As pegadas de Walser

As pegadas de Walser


Não viu o velho que me parecia Walser, isso vi eu, a Terapia do Riso que aos domingos de manhã organiza a Gedenkbibliothek, e que a mim me parece uma coisa muito porca, uma liturgia para copistas


Dei de caras com a orgia de copistas da Gedenkbibliothek perseguindo um velho de chapéu que a início me recordou os familiares mortos de passeio pelas cidades – não se deve tocar-lhes no ombro, dizer pai, tio, irmão ou o que seja, nesse momento dissipam-se, são outra pessoa – e, mais tarde, talvez pela cara dura, minhota, me pareceu muito Robert Walser na neve, nos momentos em que levava o chapéu na cabeça e não, como é habitual nas fotografias do último internamento, na mão do guarda-chuva. Vê-lo assim dá a impressão de que espera um comboio e isso, claro, não pode ser. Em Herisau Walser orquestrava uma redução extrema. Reduzia-se como anos antes reduzira a caligrafia, os papéis, e sobretudo caminhava, caminhava muito, talvez caminhasse para se minimizar, a verdade é que morreu caminhando, era dia de natal, enfim, isto para dizer que se calhar Walser era como Manuel Puig, que ao fim de 40 anos longe da Argentina queria regressar “como una mirada sin cuerpo. Como quando ves una película. Quedar reducido a una mirada, ser un par de ojos, de oídos… Mas allá del alcance del dolor“.

Walser, ou devo dizer o velho que eu fingia ser Walser, e que, no que importa, o era – enfim, não regresso ao início, talvez para dizer apenas que não lhe toquei no ombro –, a figura, chamemos-lhe assim, seguiu norte, para lá de Kreuzberg, e não entrou, portanto, na Gedenkbibliothek, não descobriu que tudo lá é ruidoso, não pediu café com leite frio, não pensou que as pessoas sentadas às janelas enormes de noite deixariam de ver o exterior e ficariam diante de enormes espelhos públicos, e não descobriu mais tarde, muito mais tarde, que é assim mesmo, parece que o mundo foge ou se volta contra elas; e não foi averiguar a estridência do lado do bar, e não se sentou, como eu fiz, ensimesmado, próximo da maravilha ou do ataque de pânico, já não sei dizer, e não viu, enfim, sete ou oito pessoas caminhando, saltando, ululando atrás de uma mulher em ponto-limite, não se amedrontou, como eu, com a doença que ela transportava ao ar livre, ou com os berros:

Uh, uh, ah ah ah

Uh, uh, ah ah ah.

Não viu o velho que me parecia Walser, isso vi eu, a Terapia do Riso que aos domingos de manhã organiza a Gedenkbibliothek, e que a mim me parece uma coisa muito porca, uma liturgia para copistas, que, está claríssimo, tentam ali a cura para o que sabemos incurável, executam uma cerimónia sem sacralidade ou Tempo e que, bem vistas as coisas, de nada serve, na próxima semana há de novo reunião, o delírio esgota-se, é preciso de novo acenar, bater com os joelhos, gritar, evangelizar, e ter esperança, isso é o essencial, penso de fora, que não se note a grossura das carteiras nos bolsos, os óculos sem armação. Quero dizer: os sinais da modernidade da qual tentam escapar de olhos cerrados, como se a um funâmbulo não se explicasse que a corda é interminável e ele, contraindo todos os músculos para não tombar, sorrisse à mesma.

Isto tudo num domingo, dia que na Alemanha dá a impressão de ser um viático para que as pessoas não morram, tudo se paralisa para poupar vida, não a gastar demasiado, é um dia, portanto, semelhante às gargalhadas obedientes da Gedenkbibliothek, as mesmas que agora me fazem regressar a Walser – talvez tenha fabricado a memória do começo, a verdade é que há muito vi por lá alguém muito parecido com um tio materno igual ao escritor suíço, mas divago – e ao Instituto Benjamenta de “Jakob von Gunten”, romance no qual Walser, que em vida estudou para criado e mordomo, ergue uma escola à verdadeira obediência, uma fábrica de Bartlebys, como escreve Vila-Matas, cujo primeiro parágrafo, se me dessem a escolher, introduziria de bom grado à liturgia da mulher-limite: “Aqui aprende-se muito pouco, falta pessoal docente e nós, os rapazes do Instituto Benjamenta, jamais chegaremos a nada, quer dizer, amanhã seremos todos pessoas muito modestas e subordinadas.”

 

Jornalista

Escreve à quinta-feira