Há coisas que deveriam envergonhar- -nos coletivamente, enquanto portugueses, porque por elas somos todos um pouco responsáveis, do Presidente da República ao mais singelo cidadão, desde que tenha um mínimo de consciência cívica e política. Os outros, os que não têm, são vítimas indiretas.
O exemplo mais flagrante e recente é certamente o conjunto de factos que envolveu a tragédia de Pedrógão. Nela ocorreu em acumulação tudo o que uma sociedade civilizada, europeia e democrática deveria saber evitar.
Pedrógão começou muito antes do fogo e das mortes. Começou com a falta de limpeza das matas num país onde não se sabe o que é de quem e onde o Estado é incapaz de assegurar condições de segurança, desde logo naquilo que lhe pertence. Continuou quando o poder político decidiu, poucos meses antes do verão do ano passado, mexer criminosamente na estrutura da Proteção Civil e dos bombeiros, indicando gente que manifestamente não estava à altura, como os factos dramáticos demonstram amplamente e o Ministério Público agora evidencia. A esse falhanço clamoroso juntou-se o de umas forças de segurança impossibilitadas de atuar pela falta de orientações e todo um conjunto de deficiências de comando e comunicações.
Falhou o poder político antes, durante e depois de Pedrógão. As cicatrizes ficaram para sempre e assistimos agora à vergonha nacional de saber que nas obras de reconstrução pode ter havido desvios, roubos e má utilização de dinheiros do Estado ou de donativos privados. Pedrógão é das histórias mais tristes que há para contar sobre Portugal. É o retrato funesto de um país cheio de poderes e poderzinhos, de golpadas e contragolpadas, de favorecimentos e de esquemas.
E não é por se tratar de um meio pequeno onde é natural que as pessoas se conheçam e possam dar uma mão umas às outras. É porque as coisas são mal montadas, mal organizadas, mal executadas desde o início. Pedrógão e todos os seus casos colaterais são um paradigma. Houve discursos de circunstância, abraços e palavras de conforto que o vento em grande parte levou. Houve muitas promessas que objetivamente se sabia não iriam ser cumpridas. Na nossa realidade nada é linear. Para resolver qualquer coisa mais complicada que apareça, muitas vezes não há outra solução a não ser recorrer a um conhecimento direto e indireto, a chamada cunha. É assim que funcionamos há séculos. É um método que não vai desaparecer nunca da nossa cultura e tradição enquanto a organização coletiva não for fluida, transparente e, sobretudo, simples. Mas isso é precisamente aquilo que não se pretende. O segredo da abelha neste caso é o imbróglio da administração, da teia de leis, de regulamentos, de muitas e muitas coisas que é preciso ultrapassar para obter o que se quer e, tristemente, aquilo a que se tem direito e se nega a muitos cidadãos, sobretudo os que não têm capacidade de se defender ou de atuar. Um país assim é um país injusto. Este estado de coisas não tem a ver com este ou com aquele governo. Tem a ver com cada um de nós e com a soma que constituímos. Individualmente somos, em geral, pessoas boas e prestáveis. Coletivamente somos péssimos e ineficazes. E isso obriga cada um de nós a andar permanentemente à procura de uma solução para algo que o aflige.
É um mal endémico de que não conseguimos livrar-nos, por mais ricos que estejamos. Quando fomos o maior império do mundo também esfrangalhámos tudo. Soubemos organizar metódica e cientificamente as descobertas como hoje se faz a conquista do espaço. Mas a retaguarda, o nosso canto, foi esquecido. Não aprendemos, não emendamos e não sabemos organizar-nos de modo coerente e, sobretudo, transparente. As exceções que há, públicas ou privadas, são algumas, mas tão poucas que são efetivamente exceções.
A opacidade em tudo é, entretanto, cada vez maior. E maior fica à medida que os média vão definhando, que o jornalismo desaparece e que a informação está dominada pelas agendas partidárias, pelas empresas de comunicação, pelas muitas fake news que circulam entre nós nas redes sociais, que estão a veicular muito mais alarvidades e ataques pessoais do que denúncias de escândalos e falcatruas efetivas. Até porque, hoje, denunciar coisas nas redes sociais não é nada que fique à prova de anonimato, uma vez que os especialistas praticamente apanham o rasto a tudo.
Portugal está melhor, mais dinâmico e mais rico do que há uns anos. Ultrapassámos razoavelmente a crise mas, em substância, o país não melhorou. Para progredir não são precisas as tais reformas estruturais que alguns proclamam. Pelo contrário. Não é com revoluções que se avança. É com calma, sensatez e modelos pensados, ensaiados e testados. Fazer à pressa e em cima dos problemas não é solução. É, aliás, em grande parte por isso que acontecem tragédias como Pedrógão, situações graves como a do São João ou caricatas e perigosas como a de Tancos.
Jornalista