Esconjurando as sombras negras que se avizinham


A exacerbação imprudente de algumas contradições permitiu seccionar a sociedade e tem impedido a formação de uma visão coletiva e solidária capaz de conduzir à formulação de um futuro mais justo para todos


Um pouco por toda a parte, vamos assistindo ao desenvolvimento e afirmação de aguerridos movimentos de extrema-direita.

O fenómeno iniciou-se, como sempre, na Europa, aí foi ganhando amplitude e coerência ideológica, e depois, por vezes com configurações diferentes, foi-se desenvolvendo nas Américas.

Alguns desses movimentos não têm ainda força para, diretamente, determinarem os destinos políticos dos Estados, mas conseguem já influenciar os partidos conservadores e de direita tradicional aí existentes e que, em alguns casos, governam.

Acontece, por exemplo, na Alemanha e na França, onde os partidos da direita tradicional têm vindo sistematicamente a deslizar para posições próximas dos seus concorrentes da extrema-direita.

Mesmo na Espanha vemos surgir movimentos, como o Vox, que têm como objetivo imediato – e já conseguido – pressionar ideologicamente os partidos mais preponderantes do espetro político à direita.

Nas Américas, o fenómeno desenvolve-se privilegiadamente em torno de figuras providenciais, como recentemente aconteceu nos EUA e parece poder vir a acontecer no Brasil.

O reforço da extrema-direita faz perigar o que resta da herança democrática e humanista que influenciou toda a Europa depois da ii Guerra Mundial, tendo permitido, depois, a derrota das suas últimas ditaduras fascistas e libertando, mais recentemente, muitos países da América de regimes sanguinários.

A vontade de algumas das principais forças democráticas e liberais da Europa e da América de ignorar as verdadeiras razões de tal fenómeno leva-as a não se moverem e, nalguns casos, parece mesmo torná-las coniventes com ele.

Tendo claudicado perante o neoliberalismo – cujos imperativos políticos e económicos são destruidores da cultura e dos mecanismos de solidariedade social –, desinteressadas, assim, progressivamente da luta contra o crescimento das desigualdades que, durante muito tempo, foi afinal o combustível que as fez afirmar-se politicamente, muitas dessas forças tergiversam continuamente.

Em alternativa, passaram a erigir como objetivo “emancipador” um conjunto de preocupações, as mais das vezes justas, mas relacionadas, quase exclusivamente, com direitos individuais, grupais ou comunitários.

Essa deriva individualista, fundada na preponderância ideológica e mediática de setores sociais que, precisamente, ascenderam em resultado da anterior luta contra as desigualdades, levou ainda a que algumas forças democráticas fossem alienando a preocupação fundadora com a situação das classes trabalhadoras, tendo-se progressivamente isolado delas.

Além disso, a “crise” que o neoliberalismo potenciou e parece, coerente e interesseiramente, não querer ultrapassar, expôs, de maneira crua, muitas contradições socioculturais arreigadas que servem agora de bandeira à extrema-direita.

A exacerbação, muitas vezes generosa mas imprudente, de algumas dessas contradições permitiu também seccionar a sociedade, tendo obstado à formação de uma visão coletiva capaz de unir os prejudicados pela “crise” num movimento solidário por um futuro mais justo para todos.

Hoje, para além de segmentos menos conscientes das classes trabalhadoras, são precisamente os setores emergentes, cuja ascensão social a “crise” frustrou, que, politicamente desorientados, se deixam cair nas mãos de salvadores providenciais.

Frequentemente, sem uma representação política coerente e apta a valorizar os seus interesses e a integrá-los, precavidamente, num projeto comum e mais generoso de sociedade, isolados e temerosos, os que integram tais camadas são facilmente manipulados.

Reencontrar projetos coletivos democráticos, humanistas e amplamente aceitáveis, capazes, por isso, de unir todos quantos o neoliberalismo alienou, será pois a única esperança contra as sombras que se avizinham.

 

Escreve à terça-feira