O que os comentadores ignaros da margem de cá do Atlântico não sabem sobre o Brasil é que a direita brasileira tem uma longa tradição de corrupção, sempre que está no poder. Tradição essa que passou, por exemplo, por “Ademar tem calça nova!”, gozação do povo com o antigo governador do estado de São Paulo Ademar de Barros (1901-1969), o tal que “roubava mas fazia” e clamava nos comícios que em bolsos dele nunca entrara um único cruzeiro. Mas que passou, também, pela “impugnação” de Fernando Collor de Mello (n. 1949), eleito presidente do Brasil em 1989, que acabou por renunciar ao cargo em Dezembro de 1992 – antes que fosse aprovado o processo de impugnação por graves denúncias de corrupção – e cujo mandato foi marcado pela extinção de 920 mil postos de trabalho e por uma inflação de 1200 por cento ao ano, resultado das políticas neoliberais que pôs em prática. Tradição de corrupção que, agora, desaguou no actual presidente “à força”, Michel Temer, acusado de corrupção até à raiz dos cabelos, tal como os seus “apaniguados” que montaram o “golpe” contra a presidente Dilma Rousseff (da qual Temer era o vice-presidente), expulsando-a do poder.
É simples e fácil, para os comentadores ignaros, dizer que foi a corrupção no PT de Lula e de Dilma que provocou a ascensão espectacular de Jair Messias Bolsonaro – deputado obscuro, ex-capitão do exército, fascizante, racista, homófobo, inculto, com ódio aos pobres, adepto da venda livre de armas e crítico da ditadura militar brasileira (1964-1985) por não ter torturado e matado muito mais gente –, que agora está à beira de ser eleito presidente do Brasil. Que o PT foi minado pela corrupção, não me custa admitir. Mas do que também não duvido é do que está realmente por trás da candidatura do ex-capitão Bolsonaro (que até tem um ex-general como candidato a vice-presidente). Desde logo, as forças armadas brasileiras, profundamente reaccionárias (como são todas na América Latina), aliadas da alta burguesia e das igrejas mais retrógradas (como a IURD de Edir Macedo) e, sobretudo, dos grandes potentados económicos e financeiros, urbanos e rurais, de toda a direita brasileira, com o apoio decisivo dos órgãos de comunicação (e propaganda) propriedade dessa plutocracia, que há mais de 20 anos não via maneira de desalojar a esquerda do poder – mais cor-de-rosa com Fernando Henrique Cardoso e mais encarnada com Lula da Silva e Dilma Rousseff. Bolsonaro é apenas o testa-de-ferro da aliança de militares, evangélicos, latifundiários, alta burguesia e plutocracia.
Sabe-se como é grande a vulnerabilidade dos regimes democráticos, sobretudo em períodos de crise mais profunda. Porque, sendo a democracia o território de excelência para o exercício das liberdades públicas, também é um território propício à demagogia mais desenfreada e ao populismo mais extremado. A consciência de tais perigos não é só de hoje – é de há muitos séculos, nomeadamente desde a Antiguidade Clássica. Na tragédia grega “As Suplicantes”, de Eurípedes (480-406 a.C.), dedicada às mães dos sete generais mortos no cerco de Tebas, no decurso da Guerra do Peloponeso, Teseu defende a Atenas democrática, que não tem dono nem tirano, que é livre porque é o seu povo que a governa e elege anualmente os seus chefes, em que o dinheiro não tem nenhum privilégio, em que o rico e o pobre dispõem dos mesmos direitos. E o porta-voz de Tebas, a cidade aristocrática, responde-lhe dizendo que uma cidade em que a multidão pretende governar está condenada a ser manipulada por “oradores que a exaltam e a fazem girar em todos os sentidos de acordo com o próprio interesse deles”. Além disso, acrescenta: “Como é que a multidão, que governa mal os seus próprios pensamentos, pode conduzir firmemente a cidade? Toda a sabedoria tem de amadurecer. Nada de bom se consegue à pressa. Um pobre trabalhador, mesmo que não seja ignorante, está impedido pelo seu trabalho de se dedicar por inteiro ao bem comum. Sim, aos olhos das honestas gentes, a cidade está doente quando um homem vindo do nada ganha crédito apenas porque os seus discursos conseguem fanatizar o povo.” Eis as duas faces de uma democracia!
Estamos aqui perante a chamada problemática elitista, colocada por pensadores como, por exemplo, Max Weber, Carl Schmitt e Joseph Schumpeter, a partir de fenómenos como o início do Estado-providência, a emergência dos partidos políticos modernos, a instauração gradual do sufrágio universal, a mundialização dos problemas, o predomínio da economia capitalista, o questionamento dos hábitos, costumes e visões religiosas tradicionais. Constatamos, todavia, que a problemática elitista, invertida e pervertida pelas “elites” de direita, também serve de fundamento à emergência de demagogos e candidatos a ditadores completamente incultos, cruéis e politicamente desonestos – como Donald Trump, Rodrigo Duterte, Recep Erdogan ou Victor Orbán – que conseguiram conquistar o poder pela via democrática, tal como Hitler, que é de todos o exemplo mais flagrante e aterrador. Actualmente, o exemplo mais inquietante é, sem dúvida, o do sinistro ex-capitão Jair Bolsonaro – num país à beira do caos provocado e explorado pela extrema- -direita, num cenário de grave crise económica e social –, que ameaça ser plebiscitado e eleito presidente do Brasil, dentro de alguns dias.
O Brasil é hoje uma sociedade maioritariamente niilista cuja liberdade se tornou violenta, exaurida dos mais elementares fundamentos morais e culturais, atolada em ressentimento e medo, presa de demagogos vulgares e brutais que exploram esse ressentimento estimulando a agressão e a cólera. Ora, o ressentimento social exerce-se sobre um bode expiatório, causa de todo o mal. Na Alemanha nazi, era o judeu. No Brasil de hoje, é o PT. O que disfarça bem as verdadeiras forças que se movem por trás da candidatura do medíocre e grotesco ex-capitão Bolsonaro. Para os comentadores de direita, é fácil culpar o partido de Lula, Rousseff e Haddad, ignorando deliberadamente o longo historial de corrupção das direitas brasileiras e dos vários golpes militares levados a cabo, pelo menos, durante o século passado.
Mas convém não esquecer, para rematar, o pernicioso papel desempenhado pelos jornais, as rádios e as televisões, completamente dominados pelos plutocratas e pelas igrejas evangélicas. No seu magnífico ensaio sobre “O Eterno Retorno do Fascismo”, o filósofo e ensaísta holandês Rob Riemen recorda o jornalista, dramaturgo, poeta, ensaísta, satirista e panfletário austríaco Karl Kraus (1874-1936), autor dessas admiráveis “cenas” que constituem “Os Últimos Dias da Humanidade”, ao criticar mordazmente os jornalistas que, a despeito das suas pretensões (não propriamente “boas intenções”), evidenciam uma tendência para minar a democracia, em vez de a proteger. Como é preciso encher páginas e vender jornais, estes tornam-se uma torrente interminável de banalidades, sensacionalismo e disparates. Segundo Karl Kraus, a linguagem dos jornais diários deixa de ser o meio mais importante para transmitir conhecimentos e serve apenas para difundir ideias feitas, slogans e propaganda. As rádios e, sobretudo, os canais de TV esmeraram-se na afinação dessa linguagem simplificadora, enganadora e sensacionalista. Hoje, mais do que nunca, os meios de comunicação de massas, ou mass media, são a melhor escola para os demagogos – e não me refiro apenas aos da direita, mas também aos oriundos da esquerda, como esse inacreditável Nicolás Maduro na Venezuela. Todos eles, mass media, demagogos e populistas, retiram o seu poder do facto de o povo, à força de se alimentar de uma linguagem que mais não faz do que simplificar e distorcer tudo e mais alguma coisa, não querer compreender mais nada nem querer ler, ver e ouvir coisas diferentes daquelas que eles lhe transmitem. E este é, sem dúvida, o maior perigo que uma democracia enfrenta.
Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990