As notícias de encomendas suspeitas enviadas a personalidades políticas dominaram ontem a ordem do dia nos Estados Unidos. Pela manhã, os Serviços Secretos revelaram ter intercetado dois pacotes com “potenciais engenhos explosivos” dirigidos para as casas da antiga secretária de Estado e candidata democrata à presidência, Hillary Clinton, e do antigo presidente Barack Obama. Já no dia anterior, uma outra encomenda tinha sido descoberta na casa do milionário e magnata liberal George Soros, em Bedford, Massachusetts.
As autoridades suspeitam que as encomendas têm a mesma origem por os engenhos serem semelhantes ao enviado a Soros, segundo o “Washington Post”. Mas se a situação já era preocupante, ao longo da tarde de ontem escalou rapidamente. O edifício do canal de televisão CNN em Nova Iorque também recebeu uma encomenda suspeita, com as instalações a serem evacuadas ao final da manhã. A encomenda era dirigida ao antigo diretor da CIA, John Brennan, e à Time Warner, proprietária da CNN. Os pivôs Jim Sciutto e Poppy Harlow foram apanhados desprevenidos em direto, enquanto noticiavam os engenhos dirigidos a Obama e Clinton, vendo-se obrigados a interromper o programa e a sair do edifício. O presidente do canal, Jeff Zucker, escreveu uma carta aos funcionários a explicar que o edifício foi “evacuado por excesso de cautela”. Os funcionários puderam, ao final do dia, regressar ao edifício.
Mais tarde, os gabinetes da congressista Debbie Wasserman Schultz, na Florida, do governador de Nova Iorque, Andrew Cuomo, e da senadora democrata Kamala Harris foram também evacuados depois de receberem pacotes suspeitos (no último caso, dirigido ao antigo procurador-geral Eric Holder). “Não ficaríamos surpreendidos se mais engenhos aparecessem”, disse Cuomo em conferência de imprensa. Pouco depois surgiu mais um nas instalações de triagem do correio da Câmara dos Representantes em Capitol Heights, no estado do Maryland, segundo a CNN, dirigido à congressista democrata Maxine Waters.
Soube-se depois que o pacote enviado para o governador Cuomo não continha explosivos, mas uma nota dos Proud Boys, um grupo de direita envolvido em confrontos físicos nas ruas com manifestantes de esquerda.
As sucessivas notícias deram origem ao pânico e a casos falsos, como geralmente acontece nestas situações. Foi precisamente o que aconteceu, por exemplo, no jornal “San Diego Union-Tribune”, na Califórnia, quando uma encomenda suspeita apareceu na receção. O edifício foi evacuado, mas era falso alarme. O pacote não tinha mais do que um livro, sapatos e um saco de batatas vazio.
Com a hipótese de todos os pacotes estarem relacionados entre si, as autoridades norte-americanas sentiram a necessidade de dar uma conferência de imprensa para acalmar os ânimos e explicar a situação. “Parece que um indivíduo ou indivíduos enviaram vários pacotes semelhantes”, explicou Bryan Paarmann, agente especial do FBI e responsável pela divisão de contraterrorismo de Nova Iorque, acrescentando que parecem ser “bombas de tubo” – engenho explosivo artesanal com uma secção de tubo selada, com material explosivo, e cujos fragmentos podem ser letais. Sobre a encomenda na CNN, o comissário da polícia de Nova Iorque, James O’Neill, afirmou que era um “engenho explosivo verdadeiro” e que continha pó branco, porventura antraz, que seria espalhado com a explosão.
Ato de terror “O que vimos aqui foi um esforço para aterrorizar. Isto é claramente um ato de terror, para tentar minar a nossa imprensa livre e líderes deste país através de atos violentos”, disse o presidente da Câmara de Nova Iorque, Bill de Blasio. “O povo de Nova Iorque não será intimidado.” Declarações partilhadas pelo governador Cuomo: “Não vamos deixar que estes rufias mudem o modo como vivemos as nossas vidas.”
Enquanto as autoridades ainda analisavam os pacotes, as reações sucediam-se quase em simultâneo. “Estamos bem, graças aos homens e mulheres dos Serviços Secretos”, reagiu Hillary Clinton. “É um tempo de profundas divisões, mas temos de fazer tudo o que pudermos para unir o nosso país”, acrescentou. E, aproveitando a oportunidade, apelou ao voto em candidatos que promovam a unidade dos norte-americanos. A família Obama manteve-se em silêncio ao longo do dia de ontem, com a CNN a dizer que o ex-presidente e a ex-primeira-dama não tinham alterado as agendas.
A polarização da política norte-americana rapidamente contagiou a situação. “Isto é culpa sua”, acusou Philippe Reines, antigo assessor de Clinton, referindo-se ao “incitamento e tolerância ao ódio” do presidente Donald Trump. “Sabemos o quão duro é Trump: esconde-se atrás de tweets e tira bebés dos braços das mães”, acusou o governador Cuomo. “Vamos esclarecer uma coisa: a América é grande por rejeitar a sua agenda cheia de ódio fanático e sexismo”, acrescentou.
Ao longo dos últimos dois anos não têm faltado acusações do chefe de Estado à CNN, acusando-a de produzir fake news e de ser o “inimigo do povo”, e a Hillary Clinton, chamando-lhe “desonesta”. E, em pleno processo de confirmação do juiz Brett Kavanaugh para o Supremo Tribunal de Justiça, acusou George Soros de pagar a “manifestantes muito mal-educadas” para dar uma imagem negativa sobre o juiz. Soros tem sido um dos principais alvos da extrema-direita populista, seja na Europa ou nos EUA.
“Enquanto a responsabilidade é do indivíduo ou indivíduos que enviaram estes engenhos letais para casa da minha família e ao sr. Obama e à sra. Clinton, não consigo vê-lo dissociado da nova normalidade de demonização política que hoje nos assola”, escreveu Alexander Soros, filho de George Soros, numa coluna de opinião do “New York Times”.
Mas Trump não se remeteu ao silêncio. Logo nos primeiros momentos reagiu aos incidentes secundando a condenação do seu vice-presidente, Mike Pence. “Concordo plenamente”, escreveu, partilhando uma publicação de Pence onde se pode ler que “condenamos as tentativas de ataque contra o antigo presidente Obama, os Clinton, a CNN e outros”. “Estas ações cobardes e desprezíveis não têm lugar neste país”, garantiu Pence. A Casa Branca reagiu pouco depois pela voz de Sarah Sanders, porta-voz da administração Trump, ao dizer que “todos os responsáveis por estes atos devem ser responsabilizados até aos limites da lei”. Trump reagiu mais tarde, pessoalmente, numa conferência de imprensa, junto com a primeira-dama, Melania Trump (ver páginas seguintes).
Numa tentativa de unidade, o senador Marco Rubio, da Florida, escreveu no Twitter que “um ataque a qualquer norte-americano, seja ele democrata, republicano ou independente, é um ataque contra os EUA”. “Se tentarem matar qualquer um de nós, terão de nos enfrentar a todos”, desafiou o senador. E, em reação aos comentários contra Trump, o republicano voltou ao Twitter para denunciar que “alguns já estão a ceder à tentação de reagir ao ataque terrorista atribuindo-lhe [a Trump] a culpa”. “Nenhuma pessoa sã ou bem-intencionada, por mais partidária que seja, faria isso”, criticou Rubio.