1. Afirma-se à saciedade que a verdade é um axioma crucial do regime político democrático. Porque adita à (essencial) legitimidade de direito, a (imprescindível) legitimidade de exercício do poder político do Estado. Governantes com legitimidade apenas no domínio formal do Direito, sem a correspondente legitimação pelos méritos da sua actuação, não passam de “anarcas institucionalizados” – susceptíveis, pois, de se converterem em tiranos implacáveis. Parece-nos, aliás, que a nossa afirmação da imprescindibilidade da verdade como premissa indispensável da legitimação do poder político democrático não sofre qualquer tipo de contestação: atente-se (apenas para evocar um exemplo recente) no frenesim estridente em que a nossa comunicação social se envolveu contra a alegada “relação difícil com a verdade” do presidente Donald Trump. O que não nos espanta: a nossa comunicação social – como, aliás, a generalidade da classe política já jurássica que frequenta os corredores do poder pátrio – é extraordinariamente notável na doutrinação de povos estrangeiros, na formulação de receitas para o sucesso político em países alheios; pena é que só não saibam aplicar tamanha genialidade política e compromisso com a verdade cá dentro. Apostamos que, acaso os deputados socialistas e o primeiro-Ministro António Costa fossem eleitos para o Congresso dos EUA ou para a Assembleia-Nacional francesa (atendendo à sapiência com que discorrem sobre as escolhas democráticas dos povos estrangeiros e o funcionamento das respectivas democracias), seriam políticos soberbos! Autênticos patriotas – o problema é que aqui, em Portugal, não passam da mediocridade…
2. Efectivamente, quem lê a generalidade da comunicação social portuguesa fica com uma (agradável) sensação de que os nossos jornalistas são um exemplo de temeridade no escrutínio dos agentes políticos – e os políticos são protótipos de servidores da causa pública (em rigor: os políticos socialistas, bloquistas). Contentemo-nos, no entanto, com a sensação; a vivência, a demonstração empírica desmente a narrativa oficial – revela-nos, enfim, que a política portuguesa, em tempos de geringonça, atingiu níveis preocupantes de farsa e de loucura. Podemos até, sem arriscarmos cair em hiperbolizações caricaturais, indagar se a República Portuguesa – em vésperas de comemoração dos cento e dezoito anos de implantação do regime republicano – não estará “lélé da cuca”. Limitando-nos às ocorrências políticas portuguesas das últimas duas semanas, poderemos relevar, aqui e agora, um conjunto de indícios de “lelismo da cuquice” que deverá suscitar a inquietação dos portugueses. Elenquemo-las, pois então.
2.1. Primeiro: a celeuma que gerou as críticas que foram dirigidas à decisão de Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa de não reconduzir Joana Marques Vidal no cargo de procuradora-geral da República. Ora, sendo a decisão de nomeação da procuradora-geral da República um acto político por natureza, afigura-se mais do que legítimo que suscite críticas diversas (no tom, no conteúdo…e nos protagonistas) quer pelos méritos próprios da escolha, quer pelo procedimento adoptado (que pecou claramente pela opacidade e insuficiência das justificações – porque contraditórias e não totalmente consonantes com a realidade histórica- avançadas pelo Presidente da República). A democracia postula isto mesmo: havendo divergência de opiniões no seio da sociedade, o espaço público terá necessariamente que contemplar as visões plurais sobre as opções políticas fundamentais realizadas pelo poder constituído. No entanto, como o Partido Socialista lida mal com a democracia e o pluralismo, surgiram logo múltiplas vozes – todas próximas do governo de António Costa – a contestar… a contestação. Ou seja, recorrendo à carta tão usual na forma de fazer política costista: o de criar a ideia de que as situações desagradáveis para o governo… não existem. São falsos problemas inventados pela “direita”. Tal como Pedrógão Grande teria sido apenas um “fenómeno natural” e Tancos, no limite, “nunca existiu” – a substituição da procuradora-geral da República seria um assunto natural que nem se percebe “porque se discute”. É o “modus operandi” socialista: exaltar todos (por mais pequenos e raros que sejam) os feitos positivos da sua governação; negar à exaustão, convictamente como qualquer “mestre da mentira”, os factos mais incómodos para o governo. Entendamo-nos: nunca ninguém afirmou que o mundo iria acabar com a substituição da PGR; apenas que é uma decisão cuja motivação política é nebulosa e a forma como foi feita revelou-se demasiado dúbia.
2.2. Segundo: Marcelo Rebelo de Sousa, inopinada e incompreensivelmente, veio responder às críticas que o ex-Presidente Cavaco Silva dirigiu ao (des)governo da geringonça sobre a decisão a que aludimos nas linhas anteriores. Ora, o objectivo de Cavaco passava por salientar a tendência cada vez mais acentuada dos socialistas para controlar o Estado e, por esta via, montar mecanismos de coacção sobre a sociedade. No fundo, é mais um passo rumo ao estilo que marcou o “socratismo” – quem não é por nós, é perseguido e punido. Tudo pelo PS; nada contra o PS. Basta, aliás, ver as reacções subsequentes dos portugueses (por exemplo nas redes sociais) para concluir que esta havia sido a interpretação dominante. Pois bem, Marcelo Rebelo de Sousa decidiu, “outta of the blue”, enfiar o barrete; numa combinação bizarra (mas já vulgar) entre as suas qualidades (conjunturais) de Presidente e a sua vocação (permanente) de comentador, Marcelo revelou-nos que a verdadeira intenção do seu antecessor foi atacá-lo a si. Resultado: António Costa passou, mais uma vez, incólume graças à omnipresença presidencial. Ao apresentar a escolha de Lucília Gago como uma sua escolha individual e pessoal (o que seria, caso correspondesse à verdade, contrário à Constituição), Marcelo Rebelo de Sousa ilibou o governo de António Costa de qualquer responsabilidade pelo que vier a suceder no futuro (mais ou menos próximo), blindando o primeiro-Ministro de quaisquer críticas.
3. Julgamos mesmo que se trata de algo inédito na prática constitucional portuguesa: nunca um Presidente da República assumiu de forma ostensiva as “dores” do chefe de governo, nem mesmo em cenários de coexistência (isto é, quando há identidade de filiação partidária entre Presidente e primeiro-ministro). Este apoio insólito de Marcelo a António Costa adensa, destarte, o rumor que já circula nos bastidores do poder e que se popularizou nos últimos dias: a assinatura de um “contrato-promessa” político entre Marcelo e Costa, pelo qual o segundo prometeu assegurar o apoio do PS à recandidatura (hoje mais improvável) do primeiro, mediante a condição (resolutiva?) de o Presidente não inviabilizar a substituição de Joana Marques Vidal… Será verdade?
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Escreve à terça-feira