Numa altura em que os projetos e obras da cidade estão sob fogo cruzado, Margarida Saavedra, arquiteta com um percurso de mais de 30 anos na Câmara Municipal de Lisboa, fala com o i sobre os bastidores do município. Defende que quem está na câmara está ao serviço das pessoas e que pode haver rapidez nos processos, se os funcionários assim o quiserem. Denuncia a pequena corrupção que existe na CML e procedimentos menos regulares de alguns responsáveis, como autos de embargo de boca. É particularmente crítica em relação ao mono do Rato – designação de que não gosta -, por “incumprimento de regulamento” e não por questões estéticas, que lamenta terem tomado conta do caso.
Que função destaca como fundamental no seu percurso pela CML?
Acho que a função que me define melhor, inclusive a minha entrada na política, foi o facto de em 1979 ter entrado para a CML por concurso público. Tenho imenso orgulho em dizê-lo e toda a minha vida eu fiz gestão urbanística na CML.
Já desde essa altura?
Entrei logo para a gestão urbanística e aí continuei sempre. Por um lado, isso deu-me um conhecimento enorme da cidade, por outro desenvolveu imenso o gosto que tenho pela cidade e criou-me sensibilidade para determinadas áreas e mercê disso foi a fase de que mais gostei na minha vida. Tive muitos desgostos, mas isso faz parte do percurso. Outra fase que me marcou também muito foi aquela em que fui diretora municipal de gestão urbanística. Quando entrei tinha cerca de 12 mil processos atrasados. Na sala onde eu fiquei só tinha o lugar da minha cadeira, estava tudo cheio de processos até cima. Havia uma sala com processos fechados à chave. Reuni com pessoas da CML e nós em dois anos limpámos aquilo tudo. E não dei um euro a mais a ninguém, dei liberdade de horário, marquei objetivos e todos cumpriram. Foi das fases mais interessantes da minha vida porque pude comprovar que, de facto, quando os funcionários querem, e com toda a câmara, é possível prestarmos um serviço público em condições e de modo a satisfazer as pessoas. Quem está na câmara e na política autárquica está ao serviço das pessoas. E sobretudo daqueles que não tendo visibilidade, precisam exatamente de nós para resolver os problemas. Isso deu-me uma sensibilidade muito grande para perceber que a maioria das pessoas não quer saber muitas vezes de grandes projetos, quer que lhe resolvam os problemas do dia-a-dia porque são esses que as chateiam. E acho que essa é a função da Câmara.
E esses pequenos problemas às vezes demoram mais a resolver do que grandes projetos.
Esses problemas não são resolvidos muitas vezes porque não têm importância nenhuma. E muitas vezes quem decide e está lá em cima nem sequer sabe o que eles exigem ou menorizam-nos. E é isso que torna a qualidade de vida má.
Deu particular ênfase quando disse que entrou por concurso público. Deu a entender que foi um processo de justiça. Esse tipo de processos na CML é uma exceção?
Neste momento não sei quantas pessoas entraram por concurso público. Na altura, tinha acabado de me formar e conhecia o engenheiro Abecassis e nunca lhe pedi nada. E ele um dia – ele tratava toda a gente por tu – veio-me dizer ‘então tu entraste na CML e não me disseste nada?’ e eu disse ‘gostei de entrar por concurso, porque acho que é por mérito’. E ele ficou chateado comigo, nunca mais me falou, mas a verdade é que acho que isso nos dá autoridade.
Mas acha que falta essa cultura do mérito na CML?
Acho que neste momento a cultura do mérito é muito relativa. Até porque existe uma coisa que não existia no meu tempo: os lugares de chefia são muitas vezes de nomeação. E as pessoas muitas vezes são chamadas a chefiar departamentos dos quais não conhecem nada, cuja estrutura não conhecem e de facto não têm autoridade. A autoridade advém-lhes é do poder que lhes têm dado, mas de facto quem tem de lhes obedecer não lhes reconhece autoridade. No tempo do doutor João Soares foi nomeado um chefe de divisão que era o arquiteto mais recente que tinha entrado na câmara. Foi nomeado dois meses de ter acabado o estágio e de ter entrado no quadro e pôs-se um problema muito complicado quando ele ia de férias: é que a lei diz que quando o chefe vai de férias é substituído pelo graduado imediatamente inferior, ora ele era o graduado mais inferior de todos. (risos)
Era substituído pelo mais antigo?
Não, porque ele não queria, porque o mais antigo sabia mais do que ele. E, portanto, acho que ele nunca chegou a ir de férias por causa disso. Isso prova a perversão que existe nos serviços. Por outro lado, também começaram a aparecer nos últimos anos do engenheiro Abecassis assessores. Entraram dois assessores e depois passaram a aparecer uma série de assessores, que levantam dois problemas do meu ponto de vista: ganham muito mais do que qualquer funcionário de carreira e depois têm uma função paralela que não se assume porque não podem fazer despachos nem pareceres. O mérito é uma coisa que conta muito pouco.
É interessante essa questão dos assessores. Acha que funcionam quase como um poder paralelo na CML?
Acho que há vários tipos de assessores. Há assessores que são exteriores às funções da câmara. Agora, não se pode é criar uma sobreposição paralela de funções, porque isso desautoriza quem lá está.
E ganha sempre aquele que é colocado por nomeação?
Ganha sempre até porque não tem responsabilidade nenhuma porque não pode assinar. E isso cria uma desconfiança em relação aos serviços, porque ou se confia ou não se confia numa máquina. E quando não se confia cria-se uma estrutura paralela. A máquina reage sempre mal: pode não reagir com greves, mas reage por inércia que é a pior coisa que pode acontecer.
É o pior passivo, não é?
É o pior passivo. Isso acontece e qualquer um de nós percebe porque que é que isso tem de acontecer. Outra coisa que acho má é o outsourcing.
Quando deixou as funções de diretora municipal?
Deixei de o ser no tempo do presidente Carmona Rodrigues. Fui requisitada para a Assembleia Municipal para trabalhar com a doutora Paula Teixeira da Cruz.
Quando sente que essa criação de um poder paralelo de um número excessivo de assessores começa a ganhar peso? Ou isso sempre foi assim?
Não foi sempre assim. Começaram a aparecer alguns assessores no tempo do engenheiro Abecassis, julgo que eram dois. No tempo do doutor Jorge Sampaio eles começaram a aparecer imenso e a partir daí foi sempre em crescendo.
Durante todos estes anos que exerceu diversas funções na CML encontrou certamente questões que eram eticamente mais questionáveis ou ilegais. Disse em determinado momento que lhe deixaram um envelope com dinheiro em cima da secretária. A corrupção é generalizada dentro da CML?
Não tenho essa ideia. Acho que há de facto pessoas que se aproveitam do sistema.
Muitas?
Admito que alguma parte, porque essas pessoas de um modo geral têm muito mais necessidade de ocupar o cargo do que outras. Todos nós, que temos capacidade de decisão, somos sempre na nossa vida sujeitos a situações dessas. Há os que o fazem e há os que não o fazem. E encontrei ao longo da minha vida muita gente que o não fez.
Não me referia apenas e só a grandes negócios, falava até da pequena corrupção, dinheiro debaixo da mesa.
Não julgo que seja generalizada, aliás, se tivesse encontrado algum caso de corrupção óbvio eu tê-lo-ia denunciado.
Esse envelope em cima da mesa não seria?
Foi com certeza um mal entendido que foi rapidamente resolvido [risos]. E a partir daí nunca mais fui incomodada.
Mas percebeu qual o sentido desse envelope?
Claro, toda a gente percebe qual o sentido, não é?
Não chegou a revelar qual era o valor desse envelope.
Abri, vi o que era e devolvi, não contei.
Devolveu a quem?
Ao próprio, como é evidente.
Qual foi a reação?
‘Muito bem, desculpe, foi engano. Não sei o que é que me passou pela cabeça.’
Não era ninguém da câmara.
Não, era um munícipe.
Que precisava de uma autorização.
Sim. Foi muito simples: abri, vi o que era, fui atrás dele e disse-lhe ‘olhe, esqueceu-se de uma coisa’.
Para um munícipe ter uma atitude dessas, não significa que isso é a normalidade com outros profissionais?
Julgo que muitas vezes essa ideia pode passar, mas acho que não se aplica a todos. Conheci muita gente que faria exatamente o que eu fiz.
Porque acha que as autoridades, que nos últimos anos têm investigado políticos – ex-primeiros ministros, ex-líderes de bancadas parlamentares – não têm uma atitude mais concreta e não tomam medidas em relação a essa pequena corrupção que sabemos que existe?
A nível de câmara, a medida contra a corrupção não pode ser a repressão mas a incrementação de boas práticas. Por exemplo: em termos de projetos urbanísticos – tentei fazer isto quando era diretora de departamento e acho que resultou – a lei prevê prazos e qualquer dirigente neste momento com os sistemas informáticos que foram implementados no tempo do doutor Santana Lopes na CML sabe perfeitamente, ao carregar num botão, onde está um processo e há quanto tempo é que lá está. E, portanto, no momento em que se insistir no cumprimento de prazos e em recusas devidamente fundamentadas, essas práticas começam a ter muito pouca capacidade de existir.
Têm-se adensado as críticas àquilo que o vereador Manuel Salgado tem feito nos últimos anos e até escreveu sobre isso no “SOL”. Os mecanismos internos que deveriam existir de combate ao abuso de poder não funcionam.
Neste caso não funcionam. Aliás, funcionariam porque eles são votados. A Sociedade de Reabilitação Urbana (SRU) foi votada, toda a gente sabia que ao passar para a SRU determinados assuntos, naturalmente se abriria a porta a adjudicações diretas, à escolha de arquitetos, está claríssimo. E portanto o mecanismo que poderia obstar a isso era o voto das pessoas que não concordariam .
Está a falar da Assembleia Municipal?
Na Assembleia Municipal e na câmara. Mas, de facto, quando as pessoas votaram na câmara sabiam que estavam a abrir a porta a essa situação.
E porque é que abrem?
Foi criada uma série de mecanismos urbanísticos, nomeadamente o Plano de Urbanização e os Planos de Pormenor, que mercê das circunstâncias e da própria inércia das estruturas, se tornaram muito pesados. Um Plano de Urbanização demora anos a ser aprovado e os Planos de Pormenor também. Criou-se uma figura muito usada neste PDM que é o chamado projeto urbano que é uma coisa expedita que não é sufragado nem pela câmara nem pela Assembleia Municipal. E, portanto, divide-se um plano grande em bocadinhos e esses bocadinhos vão rapidamente ser resolvidos. Eu acho que à custa dessa agilização de processos que seriam lentos, foram-se criando maneiras de fugir a essa lentidão. Por outro lado, acho que se criou uma coisa má para a cidade: é que todos os planos são feitos com base num calendário eleitoral e portanto quem está nesse calendário eleitoral tem quatro ou três ou dois anos em ordem decrescente para implementar uma ideia ou um projeto. Portanto, utiliza os mecanismos expeditos que estão ao seu dispor para o fazer, à custa daquilo que a lei pretendia salvaguardar com esses planos que era exatamente o escrutínio, a discussão pública e a discussão pelos órgãos competentes. Com a utilização sistemática do chamado projeto urbano, a Assembleia Municipal tem as competências reduzidas numa percentagem extraordinária. E isso é muito mau, porque é o órgão fiscalizador.
A SRU é quase como se fosse uma segunda câmara?
Neste momento, a SRU é uma segunda câmara para os assuntos que a câmara quer resolver de modo expedito. Porque para a SRU só vão processos ou partes que a câmara considera estratégicas.
Ou seja, é como se fosse uma via verde.
Exatamente, é uma espécie de via verde para os assuntos considerados prioritários.
E esses assuntos serão os grandes negócios imobiliários?
Os assuntos são aqueles que são óbvios, é o Plano Integrado de Entrecampos e toda aquela parte que a SRU resolve gerir sozinha, sempre ligados aos grandes negócios imobiliários porque normalmente a SRU atua em terrenos que não estão construídos ou que vão ser para construção. E curiosamente incidem sobre uma parte da cidade que é nobre, ao longo do eixo central.
Como olha para o Plano Integrado de Entrecampos?
Sou muito crítica. Olhando para o plano em si acho que é muito interessante, mas depois escalpelizando aquilo o que se começa a ver? Uma perspetiva muito bonita que toda a gente gosta e depois em baixo diz assim: ‘esta perspetiva pode vir a ser totalmente diferente de acordo com as circunstâncias’. E portanto estamos perante aquilo que se chama publicidade enganosa. Há quatro lotes que vão ser vendidos em hasta pública, a CML não tem projeto nenhum para aquilo, tem uma volumetria, e portanto é expectável que haja quatro entidades diferentes que vão comprar os quatro lotes diferentes. A possibilidade daquela fotografia fantástica que mostra quatro lotes homogéneos o vir ser é praticamente nula. A menos que a CML diga – o que não pode – em hasta pública que sejam feitos pelo mesmo arquiteto, é natural que cada um encontre o seu arquiteto e aqueles quatro lotes que hoje aparecem todos iguais sejam diferentes. Em nome da honestidade intelectual não podemos fazer esse tipo de publicidade. Além disso, como depois desses lotes toda a outra parte vai ser dividida nos chamados projetos urbanos a desenvolver pela SRU, a verdade é que eles não vão estar dentro do escrutínio público, vão ser desenvolvidos de acordo com um calendário que a SRU vai entender, quando entender e do modo que entender. Não acho que se possa passar um cheque em branco a quem quer que seja, independentemente das intenções. Não posso subscrever uma coisa dessas.
E em relação ao mono do Rato?
Não gosto da palavra mono. Acho que deliberadamente estão a colocar a questão do edifício do Rato numa questão estética, numa questão meramente de projeto e não é nada disso que está em causa. Fui a primeira pessoa a votar contra o dito edifício no tempo do doutor António Costa. Aliás, com o Fórum Cidadania foi metido um processo em tribunal, que ainda está decorrer no tribunal civil, exatamente por causa deste edifício. As questões que se colocam são de incumprimento de regulamento, posso dar três exemplos. Primeiro: a volumetria que foi arranjada para o edifício do Largo do Rato teve como base a volumetriedade da Rua Alexandre Herculano e o Plano de Urbanização da Avenida da Liberdade. Ora, esse plano acaba exatamente no lote do lado e exclui expressamente o edifício do Largo do Rato porque entende que o Largo do Rato é uma realidade urbanística completamente diferente e que teria de ser objeto de um Plano de Pormenor próprio, o que significa que se isso tivesse acontecido, a volumetria que se tinha de achar para este edifício era a que estaria no Largo do Rato e não a da Alexandre Herculano, portanto partiu logo de uma premissa errada – justificou volumetria com base num plano que expressamente exclui este edifício, é inadmissível.
E que mais?
A outra questão, é que aquilo que na altura se chamava Regulamento Geral de Edificações Urbanas e que hoje se chama RJUE – Regime Jurídico de Urbanização e Edificação – dizia que em qualquer edifício onde há uma ocupação do terreno como era esta que se previa, deveria ser feita uma vistoria para verificar se essa ocupação afeta ou não os edifícios do lado em termos de exposição ao sol e em termos de ventilação. Sabe o que dizia essa vistoria, que eu vi? Diz exatamente isto: ‘fomos ao local, verificámos que o edifício do lado tem um logradouro (leia-se ‘um jardim’) totalmente permeável e que portanto este terreno pode ser totalmente impermeabilizado porque o do lado garante o escoamento das águas da chuva. Nem uma palavra sobre uma parede de 17 metros de altura ao longo de toda a largura, que vai criar uma zona de ensombramento total ao lote do lado e uma zona de sombra na sinagoga. Outra questão que foi levantada referia-se ao acerto de empenas e eles afirmam que fazem um acerto de empenas com o edifício amarelo da Alexandre Herculano. Ora a empena do edifício da Alexandre Herculano, que é esquinado, está em cima do logradouro do lote do lado. A menos que vão para cima do lote do lado, não é possível fazer um acerto de empenas. Outra questão que também levantámos é que os alçados que eram apresentados, as construções existentes estavam sobredimensionadas, isto é, eram maiores do que efetivamente existiam de modo a enquadrar o edifício. Se o edifício tivesse quatro pisos, se tivesse respeitado a questão dos logradouros e se a lei aplicável na altura fosse cumprida, esta discussão não existia.
Nada tem sido dito também sobre o outro edifício que lá estava antes.
O outro edifício que lá estava antes, que curiosamente era uma das construções mais antigas do Largo do Rato e que o Fórum de Cidadania se fartou de avisar, foi demolido porque estava obsoleto. Ninguém falou da idade que ele tinha, da integração que ele tinha.
Não é uma questão apenas de regras do novo edifício.
Não, mas isso faz parte das regras, porque dizia exatamente que devia ser objeto de uma vistoria prévia e às tantas há uma vistoria, mas essa vistoria foi tomada como uma mera opinião. E o edifício foi abaixo. A questão que se prende com o edifício do Largo do Rato é sobretudo uma questão de violação de regras urbanísticas.
Independentemente de este novo inquérito na Justiça poder ou não travar a construção do novo edifício do Largo do Rato, já se perdeu património ao deitar-se abaixo o anterior para agora se estar a avaliar se este cumpre ou não as regras?
Digo-lhe uma frase de um assessor do presidente Jorge Sampaio: é um ato nulo de efeitos não anuláveis. O que se vier a construir tem de seguir as regras e se a câmara não o fez na primeira fase, podia tê-lo travado na segunda, quando o projeto foi a sessão de câmara no tempo do doutor António Costa, era eu vereadora. E agora verifico, com enorme surpresa, que a respeito do edifício do miradouro de Nossa Senhora do Monte, o presidente da câmara veio garantir que será cumprido o projeto e que não serão afetadas vistas, não referindo que já existe um PIP aprovado e que é constitutivo de direito exatamente como acontecia no Largo do Rato, apesar de ser um processo de licenciamento em que os direitos são os mesmos. E o nosso presidente vem dizer ‘estejam descansados que aquilo vai cumprir’. Eu não conheço o projeto, mas parece-me que não cumpre, de acordo com o abaixo-assinado que circula. Portanto, de acordo com as declarações que o presidente fez, está disposto a passar por cima de direitos adquiridos.
O que se diz é que do miradouro já não será possível ver pelo menos o Martim Moniz.
Mas o que o presidente diz é que nada disso vai acontecer e que portanto vai baixar, com um PIP aprovado. Lá estamos outra vez perante o mesmo.
Acha que será mais um caso de Justiça, daqui a uns anos?
Não, o que acho é que a CML só deve e pode licenciar coisas quando tem a certeza de que primeiro todas as normas são cumpridas. Se não cumpre essa obrigação, das duas uma: ou lesa a cidade porque faz construções que prejudica a cidade ou lesa o erário publico. E sai do nosso bolso.
Uma das obras que o engenheiro Nunes da Silva criticou, em entrevista ao “SOL”, foi a expansão do metro. O que acha desse projeto?
Nem eu nem o PSD concordámos. E independentemente das considerações que o engenheiro Nunes da Silva possa ter feito e do que anteriormente o vereador Manuel Salgado veio dizer, há factos. E o primeiro facto é que não há dúvida nenhuma de que há uma estação ao pé do quartel de bombeiros na Dom Carlos I, não há dúvida nenhuma de que há uma estação a 50 metros de profundidade no hospital da Estrela, não há dúvida nenhuma de que o metro vai acabar no Aterro da Boa Vista, são factos. E são factos que o metro poderia ser expandido para outras zonas, como inicialmente se previa para Campo de Ourique, onde existem populações que estão muito mal servidas de transporte público. Se é para favorecer este ou aquele, não sei. Mas estrategicamente esta linha amarela vai desembocar exatamente nas próximas grandes operações urbanísticas da CML. Cada um conclua aquilo que tem de concluir. E atenção: o metro anda a 50 metros de profundidade, com uma subida extraordinariamente perigosa e na margem dos limites de segurança das carruagens de metro. Eu li a entrevista, vi a resposta do vereador Salgado, mas o que eu gostaria é que ele explicasse concretamente porque é que o metro sai exatamente ali e porque é que não foi para sítios mais populosos. Aliás, o presidente da Junta de Freguesia da Estrela não quer lá o metro nessas condições.
Teve oportunidade de trabalhar com o vereador Manuel Salgado?
Li alguns processos dele enquanto arquiteto do Risco, mas nunca trabalhei com o vereador Manuel Salgado. Fui para a Assembleia Municipal, depois fui para a EPUL e quando pretendi voltar para a CML, nunca mais fui afeta a nenhum serviço, a não ser agora, quando me colocaram na Direção Municipal de Cultura, onde gosto muito de estar, mas que de facto para o Urbanismo isso nunca foi posto. Não me colocaram em lugar nenhum durante três anos. Desde que fui vereadora nunca mais me foi permitido voltar, mesmo tendo pedido para regressar ao meu lugar de origem.
Porque é que não lhe é permitido voltar?
Não sei, a verdade é que pedi para regressar ao meu lugar de origem e estive quase quatro anos afeta ao serviço de pessoal, sem me colocarem em lugar nenhum da CML. Nenhum. Não tinha nenhum posto de trabalho. Este ano, decidiram colocar-me na Direção Municipal de Cultura. Fiquei de castigo durante quatro anos.
Apesar de não ter trabalhado com o vereador Salgado, no seu percursona CML teve conhecimento de situações menos regulares relacionadas como vereador?
As situações que têm estado hoje a ser levantadas passaram-se enquanto eu era vereadora e deputada municipal e foram levantadas. Nomeadamente em relação ao edifício das Picoas. Em primeiro lugar, é um facto que o vereador Manuel Salgado quando levou à Assembleia Municipal a alienação da parte subterrânea da Fontes Pereira de Melo omitiu que aquela parte já estava ocupada. Levou uma autorização para ocupar a Fontes Pereira de Melo no subsolo, omitindo que já tinha sido ocupada. E quando foi confrontado disse: ‘Eu fiz um auto de embargo, mandei embargar a obra’. Nós, na comissão de urbanismo, fomos ver o processo e não havia auto de embargo nenhum. Isto é um facto, consta nas atas, consta em todo o lado. Chamámos o vereador Manuel Salgado, que com o diretor municipal disse que o auto de embargo tinha sido verbal. Aí eu lembrei-o que o Código do Procedimento Administrativo obriga a que dez dias depois de uma ordem verbal ela seja passada para escrito. E não constava. Eu nunca vi esse auto de embargo.
Ou seja, o que existiu foi um auto de embargo informal?
Bom, mas explique-me como é que um auto de embargo é um procedimento informal…
Essas práticas são normais na câmara?
Não só não é normal, como o Código do Procedimento Administrativo não o permite. É um ato que não existe.
Mas houve mais alguma situação que se recorde relacionada com esta torre?
Quando isso foi levantado na Assembleia Municipal, entre outras coisas, nomeadamente a questão das mais valias, a câmara disse que iria proceder a uma sindicância a todo este processo. Passado uns tempos apareceu o resultado, que ilibava a fiscalização. Eu em nome do PSD, questionei: ‘Então e a parte de gestão urbanística? Isso é que eu quero saber: dos autos e da licença de escavação antes de estar aprovado’. E a câmara comprometeu-se a pedir um inquérito a uma entidade externa. Mas até hoje… Verifico com surpresa que quando nos últimos dias o PSD veio insistir nesse relatório que a câmara tinha prometido e foi chumbado. O que é que uma pessoa normal conclui de uma situação destas? Não houve auto de embargo, houve uma proposta de venda de uns terrenos sob um ato que estava consumado e que o senhor vereador omitiu. Houve uma intenção da câmara de proceder a um inquérito que nunca fez.
Com isso que diz, fica claro que há opacidade dentro da CML.
Se não existe, a câmara deveria ser a primeira a querer clarificá-lo.
Mas há possibilidade de este procedimento todo que narrou poder não ser produto de uma instituição onde reina a opacidade?
A lei é para ser cumprida e quando não se cumpre a lei, quem tem de justificar o não cumprimento é quem entra nesse incumprimento.
Alguma vez estas coisas poderiam acontecer com um cidadão comum? Ou seja, em processos onde não estão em causa grandes interesses imobiliários é normal embargos de boca?
O incumprimento da lei é sempre anormal – Dura Lex, Sed Lex. Nos anos em que estive na câmara nunca vi um auto de embargo que nunca estivesse escrito, aliás é muito simples, nem podia ver. Porque se o vereador dá uma ordem para fazer um auto de embargo e ele não consta no processo escrito como é que eu podia adivinhar que ele existia? Nunca dei com nenhum auto de embargo informal.
Até porque a fiscalização numa situação dessas não poderá funcionar…
Não pode, o interessado não pode assinar, nem ser autuado. Portanto, isto que estou a dizer em relação à Torre das Picoas são factos. Factos que qualquer análise o comprova.
Quanto ao edifício do Rato disse que se estavam a misturar questões estéticas com outras. No caso da Torre das Picoas que dimensões estão em causa, estética, volumetria, o facto de outro proprietário ter tentado fazer ali um edifício menor e não ter sido aprovado?
Eu acho que as dimensões que estão ali em causa o atual Plano Diretor Municipal prevê. O Plano Diretor atual, nomeadamente nas quotas para reabilitação, coloca a utilização das quotas numa discricionariedade muito grande. Na realidade, essas quotas que fizeram com que o projeto fosse aumentado depende exclusivamente do critério de quem as aplica. E do meu ponto de vista o que é mau nesse momento – e isso vê-se em toda a cidade e choca-me – é que o grau de discricionariedade é extraordinariamente grande, apesar de o PDM o permitir. Eu vou dar um exemplo: O PDM diz que em Lisboa tudo é para manter e portanto não se pode demolir nenhum edifício, exceto se se apresentar um projeto de valoração do local. A questão é: o que é um projeto de valoração do local? Pode apresentar 20 projetos que acha que são para valoração do local e a câmara recusá-los sistematicamente sem nunca dizer como é que o há de fazer.
Quem é que determina em última instância essa valoração hoje em dia?
A valoração de todos os processos que eu vi está escrita nos serviços que analisam e muitas vezes em conjunto com o IGESPAR numa única frase: ‘Entende-se que isto é um projeto de valoração do local’. Ao fim e ao cabo nenhum lisboeta pode olhar com franqueza para um edifício e saber exatamente o que lá pode construir. E isso é a pior coisa que pode acontecer…
Mas pode dar um exemplo?
Posso, o de um pequeno edifício da 24 de Julho, que foi objeto de uma permuta. O edificiozinho por trás tem o Museu Nacional de Arte Antiga. Os proprietários em 2013/2014 fizeram um pedido de informação prévia em que perguntavam se podia fazer caves ou deitar abaixo o edifício. A câmara disse o seguinte: ‘caves nem pensar porque pode afetar a estrutura do Museu, construções em logradouros também nem pensar’. Assim, o edifício foi posto à venda, não estou certa mas julgo que por um valor à volta dos 200 mil euros, tendo sido perguntado à câmara se queria exercer o direito de preferência e a câmara disse que não. O que é que aconteceu depois? Em 2016 este mesmíssimo edifício com um parecer assinado exatamente pelos mesmo técnicos permite a construção de duas caves, e muitas outras coisas, com base na ruína iminente do edifício, seis meses depois. E sabe mais? Os promotores decidiram vendê-lo e obrigatoriamente tiveram de perguntar às câmara e a câmara aceitou o direito de preferência por 857 mil euros. A câmara pagou 857 mil euros, quando seis meses antes não o quis comprar por cerca de 200 mil euros.
Pelo que descreve trata-se de um caso de polícia?
Eu levantei a questão ao presidente e o que é que ele me veio dizer? A ruína iminente do edifício. Em seis meses, a menos que aconteça um drama não se passa a um estado de ruína iminente, se passar por lá o edifício mantém-se…
E a questão das caves foi alterada e isso a ruína iminente não deveria ser justificação, ou estou errado?
É, a questão das caves manter-se-ia, tendo em conta o argumento que utilizaram. Mas eu questionei o facto de a câmara estar a perder quase 500 mil euros e ainda por cima era uma compra para o Ministério da Cultura, o que também é outra coisa fantástica…
Mas o que justificaram quando questionou o porquê de a construção de caves ter deixado de afetar o museu?
Disseram: ‘Ah mas as caves está escrito que têm de ser seguidas por um engenheiro e por uma pessoa especializada’. O problema é que todas as caves têm de ser seguidas por um engenheiro e pessoas especializadas, em Lisboa não é qualquer pedreiro que faz uma cave. Isto é uma situação inexplicável.
Um proprietário perdeu, a câmara perdeu, mas houve alguém que ganhou com essas duas perdas.
Vou dizer-lhe: em todos estes casos quem perde sempre é a câmara, ou seja, nós. Aqui quem perdeu foi a câmara. Na própria Avenida Fontes Pereira de Melo, independentemente do preço que se der por aquilo, a verdade é que aquilo compromete qualquer obra que venha a ser feita numa via que é estruturante e principal. Havia uma disponibilidade numa avenida como essa que deixou de haver.
Acha que fazia sentido Fernando Nunes da Silva e Manuel Salgado serem ouvidos devido às declarações de um e de outros, as suspeitas…
Acho que quando há dúvidas deve ser tudo esclarecido, porque não há nada pior que a dúvida pairar. Ontem vi que o deputado Duarte Cordeiro se riu imenso, dizendo que eram coisas de há dez anos. Eu não me riria, porque uma câmara que demora dez anos a esclarecer uma coisa que a maioria das pessoas põe em dúvida, é o pior que pode acontecer. Quem não deve não teme. O vereador Manuel Salgado foi ouvido em comissão de urbanismo e disse que ia promover a sindicância e essa sindicância nunca mais apareceu. Uma pessoa que demora dez anos a explicar uma coisa é porque não quer explicá-la.
Acha que o edifício das Picoas é um elefante não só na sala de Manuel Salgado, como também no gabinete de Fernando Medina?
Acho que aquele edifício é um elefante na cidade de Lisboa e nós vamos ter de o suportar durante as gerações vindouras. Se fosse só no gabinete de Manuel Salgado e de Fernando Medina eu ficava contentíssima, infelizmente é um elefante na vida de todos os lisboetas e de todos os que passarem por ali.
Manuel Salgado na sua opinião tem tanto poder como o presidente da câmara?
Acho em primeiro lugar que houve um presidente de câmara em termos de facto e de direito, que foi o atual primeiro-ministro, António Costa. Quando pôs como número dois um deputado por Viana do Castelo, que não conhecia Lisboa e não tem nenhuma função de peso dentro do PS, ele sabia-o e por algum motivo o fez. Isso explica o poder que Manuel Salgado tem neste momento.
O que está a dizer é que António Costa acumula hoje as funções de primeiro-ministro com as de presidente da câmara municipal de Lisboa?
Olhe, se não é assim, veja: esta questão do passe não é fantástica? A questão está levantada e vi incidir sobre Lisboa, que é dos sítios mais populosos, e sobre o Porto. O presidente da Câmara de Lisboa não tem qualquer possibilidade de fazer uma proposta dessas, quando isso está dependente do governo, uma vez que a câmara não gere o metro. Naturalmente que Fernando Medina não se teria lembrado disso se não tivesse falado com António Costa. Outra coincidência: o caso Ricardo Robles. No momento em que ele meteu aquele processo na câmara, a câmara sabia que o processo existia. Curiosamente ele foi lançado nos jornais numa altura em que o Bloco estava a negociar o Orçamento do Estado e isso desacreditou o BE. A câmara neste momento tinha uma relação pacificada com Ricardo Robles, a quem é que interessou o descrédito?
Pergunto-lhe eu a si: a quem foi?
A quem acha que foi? Quem é que neste momento tem o BE tão cordato? E mais, porque é que a câmara comprou com seu dinheiro um edifício para secretaria de Estado da Cultura [o da 24 de Julho]? Porquê? Que há uma situação privilegiada com o governo isso há. Se não há, são muitas coincidências.
Mas acha que há uma situação de promiscuidade, de confusão de poderes?
Não sei se é promiscuidade, mas que curiosamente há uma relação entre a ação e a reação, lá isso há. Chame-lhe o que quiser, isto são factos. Como são factos as estações do metro virem exatamente para terrenos que são do Estado e que com isso vão ser privilegiados. Não vi nenhuma ação desta câmara que pudesse por em causa o atual governo. E, como sabe, os presidentes de câmaras muitas vezes são obrigados a questionar o governo.
Acha que se está a pessoalizar muito as coisas?
Para mim é irrelevante quem aprova isto ou aquilo, o que importa é se beneficia os lisboetas. Neste momento, a linha amarela vai ou não beneficiar certos empreendimentos? Vai, é um facto. E a cidade ganharia ou não ganharia mais se o metro fosse para outro sítio? Campo de Ourique fica a perder, Alcântara fica a perder, é um facto. Os efeitos dessas ações fazem-nos sofrer a todos. Muitas vezes discute-se pessoas, quando o que se tem de discutir são decisões que nos vão afetar a todos.
Acha que hoje no país há menos oposição?
Subscrevo totalmente a frase de Pérez-Reverte: Há uma asquerosa tendência para o politicamente correto, que perturba alternativas e não deixa definir vias diferentes. E eu acho que isso prejudica a democracia. A existência de caminhos diferentes é o serviço que os partidos prestam à democracia.