A humanização dos serviços de pediatria


A humanização dos serviços de atendimento à criança tem de constituir uma preocupação dos profissionais, designadamente na vertente hospitalar, mas também uma exigência dos pais, porque se veem confrontados, muitas vezes, com situações em que a dignidade das crianças (e a sua) é posta em causa por condições ambientais, técnicas e humanas…


Vem este artigo a propósito do que hoje (ontem, para o leitor da edição em papel) me relatava uma mãe, sobre a brutalidade com que uma enfermeira, acolitada por um médico que não a admoestou, trataram uma criança de dois anos, doente, por se “portar mal” (leia-se chorou e agitou-se) quando lhe estavam a colher sangue. A enfermeira, que nem luvas colocou para esse procedimento, picou-se na agulha quando de um movimento da criança (normal e natural para quem, aos 2 anos de idade, é picado), atirou tudo ao chão, chamou-lhe nomes feios, e o médico pediu à criança análises para detetar hepatite B e HIV sem informar os pais do que estava a fazer… os pais, enfim, a mãe, porque o pai foi impedido de entrar com o argumento paleolítico de que “só pode entrar um dos progenitores num serviço de urgência”. Depois foi o querer internar a criança “por causa do protocolo”, quando a criança estava cheia de vitalidade e com uma saturação normal de oxigénio, não dar a radiografia (que é propriedade do doente!) para mostrar ao médico ou a quem os pais quisessem, e correrem com eles com um antibiótico, no mínimo, de eficácia duvidosa, sem esquecerem o habitual aviso: “Bom, vocês é que sabem… se acontecer alguma coisa…”.

Não interessa para o caso se foi num hospital público ou privado nem o nome das pessoas. Se o refiro, é porque assisto a isto repetidamente: a desumanização que não pode ser explicada porque “se ganha pouco” ou “trabalha muito”. Quando exercia em serviços de urgência, designadamente em Peniche (eu e um enfermeiro, sozinhos das 20h de sexta-feira até às 8h de segunda-feira… com dezenas e dezenas de todos os tipos de doentes), ou no serviço de urgência de pediatria de Santa Maria, andávamos extenuados, exaustos, com “bancos” atrás de “bancos”, mas havia uma regra que os nossos chefes e mestres nos ensinavam e exigiam cumprimento: quando estamos perante uma criança e a sua família, só ela é que interessa e os outros “não existem”. Nem os outros, nem os nossos problemas pessoais, afetivos ou domésticos. Os doentes não têm de pagar pelos nossos estados de alma ou falta de cuidado.

A humanização dos serviços de atendimento à criança tem de constituir uma preocupação dos profissionais, designadamente na vertente hospitalar, mas também uma exigência dos pais, porque se veem confrontados, muitas vezes, com situações em que a dignidade das crianças (e a sua) é posta em causa por condições ambientais, técnicas e humanas… desumanas.

Humanizar o que é humano? Poderá parecer um pleonasmo, ou quase até uma aberração, ter de “humanizar” serviços pensados, delineados, concebidos e utilizados por e para seres humanos. Trata-se, no entanto, de um problema urgente e fundamental na política de saúde e na organização e planeamento dos serviços, bem como na formação dos profissionais e até nas ações de investigação aplicada. Não é só ter posters do Bambi ou fazer uma festa de Natal com palhaços…

Mais, a progressiva influência e espaço da tecnologia nos processos de promoção de saúde, prevenção de doenças, diagnóstico e terapêutica, aos seus vários níveis, levou a que os aspetos relacionados com as necessidades básicas do ser humano fossem, frequentemente, subvalorizados ou até marginalizados, desviando-se os serviços, no que toca aos seus objetivos e práticas, da pessoa e das pessoas, fossem elas utentes ou profissionais.

Se entendermos a “humanização” como a “adaptação às necessidades e direitos de cada ser humano em cada momento da sua vida”, resulta evidente que o seu desenvolvimento dependerá de uma avaliação das referidas necessidades, bem como de uma clara noção e aplicação dos direitos instituídos. A evolução das primeiras (de aspetos estritamente relacionados com a patologia e a saúde, numa perspetiva exclusivamente biomédica, para uma visão bio-psico-social e integradora que enfatiza os padrões de qualidade de vida e de bem-estar) e a clara assunção dos direitos das crianças e dos adolescentes (consignados na Convenção dos Direitos da Criança da ONU, que todos os órgãos de soberania portugueses ratificaram) traduziram-se em novos desafios mas também em novas exigências.

Por outro lado, a consciencialização crescente, por parte dos cidadãos e das famílias, dos seus direitos e da relação de parceria que deve enformar a prestação de cuidados, numa salutar vivência democrática, tem de constituir uma forma de pressão sobre o sistema, para que a mudança se opere.

Apesar de Spitz ter, em 1945, analisado pela primeira vez a “síndroma do hospitalismo” provocada pela carência afetiva da criança internada devida à separação da família, em Portugal foi preciso esperar por 1981 para que o direito ao acompanhamento da criança hospitalizada pelos pais ou pelos seus substitutos legais fosse uma realidade. Outros documentos legais se seguiram, tentando dar a possibilidade e as condições do acompanhamento da criança durante o internamento, como passos importantes da humanização dos serviços de saúde. Para além disso, existem diversas Declarações e Documentos que versam este assunto, como o Despacho referente à idade pediátrica, a Carta do Doente Hospitalizado e a recentemente publicada Carta da Criança Hospitalizada, entre outras. O problema é cumprir o que está escrito…

A Comissão Nacional de Saúde Infantil, da qual tive a honra de fazer parte e ser seu co-relator, refere no seu Relatório de 1993 (há 25 anos!) o direito inalienável da criança a ser internada em ambiente pediátrico, considerando «Criança» todo o ser humano até aos dezoito anos, conforme a Convenção da ONU – pena é que, passado um quarto de século, tanta coisa continue por fazer. Culpa dos políticos, como geralmente se diz? Também sim, mas não apenas – provavelmente todos seremos culpados, dos profissionais aos pais, uns porque relegam para segundo plano este aspeto essencial dos cuidados de saúde, os outros porque continuam muitas vezes hesitantes na reivindicação daquilo a que têm direito. Todos terão culpas no cartório, menos as crianças.

A desumanização de que o caso que relatei no início é exemplo, embora infelizmente não raro, é uma das causas para que os cidadãos comecem a confiar mais no simpático doutor Google ou nos “blogues de mães”. Podem ser cientificamente ignorantes e até contraproducentes, mas são, seguramente, mais humanos e mais acolhedores.

 

Pediatra

Escreve à terça-feira