Por esta altura do ano, o sol começa a desaparecer a partir das 18h30 e a luz elétrica falta desde sábado na freguesia de Samuel, concelho de Soure. Até irem para a cama, Maria Helena Costa e António Costa jogam às cartas, iluminados por um candeeiro a petróleo. “Estivemos a jogar às cartas. É assim o nosso serão. Às dez e meia ele vai para a cama e eu fico a fazer palavras cruzadas, não há mais nada para fazer”, diz ao i Maria Helena.
Assim, estão também outros 100 mil portugueses, às escuras. O casal dedica-se agora a arranjar o telhado, o jardim e tudo o que ficou destruído pelo furacão Leslie do último sábado à noite. Compraram 23 telhas para remediar a situação, já que o empreiteiro da zona não pode ajudar, porque ficou com a casa destruída em Buarcos, Figueira da Foz. Maria Helena colocou taças para apanhar a água que cai na sala e na casa de banho, devido à queda de uma placa da chaminé, enquanto António mostra o limoeiro destruído: “As plantas estão todas partidas. Esta foi a melhor árvore que tive durante a minha vida, agora veio isto e não tenho nada”. Os prejuízos são visíveis, sobretudo quando abrem o frigorifico e as arcas. Se ficarem muito mais tempo sem eletricidade, “as carnes vão estragar-se, já não falta muito”.
Sem eletricidade e com muito pouca água, o casal está incontactável e Maria Helena pensa em comprar um rádio a pilhas para ouvir as notícias. “A minha filha veio de Coimbra para ver se estávamos bem, porque não temos comunicações”, refere. Até ontem, nem a proteção civil, nem os bombeiros, nem os representantes das autarquias estiveram em Samuel. “Ainda não apareceu ninguém. Nem a perguntar se as pessoas precisam de alguma coisa; nada. É inconcebível o presidente da Junta não passar nas povoações a perguntar se é preciso alguma coisa”, concorda o casal.
João Paulo, comandante dos bombeiros de Soure, explica ao i que as freguesias mais afetadas foram Samuel e Granja do Ulmeiro. “Com a chuva, nota-se uma evolução maior, porque as pessoas, não tendo telhado, têm mais prejuízos”. Entre casas de primeira e segunda habitação estima-se que cerca de 5600 tenham sofrido danos, sendo que, conforme indica o comandante, “ainda não há um número certo de casas de primeira habitação. O município não fez esse levantamento”. Adianta ainda que “os bombeiros estão no terreno e a GNR também. Inclusive nós, bombeiros, temos grupos de fora a dar apoio, nomeadamente o grupo da Guarda e uma brigada da FEB, Força Especial de Bombeiros. Estamos a fazer aquilo que se pode. Neste caso, a prioridade são as pessoas: identificar quem tem dificuldade, quem precisa de intervenção nas próprias habitações”.
Ainda na freguesia de Samuel, está Paula Curado. Vive no início da aldeia e admite que ainda não apareceu ninguém para ajudar. Além da sua cadela Soneca, as velas são agora a sua companhia, já que ficou sem jardim e sem plantas para cuidar. Cozinha à luz das velas e à noite faz malha para se entreter. Já procurou geradores, mas estão esgotados. “Não há geradores em lado nenhum, a loja estava cheia de gente, mas não havia para ninguém”, desabafa Paula. Não se lembra de ter passado uma noite como a que viveu no sábado. “A casa ficou cheia de lixo e o barulho do vento, nunca ouvi nada assim, parecia que ia voar tudo. O meu marido tentou abrir a porta e nem conseguiu”. Agora, o problema maior é a comida que se estraga. “Deixei muito dinheiro no talho. Tinha acabado de comprar um porco que me custou 270€. Fora o que está nas outras arcas. Se não vier luz, vai tudo para o lixo”, afirma.
Sobre a situação da eletricidade, o vice-presidente da Câmara de Soure, Américo Nogueira, refere ao i que grande parte do município está sem luz. “Neste momento, toda a zona oeste do concelho não tem eletricidade. Estamos a aguardar a vinda de geradores da EDP e do exército”. O vice-presidente do município de Soure assumiu que a EDP prometeu quatro geradores e, até àquela altura, ainda não tinha chegado nenhum. Por este motivo, a câmara está à procura de geradores para alugar. O ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, tinha garantido que todo o concelho teria energia ainda na noite de domingo, uma situação que continua por se verificar. Já o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, reconhece que o maior problema é, de facto, a falta de eletricidade e que “é dramaticamente urgente para a vida das pessoas”.
Os prejuízos no concelho ultrapassam um milhão de euros, pelos danos em pavilhões, escolas, centros de saúde e até o próprio edifício da câmara. Durante a manhã de ontem, algumas ruas de Soure foram cortadas e os alarmes avisaram a população do risco de derrocada de uma das torres da igreja.
Em Granja do Ulmeiro já há eletricidade, mas os pinheiros e os eucaliptos caídos cobrem as estradas e as ruelas da aldeia. “Isto aqui foi tudo, tudo. Quando acordei, pensei que tinha havido um assalto, as portas todas partidas, os vidros todos partidos”, diz João Luís Cruz, um pastor que ficou sem o estábulo onde tinha o rebanho de ovelhas. “Agora não tenho onde deixar as ovelhas, tenho de as levar para ao pé de casa”.
Nos cafés e restaurantes da zona, o tema é comum em todas as mesas: os estragos do mau tempo e os prejuízos. São raros os telhados que conseguiram manter todas as telhas e raros os postes de eletricidade que continuam inteiros. Entre conversas, é possível ouvir: “a sorte é que a loja está aberta para ir lá comprar telhas e chapas para remediar. Aquilo hoje estava cheio. Continuamos é à luz das velas”.
Figueira da Foz. O oásis ficou destruído De Soure à Figueira da Foz, o rasto de destruição não passa despercebido. Não é possível fazer a viagem entre os dois pontos sem ver árvores no meio da estrada e fios de eletricidade pendurados. A zona da Figueira da Foz foi das mais afetadas e não foi só junto ao mar. No sábado, em Caceira, que fica a cerca de sete quilómetros da cidade, uma noite que prometia festa numa escola de samba, revelou-se a pior das vidas de Pedro Abrantes e Elisabete Abrantes. Só conseguiram sair de casa de uns amigos depois da meia noite e “a ir para casa foi muito complicado, muitos destroços de árvores, um pavilhão de chapa tinha voado para o meio da estrada. Chegámos a casa e também não tínhamos luz. Foi muito complicado”, recorda Elisabete. Estiveram às escuras até ontem à noite e a luz que há agora não dura muito, “não é certo que tenha sempre. Não temos televisão, não temos telefone, não temos internet”. Além disso, as telhas estão esgotadas na Figueira da Foz. Para substituir as que voaram ou que ficaram partidas, é preciso esperar.
Já junto à marginal, estava Artur Pereira. Durante a tarde de ontem, dedicou-se a levar para o lixo os restos dos toldos da sua loja Boutique da Rotunda. Voaram todos. Os vidros das montras ficaram partidos e Artur ainda nem quis fazer as contas ao prejuízo, pois também as janelas e estores de sua casa foram quebrados pelo vento. Em relação a apoios, ainda não foi comunicado nada aos proprietários das lojas. “Vou recorrer ao seguro. Pessoas da câmara? Não se vê ninguém”, diz.
Esta loja não é caso isolado. Percorrendo a marginal, desde a Figueira da Foz até Buarcos, não há um estabelecimento que tenha ficado intacto. E, tal como em Soure, não há conversa de café que tome outro rumo. Só se fala no furacão e, sobretudo, na falta de luz.