Pedrógão Grande. Histórias de fenómenos provocados pelo incêndio

Pedrógão Grande. Histórias de fenómenos provocados pelo incêndio


O i teve acesso exclusivo ao capítulo VI do relatório de investigadores liderados por Xavier Viegas que o governo recusou divulgar. Hoje contamos como algumas das 66 vítimas mortais de Pedrógão Grande foram surpreendidas por fontes de radiação a uma altura próxima do chão


Na edição de hoje contamos as histórias de algumas das vítimas que escaparam às chamas do incêndio de Pedrógão Grande mas acabaram por ser supreendidas por um fenómeno descrito pelos investigadores liderados por Domingos Xavier Viegas: fontes de radiação. O cenário pós-incêndio e os relatos de familiares e amigos das vítimas indicam que durante o fogo se gerou fontes de radiação a uma altura próxima do chão, que aqueciam e por vezes queimavam tudo em volta. Terá sido essa a causa da morte de quatro amigos que tentavam fugir de Sarzedas de Sâo Pedro mas acabaram com o carro imobilizado, antes de chegar à estrada da morte. Terão saído da viatura com o cão que transportavam para prosseguir o caminho a pé. Morreram a poucos metros do carro, num local onde a vegetação não ardeu.

Também o casal Manuel e Maria Odete Bernardo terá morrido com a radiação a poucos metros da sua Mitsubishi Spacestar, com a qual tiveram um acidente depois de perderem a visibilidade por causa do fumo. O casal também tentava fugir de Sarzedas de São Pedro.

Contamos ainda a história de seis pessoas de Sarzedas do Vasco que tentavam fugir por uma estrada municipal e embateram num eucalipto.

Estas são algumas das histórias das 66 vítimas mortais do incêndio de Pedrógão Grande e que constam do capítulo VI do relatório de investigadores liderados por Domingos Xavier Viegase que o governo não quis divulgar. O i teve acesso em exclusivo ao documento e tem vindo a revelar as histórias das vítimas que estão nas cerca de 100 páginas do relatório.

Grupo de Sarzedas de S. Pedro

Baseado nos depoimentos de Valéria nabais, Belmira Rodrigues, Nuno José Lopes dos Santos e Manuel Fernandes

“Em Sarzedas De São Pedro, numa casa situada numa rua central da aldeia, muito próxima daquela que pertence à família de Valéria Nabais, com quem falámos, vivia o casal António Manuel Damásio Nunes (41 anos) e Eliana Cristina Fernandes Francisco Damásio (38 anos), naturais de Sarzedas de S. Pedro. Os pais de António vivem numa casa próxima, com o seu irmão mais novo, o Nelson André Damásio Nunes (32 anos).

A Eliana trabalhava na fábrica de lanifícios Albano Morgado existente em Sarzedas de S. Pedro há cerca de 15 anos. Esta fábrica pertence a Belmira Maria Correia da Conceição Morgado Rodrigues (41 anos), que é irmã do bombeiro Gonçalo Conceição, que perdeu a vida neste incêndio. Conhecia bem a Eliana e contou-nos que neste incêndio perdeu, além do irmão e da Eliana, outros três funcionários da fábrica.

A Valéria contou-nos que vira o Nelson Nunes sair de casa no seu carro, levando os pais, na mesma altura em que ela e a sua prima Rosa Isabel Simões se preparavam igualmente para fugir. Próximo do café de Sarzedas de S. Pedro, o Nelson dirigiu-se à prima da Valéria e pediu-lhe o seguinte:

– Rosa Isabel tomas conta dos meus pais?

Entregou-lhe assim os seus pais, contando que ela os levasse para Castanheira de Pera, onde estariam mais seguros. Ele iria voltar a casa para trazer o irmão e a cunhada, sendo sua intenção soltar o cão. De facto voltou para trás e recolheu o Nelson e a Eliana. O cão do casal acabaria por vir também com eles no carro.

No processo trouxe no seu carro também o Paulo Miguel Valente da Silva (36 anos), que trabalhava na indústria da madeira e vivia sozinho numa casa perto da sua.

Nuno José Santos, um residente em Sarzedas de São Pedro contou-nos que esteve com o Paulo Miguel Silva até às 19 horas ou 19h30. Por essa hora o Paulo Miguel, muito nervoso, disse que ia sair dali. Pouco depois terá apanhado a boleia dos amigos.

Os quatro elementos saíram num Peugeot 208, depois de um grupo numeroso de carros, com mais de trinta pessoas, que abandonaram a aldeia, nesse grupo iam também os pais de António e Nelson. Seguramente saíram depois de Valéria Nabais e dos dois carros que a acompanhavam.

Na estrada de acesso à EN236-1, um pouco antes do cemitério, terão sido apanhados no meio do fumo, perdendo a visibilidade e a orientação. Embora conhecessem bem a estrada, na curva para a esquerda, saíram da estrada pelo seu lado esquerdo. O carro terá ficado imobilizado e os seus quatro ocupantes, além do cão, saíram e prosseguiram a sua marcha pela estrada, na direção que traziam. Acabaram por morrer a pequena distância do carro. O carro que transportou o grupo foi completamente destruído pelo fogo.

Tivemos oportunidade de ver que não teriam sido atingidos pelas chamas. Observando a vegetação em volta – do tipo vegetação rasteira, essencialmente constituída por herbáceas e algumas árvores de cultivo, de pequeno porte – via-se que também não estava queimada. No entanto as árvores estavam deformadas pelo vento e “solidificadas” nesse estado, como costumam ficar as árvores queimadas, mostrando que teriam sido sujeitas a um fluxo de calor muito intenso, sem as queimar. Este mesmo efeito foi por nós observado em vários outros lugares e é consistente com o que descrevemos na análise do comportamento do incêndio de que terão existido fontes de radiação a uma altura próxima do chão, que aqueciam e, por vezes, queimavam tudo em volta.

Este mesmo efeito terá atingido estes quatro amigos, quando tentavam fugir da sua aldeia, em busca de uma maior segurança.

Segundo soubemos a primeira pessoa a encontrar os corpos foi Tiago Mendes, residente em Sarzedas de São Pedro, onde tem uma oficina de bate-chapas, que ia tentar socorrer os acidentados. Chamou a GNR que se colocou perto dos corpos.

O Maximiano Lopes, residente em Ervideira, onde sofrera a passagem do incêndio, foi cerca das 21h30 em direção a Moita, a casa dos seus pais, para saber como estavam. Infelizmente iria encontra-los já sem vida na sua casa que tinha ardido parcialmente. Para evitar o fogo, deslocou-se até ao ramal que conduzia ao cemitério de Sarzedas, seguindo a linha central da estrada, para se guiar no meio do fumo e seguir até à Moita. Contudo ao chegar junto ao cemitério de Sarzedas, viu um vulto, no chão, no meio da estrada, saiu do carro e aproximou-se, mas verificou que estava morto. Entretanto apareceu um GNR que lhe disse que havia mais 3 ou 4 corpos e que tinha que ir por outro lado”.

Casal Manuel e Maria Odete Bernardo

Baseado nos depoimentos de Nuno José Lopes dos Santos e Manuel Fernandes

“Maria Odete dos Santos Anacleto Bernardo (72 anos) e Manuel Bernardo (79 anos), viviam em Lisboa, mas tinham nascido em Sarzedas de São Pedro, onde tinham uma casa.

No dia 17, ao final da tarde deveriam estar em casa, quando se terão apercebido da aproximação do fogo. Não encontrámos pessoas que os tenham visto sair de Sarzedas de São Pedro, possivelmente porque a maioria dos residentes que viviam no trajeto que fizeram teriam já fugido também. Supomos que terão saído no seu Mitsubishi Spacestar, depois do Nelson Nunes e encontrado uma situação ainda pior na estrada, com o fumo e sem visibilidade.

Pouco depois de passar a última casa da aldeia, numa curva para a esquerda, cerca de 150 metros antes do local em que o carro do Nelson ficou, a carrinha saiu da estrada pelo lado direito, caindo numa ravina, mesmo na berma da estrada, ficando tombada sobre o seu lado direito, num equilíbrio periclitante, acima de um campo agrícola situado um pouco mais abaixo.

Tanto a Maria Odete como o Manuel Bernardo conseguiram sair da viatura, embora devam ter literalmente caído para o chão, ao abrir a sua porta lateral do lado direito do carro. A Maria Odete não se afastou muito da viatura e foi encontrada no espaço por baixo da parte de trás da carrinha. O Manuel Bernardo afastou-se uns 20 metros do carro, em direção a um campo agrícola, que não estava queimado, mas sim completamente crestado, tal como sucedera à vegetação próxima do cemitério, que se descreveu no caso anterior.

Algumas horas mais tarde Nuno Santos, residente em Sarzedas de São Pedro, foi em direção ao cemitério e viu o carro do casal Bernardo tombado na beira da estrada. Avistou os dois corpos e foi avisar o agente da GNR que estava na estrada. Este informou-o que já tinham conhecimento desse acidente também”.

Grupo de Sarzedas do Vasco

“Em Sarzedas do Vasco vivem em permanecia não mais de seis famílias, embora no verão e nos fins de semana, se juntem mais pessoas na aldeia. No dia 17 estariam 24 pessoas a pernoitar naquela povoação.

O senhor Hilário Carvalho, casado com Anabela Maria da Silva Lopes de Carvalho (55 anos), vive numa casa mesmo em frente do largo principal da aldeia, onde antigamente existia a eira e onde foi construído um lavadouro público. Neste largo e na rua que percorre a aldeia em direção à estrada principal, juntaram-se outros residentes, preocupados com a aproximação do incêndio.

O Armindo Rodrigues Medeiros (78 anos) residia um pouco mais acima e estava com uma moto roçadora a limpar ervas e pequenos arbustos em torno da casa e no quintal.

A sua esposa Maria Leonor Arnauth Neves Medeiros (55 anos) encontrava-se também na rua, assim como a Anabela Carvalho, numa altura em que se sentiu um vento muito forte, que empurrava as pessoas contra as paredes. A Maria Leonor caiu com este golpe de vento e ter-se-á magoado, ao ponto de a Anabela ter ido em seu socorro, ajudando-a a levantar-se e cuidando de uma ferida que fizera.

Possivelmente por se ter apercebido da situação de perigo que corriam e mais ainda ao ver a mulher magoada, o Armindo Medeiros dirigiu-se à sua garagem e retirou o seu carro, um Saab 9.3 de 2004, e dirigiu-se para a parte de cima da aldeia, levando consigo a Maria Leonor e a Anabela. O Armindo levava ainda posto o arnês de segurar a moto roçadora, indicando que terá saído com pressa. O casal levava no carro um cão.

Entretanto o casal José Henriques da Silva (75 anos) e Maria Helena Simões Henriques da Silva (55 anos), que viviam numa casa nesta mesma rua, mas um pouco mais abaixo, passaram igualmente pelo largo, subindo a rua a pé, tendo sido vistos por alguns moradores.

António Simões, que conhecia o José Henriques referiu-nos que ele tinha muita relutância em viajar nos carros de outras pessoas, mas tudo indica que nesta altura, juntamente com a sua esposa, terão entrado para o Saab de Armindo Medeiros.

O Hilário Carvalho não se apercebeu da saída da mulher nem deste grupo de pessoas, dado que estava nas traseiras da sua casa ocupado a protegê-la do fogo que, entretanto, tinha chegado à aldeia.

O carro seguiu pela estrada que vai da aldeia de Sarzedas do Vasco até ao cruzamento com a CM1158, que segue em direção ao IC8. Trata-se de uma estrada municipal, relativamente estreita, em subida e com algumas curvas. O seu piso é alcatroado, mas não está em bom estado de conservação. Acresce que a vegetação se desenvolve literalmente até ao alcatrão, tornado esta estrada muito pouco segura, para uma fuga com um incêndio por perto. Depois de terem percorrido cerca de 800 metros, certamente em condições muito difíceis, o carro embateu num conjunto de eucaliptos, numa curva para a direita, que o Armindo não conseguiu completar.

Todos os ocupantes saíram do carro, mas tomaram opções de sobrevivência diferentes, infelizmente sem sucesso.

A Maria Leonor e a Maria Helena permaneceram perto do carro, tendo sido encontrados na estrada a menos de dez metros da viatura com sinais de queimaduras.

O Armindo prosseguiu a pé na direção que levavam e conseguiu chegar ao cruzamento com a estrada CM1158. Tendo em conta a sua idade e a dificuldade do percurso, é notável que tenha conseguido percorrer 250 metros desde o carro até onde o seu corpo foi encontrado.

Houve familiares do Armindo que informaram que ele teria pedido por socorro.

Quatro das seis pessoas envolvidas neste acidente estavam relacionadas por parentesco com a família da Valéria Nabais. A Maria Helena Silva era irmã de Leopoldina a mãe de Valéria e a Anabela Carvalho era prima por afinidade da Valéria.

A Valéria Nabais relatou que no domingo tentaram contactar a Maria Helena Silva, e não conseguiam. Isto era estranho para a Leopoldina porque a irmã todos os dias a contactava. Souberam do sucedido na segunda-feira.

Só no dia 22 tiveram a informação da confirmação da sua tia e no dia seguinte do seu tio. Foi-lhes entregue a pequena mala que os tios levaram quando fugiram, cujo conteúdo estava intacto”.