lugar: a Favela do Moinho, bem no coração da capital económica do Brasil. Se não há números, não há sondagens, é confiar no que se diz e o que se diz é que “o povo é todo Haddad” nesta que é a última favela do centro de São Paulo. Uns 5 mil habitantes, estima-se, entre construções de tijolo e umas quantas que vão sobrando de tábua. Deste lugar que muitos paulistanos desconhecem, se alguém não vota Haddad, então é porque nem vota. Na Favela do Moinho, o que se diz é que só o guarda da linha vota Bolsonaro, que em São Paulo venceu na primeira volta com 44% dos votos. Haddad não teve nem metade.
“Cuidado!” É um comboio que vem. O Moinho fica entalado entre duas linhas de comboio, dos lados, e o viaduto Eng. Orlando Murgel, por cima. É um outro segurança que grita para um homem que ignora o aviso da passagem de comboio e cruza a linha. “Tem hora que você tem que gritar com esse cara. Se não, ele se mata aí à toa.”
O comboio já foi. "Tem primo, sobrinho aqui?” Não. Perguntamos sobre eleições, sobre o assunto Bolsonaro-Haddad por aqui. “Eu não moro aqui. Só trabalho. Mas o povo é todo Haddad, o povo não gosta de Bolsonaro, não. Aqui, só os seguranças mesmo é que gostam. Mas eu voto em Haddad também, esse daí é que é Bolsonaro”, e aponta para o colega ao fundo da cabine de concreto. Não terá mais que dois por dois metros este cubículo em que trabalham quatro, revezados em turnos de 12 horas.
Outro comboio. Comboio aqui não pára, atravessa, não é meio de transporte, é perigo de morte. “Olhe moça, tudo doido aqui. Esses ‘nóias’ se matam. Deixa eu ver suas fotos só.” O muro, um graffiti para Haddad, que entre 2013 e 2017 foi prefeito, um gato deitado ao balcão da venda, o comboio. “A gente não quer aparecer em foto.” E falar sobre as eleições, querem? “Não entendo nada disso, eu tenho 20 anos e nunca votei.” Porquê? “Preguiça.” O telefone toca, desaparece. Mas o colega fica. “Isso são muitas perguntas… Você é mesmo jornalista? Os jornalistas nem pisam aqui.”
Aviso de mais um comboio. Ensurdecedor. Passaram-se uns dez minutos e há de ser o terceiro. Sempre uns 30 segundos, talvez mais, até ser possível retomar a conversa.
E aí continua: “Eu não confio em ninguém, nem nos meus amigos. Você confiaria em mim? E você vem lá do outro lado do planeta aqui na favela fazer entrevista para perguntar do Haddad?” É. “Eu não voto, nunca votei, e não entendo nada disso.” No Brasil, o voto é obrigatório a partir dos 18, mas a partir dos 16 vota quem quer. Wagner tem 20. Passa os dias por aqui, junto à venda do lado de cá do comboio. Pouca gente pára. A maioria segue direto. E a maioria são mães que trazem as crianças de volta da escola. Ao colo, pela mão, às vezes várias. Pelo fluxo, não há de ser longe daqui a escola. E são cinco da tarde, as aulas hão de ter terminado há pouco.
Bandido bom “Em Portugal tem pena de prisão também?” Tem, claro. O que não tem é candidato a presidente defendendo que “bandido bom é bandido morto” — palavras de ordem de Jair Bolsonaro para a área da segurança pública, com as quais apenas 37% dos brasileiros discordam, revelou um inquérito do Ibope de março deste ano. “Esse safado está ganhando o bagulho aí para presidente.”
Afinal Wagner até entende de política. Talvez o problema seja outro, talvez seja estar certo de que o seu voto “não muda nada”. E um “não vai mudar nada aqui” é bem diferente de um “não vai mudar nada" dito num bairro como Higienópolis, para onde se mudou grande parte dos habitantes iniciais dos Campos Elíseos. Basta olhar para os edifícios que sobram, decadentes, dos que no final do século XIX foram construídos por um grupo de empresários suíços que compraram os terrenos para construir um novo bairro que seria o grande centro. O grande centro dos ricos. No tempo em que ainda não tinha sido tomado por pobres, do tempo em que ainda não havia a Cracolândia e o consumo de crack com que João Doria, o último prefeito, do PSDB, tentou de novo acabar. Não foi o primeiro. Como os anteriores, não conseguiu.
“Não mudar nada” aqui não tem a ver então com o resultado da disputa para o segundo turno das presidenciais brasileiras que se decidem no próximo domingo, ao que continuam a prever as sondagens, para o lado de Jair Bolsonaro, do Partido Social Liberal. “Vou votar para quê? Para esses cara enriquecer? Para os cara aí mandarem a polícia atrás de nós, para os cara pegar para matar que nem mataram o Leandro?”
Leandro de Souza Santos. 18 anos. Morto por policiais da Rota, batalhão de elite da Polícia Militar de São Paulo durante uma operação na Favela do Moinho com quatro tiros dentro de uma habitação. Os policiais alegaram legítima defesa, mas o laudo residuográfico feito às mãos de Leandro deu negativo. Não foram identificados vestígios de pólvora, não houve provas de que tenha disparado. Palavra contra palavra, o Ministério Público mandou em agosto arquivar o caso.
Mas esse está longe de ser o último problema da comunidade do Moinho, com que João Doria, do PSDB (Partido da Social Democracia Brasileiro), prefeito que sucedeu a Haddad e governou São Paulo até agora, prometeu acabar, como medida de combate ao tráfico de droga. A promessa, há um ano, foi a da criação de “habitação digna e correta” para estas famílias e “ao mesmo tempo eliminar a existência da comunidade”. Porque, cita o G1 da Globo, há traficantes que “lamentavelmente utilizam esta comunidade para armazenamento de drogas e armas”.
Preso ou solto, Lula
Antes de Doria, foi Haddad o prefeito de São Paulo. E antes de Haddad, Kassab. De Orlando Kassab, do PSD (Partido Social Democrático), acredita-se na comunidade que terá sido o mandante do fogo que em 2011 destruiu centenas de habitações que não puderam voltar a ser construídas. De Haddad que o sucedeu, tiveram pelo menos uma visita que se encontra no YouTube ainda, do tempo em que foi candidato à prefeitura de São Paulo.
Tempo melhor foi o da Marta, é o que dizem. Como Manuela d’Ávila, a candidata a vice de Haddad nas presidenciais cujo segundo turno se disputa já no próximo domingo, é Manu, é assim que se referem a Marta Suplicy. “A Marta, quem mais fez pela gente aqui”, diz Lurdes, baiana em São Paulo faz muitos anos.
É ela quem recolhe o correio de vários moradores na sua caixa. A sua casa é das que ficam logo ali à entrada. 350 reais por mês de aluguer. “O Doria falou que queria acabar com isso daqui porque ele acha que é aqui o Moinho, no coração de São Paulo, que mantém os ‘nóia’ da Cracolândia.”
Pior para Lurdes, só a história de Leandro. O processo pode ter sido arquivado mas a história não se esquece por aqui. Que o menino estava de costas, que foi uma injustiça. Que a polícia entra e mata. Que não dá para entender que os brasileiros votem em alguém que fale em distribuir armas. Que não dá para entender que os brasileiros votem em alguém como Bolsonaro. Não importa contra quem, mas que se entende ainda menos contra Lula.
Erenilde, ex-doméstica, que veio também da Bahia com o sonho de São Paulo, trabalhar em casas de família, que já morou na zona sul, na periferia, e depois, quando foi mãe e deixou de dormir no emprego, veio para o centro, até ao Moinho, vota PT também. Claro. Explica como o vídeo em que Haddad é acusado de ter deitado fora uma Bíblia é mentira.
“Meu voto é Lula”, volta Lurdes. “Minha família toda na Bahia, desde que meu pai morreu, é tudo PT. Nesse tempo não tenho ido fazer política na rua, mas faço direto, votando nele. No Lula, no petezão!” E Haddad? “Haddad é PT, Haddad é Lula. Preso ou solto, voto Lula.”