Com o pânico, várias famílias ficaram sem saber o que fazer. Enquanto viam as chamas do incêndio de Pedrógão Grande aproximar-se de casa, e sem qualquer autoridade que as orientasse, optaram por fugir nos seus carros ou à boleia de amigos. Mas a pressa, misturada com a falta de visibilidade provocada pelo fumo, levou a que alguns acabassem por embater noutras viaturas ou em árvores caídas na estrada. Forçados a sair dos carros, acabaram por não sobreviver. Foi o que aconteceu ao casal Nunes, a Mário Carvalho ou a Felismina Nunes que, ao abandonarem as suas habitações em direção a um local seguro, acabaram por se enfiar na boca do fogo.
Estas são algumas das histórias que integram o capítulo vi do relatório dos peritos liderados pelo investigador Domingos Xavier Viegas, que o i tem vindo a divulgar. O documento, que em cerca de 100 páginas relata as histórias das 66 vítimas do incêndio de Pedrógão Grande, foi encomendado pelo governo aos investigadores, mas acabou por não ser divulgado.
Família Nunes
Baseado no depoimento recolhido em 28 de agosto, junto de Manuel Antunes Costa e de Marcelo Nunes
“A família de Aníbal Henriques Nunes (47 anos) era constituída pela sua esposa Gina Maria Rosa Antunes (40 anos) e pelos seus dois filhos Marcelo Antunes Henriques Nunes (19 anos) e Bianca Antunes Henriques Nunes (4 anos). Vivem numa casa na parte alta de Nodeirinho, na rua da capela. O Aníbal trabalha na exploração de madeiras e a Gina é funcionária num estabelecimento escolar em Pedrógão Grande. O Marcelo entrou recentemente na universidade e a Bianca frequentava o infantário em Pedrógão Grande.
A mãe de Gina, a Maria Odete Rosa Rodrigues (62 anos), vivia igualmente na casa da família.
No dia 17, estavam todos em casa, com exceção do pai, que estava na zona da Graça. Pelas 15h30 receberam uma chamada telefónica de uma amiga do Marcelo, que vive em Vale da Manta, informando-o de que havia um incêndio em Escalos e que parecia ser perigoso. Como já lá estavam meios de combate, não deram grande importância ao assunto, pois seria mais um de muitos incêndios que estavam habituados a ter na região. Mais tarde telefonou uma colega da mãe, com igual mensagem.
O Marcelo disse-nos que a partir desta hora começou a dizer à mãe que deveriam sair e ir para Vila Facaia, para estarem mais seguros.
Pelas 20 horas – 20hl5 decidiram sair de casa, no Toyota Corolla, a gasóleo, de 1994, conduzido pela Gina, indo o Marcelo à frente, ao lado da mãe e a Odete e a Bianca atrás, esta sentada no lado direito numa cadeira para criança. Tendo descido a rua que passa pelo centro do Nodeirinho, passaram pela casa do Diogo, onde viram vários carros a manobrar em diversas direções e tomaram a estrada em direção a Vila Facaia.
Quando se aproximaram de Vila Facaia, a cerca de um ou dois quilómetros de Vila Facaia, a estrada estava cheia de fumo e com fogo e o Marcelo disse à mãe que era melhor voltarem para trás. Como a estrada era estreita e não tinha visibilidade para fazer inversão de marcha em segurança, fizeram o trajeto de volta, em marca atrás, passando para a faixa contrária, para virem dentro da mão, em direção a Nodeirinho. Com o fumo mal viam a estrada e foi apenas a perícia da Gina e o conhecimento que tinham daquela estrada, que lhes permitiu percorrer os cerca de três a quatro quilómetros de volta a Nodeirinho, daquela forma. Deve notar-se que se trata de uma estrada relativamente estreita, com curvas e com alguma subidas e descidas.
Quando vinham a chegar a casa, encontraram-se com o pai, que vinha com o seu veículo de trabalho, um comercial Peugeot, a regressar a Nodeirinho. Foram juntos para casa.
Ao chegarem a casa, a Odete pediu ao Marcelo que fosse apanhar uma roupa, que estava estendida no quintal, o que ele fez de imediato. No pouco tempo que demorou a fazer esta tarefa, observou que por trás da casa estava tudo a arder.
Decidiram então fugir de novo. Voltaram a entrar no carro do qual a Bianca não tinha chegado a sair. O pai dera-lhes a indicação de se dirigirem para o tanque, mas com a confusão da saída nem o Marcelo nem a Gina se aperceberam desta recomendação. Entretanto o Aníbal foi a pé, passar por casa do seu pai, Manuel Nunes, para o levar para perto do tanque.
Quando desceram pela rua principal de Nodeirinho, estava tudo a arder, incluindo uma casa de arrumos da família do Diogo Carvalho Costa.
Ao chegarem ao tanque o Gonçalo lembra-se de ver por lá mais de quinze pessoas, na maioria dentro do tanque, mas não viu o seu pai nem o seu avô paterno. Lembra-se de ouvir o Diogo dizer:
– Vamos fugir todos daqui, que o fogo queima tudo!
Por outro lado, a Maria do Céu, que estava no tanque com o seu marido e a sua mãe, terá dito à Gina para não fugirem, porque o incêndio estava por todo o lado.
Sem fazer caso desta advertência, com o receio do fogo e a preocupação de levar os seus filhos e a sua mãe para um local seguro, a Gina arrancou de novo com o carro, sendo seguida por outros dois carros.
Tomou a estrada da Rua da Fonte em direção ao IC8 e a Figueiró dos Vinhos. Quando se teriam afastado uns 160 metros do tanque, numa estrada em subida, ao passar por uma casa, a Gina encontrou novamente o fumo e o fogo na estrada. Pouco depois de fazer uma curva para a direita, tomou a decisão de voltar para trás, mas não tinha condições para fazer inversão de marcha, pois tinha dois automóveis imediatamente atrás dela, que lhe dificultavam a manobra. Ainda embateu no que estava mesmo atrás. Uma vez mais, fez marcha atrás e passou para a faixa de rodagem contrária, para voltar para Nodeirinho. Logo que a Gina mudou de faixa, estes dois carros prosseguiram na direção que levavam, afastando-se de Nodeirinho.
Depois de recuar alguns metros, com o fumo denso, a Gina perdeu a visibilidade e o carro saiu da estrada pelo seu lado esquerdo, caindo numa encosta, sobre vegetação que estava a arder.
Com o vento que se fazia sentir e como o carro estava ligeiramente inclinado sobre o seu lado esquerdo, tinham muita dificuldade em abrir as portas. Se o carro tivesse andado mais uns metros por aquele terreno poderia ter capotado, mas felizmente assim não foi. O Marcelo tentou retirar a Bianca para a frente, mas com os cintos de segurança, não conseguiu desprender a menina. Então conseguiu abrir a sua porta e foi de imediato tentar abrir a porta de trás, para retirar a irmã. Esta porta estava trancada por dentro e por isso não conseguiu abri-la. Com o calor do incêndio teve de se afastar do carro e embora tentasse aproximar-se de novo, não o conseguiu.
A Gina perdeu a consciência, mas conseguiu sair do carro pela sua porta e foi imediatamente retirar a sua mãe. Abriu a porta e chamou a mãe, para ela sair, mas não obteve qualquer reação. Ainda se manteve perto do carro até que conseguiu chegar à estrada.
Fez sinal a um carro que passava, para parar. Inclusivamente abriu-lhe a porta de trás, mas o condutor não fez caso e prosseguiu com a porta aberta. Logo em seguida passou outro carro, em direção a Nodeirinho e a Gina fez o mesmo, abrindo a porta do carro, mas desta vez atirando-se para dentro do carro, pedindo ao casal que ia no carro que socorresse a sua mãe e filha que estavam dentro do carro. Este condutor parou um pouco mais adiante e tentou aproximar-se do carro, mas tal não foi possível.
O Aníbal chegara com o seu pai junto do tanque, pouco depois de a Gina ter saído. Ficou naturalmente preocupado com a situação. Meteram-se dentro do tanque, juntamente com as restantes pessoas que ali estavam, para poder suportar o calor.
O Marcelo foi andando, em estado de choque e com queimaduras, ao longo da estrada. Vestia uma T-shirt, calções e chinelos. Pouco depois de sair do carro perdeu um chinelo e tencionava continuar, mas ao ver que o alcatrão derretido da estrada lhe estava a queimar os pés, voltou atrás, para recuperar o chinelo e continuar, em direção ao Nodeirinho. Com muita dificuldade, mas por vezes correndo, conseguiu chegar junto do tanque.
Algum tempo depois chegou a sua mãe, com as pessoas que a tinham trazido. Seriam as 21 horas, quando isto sucedeu.
Ao princípio, com o escuro e com a emoção, não se deram conta que a Gina estava queimada no braço e nas pernas, mas depois como a Gina começou a manifestar dores e mal-estar, deram-se conta das queimaduras. Foram buscar uns cobertores, que molharam em água e puseram-nos em sua volta.
Começaram imediatamente a pedir socorro, fazendo chamadas diretamente para o 112 e para o comandante dos Bombeiros Voluntários de Pedrógão Grande. Terão sido feitas mais de 60 chamadas para o 112. O Marcelo utilizou por vezes o telefone da esposa de Sidnel. Esta senhora estava com eles no tanque e também queria saber do marido e do sobrinho Rodrigo. Dos serviços de emergência diziam que iam enviar uma ambulância, ou que já o tinham feito. À 1 hora uma pessoa amiga, que passou ali de carro, ofereceu-se para os levar para Pedrógão Grande. A ambulância de socorro apenas chegaria pelas 3 horas, mas não chegou a parar no local onde haviam estado. O Marcelo atribui isto à falta de organização.
O Marcelo foi com os pais para Pedrógão Grande, para o Centro de Saúde, que estava convertido numa autêntica unidade hospitalar. Mais tarde a mãe foi levada para os HUC, mas o Marcelo não quis ir, uma vez que as suas queimaduras eram ligeiras. Ficou em casa de pessoas amigas em Pedrógão Grande. Foi levado também para os HUC, mas apenas no dia 18.
A Gina esteve na Unidade de Queimados dos HUC durante um mês e voltou depois para casa, em convalescença.
A casa da família Nunes não foi afetada pelo incêndio. Tanto quanto sabemos não teve pessoas a protegê-la durante o incêndio, mas não foi danificada. Duas casas situadas mais abaixo na mesma rua, perto da capela, foram, no entanto, seriamente danificadas pelo fogo.
Perguntámos-lhe o que achava que deveria ser feito, para evitar a repetição destes acidentes. Respondeu sem hesitações: um plano de evacuação. Não compreende que em Pedrógão Grande não houvesse um plano de evacuação. Poderia não haver condições para o aplicar, mas deveria haver um plano”.
Mário Carvalho
“Mário Fernando Antunes de Carvalho (49 anos) trabalhava na exploração de madeiras, em estreita associação com o seu sobrinho Diogo Carvalho. Residia em Figueiró dos Vinhos com a sua mulher Maria Paula Assunção Costa (51 anos) e um filho de 13 anos. No dia 17, logo que tomou conhecimento do incêndio, manteve-se em contacto com o Diogo, para saber da situação das plantações que estavam a explorar e, de modo especial, da segurança das suas máquinas, viaturas e outros equipamentos.
Cerca das 19h30 veio para casa e jantou com a mulher e o filho. Estava muito aborrecido com o incêndio, que já tinha causado grandes perdas em madeira que tinha comprado e outra que planeava cortar. Os seus empregados estavam no terreno a avaliar a situação e a procurar salvar as máquinas e a madeira.
Mesmo em casa começaram a ouvir um barulho ensurdecedor e como moram perto da estrada, aperceberam-se que havia muita confusão. Ao final da tarde faltou a luz e o telefone também deixou de ter rede. Logo depois do jantar saiu, dizendo que ia saber da mãe, que morava em Nodeirinho e de umas máquinas que tinha paradas lá perto.
Dirigiu-se na sua Renault Kangoo de 2016, pela EN236-1. Tomou a estrada para Nodeirinho e entrou pela estrada que passa por um depósito de água e uma antiga escola.
Nesse local terá sido visto por um residente, a manobrar uma máquina de trabalhar a madeira, mas pouco depois retomou a sua viatura para se dirigir a Nodeirinho. Com o fumo saiu da estrada e embateu num eucalipto mesmo à beira da estrada que é muito estrita.
Impossibilitado de prosseguir na viatura, saiu dela e prosseguiu a pé, pela estrada abaixo, em direção a uma passagem inferior, por baixo do IC8. Acabou por cair sem vida a cerca de 150 metros do local onde deixou a viatura e a da passagem inferior que supostamente lhe poderia dar abrigo.
É muito duvidoso para nós se a passagem inferior seria um local seguro, dada a carga de vegetação e o intenso fumo que haveria em volta. O pequeno túnel debaixo da estrada funcionaria como um canal para o vento e fumo e dificilmente teria condições de sobrevivência para alguém.
De noite a Paula Costa começou a ficar preocupada por o marido não voltar para casa. Tentou ligar-lhe por diversas vezes, durante a noite, mas sem obter resposta. No dia seguinte Paula Costa, que é enfermeira soube que havia mortos e feridos e foi informada da morte do marido”.
Felismina Rosa Nunes
Depoimento da nora Maria Manuela Conceição Santos (57 anos)
“A senhora Felismina Rosa Nunes (83 anos) vivia em sua casa, na aldeia de Ramalho, próximo das casas da filha e da nora com quem costumava almoçar ou jantar, de uma forma habitual.
No dia 17, a Felismina Nunes foi almoçar com a filha. Por volta das 17 horas a filha propôs-lhe que fossem para Figueiró dos Vinhos, pois era mais seguro, mas a Felismina Nunes recusou-se a ir. Ficou no lugar do Ramalho e dirigiu-se para sua casa.
Mais tarde foi com a nora até casa de uma vizinha no centro do lugar. Ao voltar, passou por casa do filho e da nora. O filho disse-lhe para entrar, pois já havia fumo e fogo, mas ela não parou sequer.
Pareceu-lhe que ia em direção à casa da neta. Para encurtar o caminho entrou num caminho rural, pois deveria considerar que o fogo já lá tinha passado. Com o fumo e a desorientação atravessou uma parcela de pinheiros jovens em direção à estrada de alcatrão e à casa. Terá morrido com o efeito do fumo e do calor.”