Um restolhar misterioso entre os arbustos: o último livro de Sam Shepard

Um restolhar misterioso entre os arbustos: o último livro de Sam Shepard


O que interessa em “Espião na Primeira Pessoa” (ed. Quetzal) é o modo como essa identidade se desdobra de fragmento em fragmento


No início de August Osage County (2013), filme de John Wells, a personagem de Sam Shepard repete uma citação de T. S. Eliot – “A vida é demasiado longa”. Ri-se à volta desta frase, da sua natureza conscientemente prosaica, mas à qual, não obstante, o nome do poeta de The Waste Land fica arreigadamente associado. Não que isso – a assinatura – lhe conceda algum tipo de veleidade simbólica; mas a intenção da personagem, que inferimos somente pela voz off, pela autoridade do tempo inscrita no seu grão, reivindica que seja reconhecido o mérito a quem viu reunidas as condições anímicas para proferir convictamente, letra a letra, que a vida é, de facto, demasiado longa. Ponto. Assinado: T. S. Eliot. E caberá, depois, a cada um esperar pela altura certa para merecer semelhante clarividência e conquistar o seu direito a pronunciá-la, assim. Sem mais, nem menos. 

No filme, dinamizado por um esmagador elenco de estrelas, como Meryl Streep, Julia Roberts ou Chris Cooper, o ator desempenha o papel de um poeta laureado em vias de pôr fim à vida, servindo esse gesto como ignição para que toda a sua família se reúna à mesa e constate como a herança inescapável dos laços de sangue, por si só, não basta para dissimular por muito tempo a pose convencional de um retrato de grupo. Ora, tendo Sam Shepard falecido há um ano, o seu papel em August Osage County empresta-se de maneiras inviamente sedutoras à leitura que podemos fazer de “Espião na Primeira Pessoa”, o seu último livro, publicado por cá pela editora Quetzal, com tradução de Salvato Telles de Menezes. Apetece-nos sugerir, movidos pela banalidade de base decorrente da citação de Eliot, que o ator fez o papel que lhe cabia fazer no tempo certo: sem inventar nada, sem “fazer de conta que era o que não era”, como disserta, amiúde, a personagem principal de um outro livro, “A Pornografia”, de Witold Gombrowicz. Ao invés, o que interessa é “[…] fazer realçar o que existe em estado latente nos homens vivos, tirando partido da sua própria gama de possibilidades”; “a personagem é que tinha de adaptar-se a ele e «cair» no actor tão bem como um fato por medida” (idem, trad. Aníbal Fernandes, Relógio D’Água, p. 120).

A personagem de “Espião na Primeira Pessoa” seria, então, esse movimento de queda no corpo do ator. A contracapa do livro resolve escusadamente a inerente ambiguidade do texto, que se urde a partir da tensão entre um eu que (se) narra e um outro sujeito que, do lado de lá da estrada, sentado no alpendre, parece servir de duplo da primeira pessoa: “O velho enigmático que observa será, afinal, ele próprio [o narrador], perto do fim”.

O livro, de facto, arranca nestes termos: “Visto à distância. Isto é, a ver do outro lado da estrada, é difícil dizer qual a idade dele por causa do alpendre fechado com rede a toda a volta” (p. 9). Invade-se devagarinho o (aparente) espaço do outro, adivinha-se-lhe hábitos, tira-se teimas: “Parece que tem de ir periodicamente à casa de banho ou outra coisa qualquer. Levanta-se. Vacila quando se levanta. Parece que vai cair” (p. 21). E, pouco depois, o fragmento 11 encarrega-se de conduzir o leitor à clássica intriga de um jogo de espelhos: “Não consigo deixar de sentir uma similaridade entre mim e ele. Não sei o que é. Às vezes parece que somos a mesma pessoa. Um gémeo perdido. As sobrancelhas. O queixo. Um tique numa orelha. As mãos nos bolsos. A maneira como os olhos parecem simultaneamente confiantes e perdidos” (p. 30).

Mas o facto de haver este protocolo de leitura, crivado pela tensão autobiográfica, condiciona desde logo o modo como apreendemos o sentido do que lemos, segundo Philippe Lejeune. Não lemos da mesma maneira um livro que recebemos como “ficção” e um outro que sabemos ser “autobiográfico”. E se, por um lado, a autobiografia, sem mais, se arrisca a enclausurar a liberdade constitutiva do significante, predispondo o leitor à histeria detectivesca de andar à cata de provas, testando a veracidade empírica do que lê como factos, brincando à lei das correspondências e, nesse jogo, empobrecendo o texto, por outro lado, há uma tensão, ou um atrito (uma quintessência, também), inerente à vida – o que nela existe de impessoal (ou mais do que o estritamente pessoal) e que não se deixa confundir com a identidade de cada um e demais constrangimentos históricos e biográficos. A tensão entre verdade e ficção, entre a realidade e o imaginário, no limiar do indecidível, onde a coisa escrita morde, mesmo quando é apresentada com as palavras mais inofensivas: “Diz, quanto mais desamparado estou, mais remoto me torno. Estou a ver tudo isto? O ar continua turvo.” (p. 22)

Por não ser simbolizável, por se ater à escrita tal como a morte se atém à vida, até tomar em definitivo o seu lugar em cena, essa tensão segrega no texto as marcas dessa luta corpo-a-corpo, do homem contra (e com) a linguagem, advindo daí o resto/rasto de que o texto será o índice por defeito. E por defeito não é, à letra, pejorativo: pode ser, aliás, a forma expressivamente bem-conseguida de captar a respiração que falha, os órgãos que, um a um, deixam de funcionar, o esforço de um homem condicionado severamente pela esclerose lateral amiotrófica, tentando, primeiro, rascunhar as palavras pela própria mão, para depois, quando já nem isso conseguia, passar a gravá-las e a ditar o resto aos filhos, Hannah, Walker e Jess, que editaram o livro com o apoio de Patti Smith, ex-amante e amiga de longa data do pai (o seu texto de despedida no “The New Yorker” – “My Buddy” – menciona de raspão a feitura deste livro).

Atente-se, por exemplo, nesta passagem: “Ambas as sobrancelhas! Ambas as sobrancelhas. Ambas. Não, não, só a esquerda. Sim! É isso. Oh bom, é isso. Graças a Deus é isso. Obrigado. Obrigado por isso. As coisas voltaram a mudar. As coisas mudaram. Agora tem de pedir a outras pessoas. Agora não passa sem outras pessoas. As coisas mudaram mesmo” (p. 89). Conhecendo os bastidores deste livro, não é difícil imaginar como a passagem citada constitui (pode constituir…) um decalque do que Shepard teria gravado e que uma das filhas, depois, se encarregaria de transcrever. Afirmar, negar, refazer, exclamar, agradecer (Deleuze diria: gaguejar) – como se obtivesse prazer no som da própria voz e no voo errático de uma palavra em direção ao seu significado, feliz com esse raro encontro entre aquilo que se pensa, aquilo que se diz e aquilo que fica escrito – tudo isso, resultando num autorretrato embraiado, longe de ser definitivo. Mas não importa se é ou não definitivo. Importa, sim, se no aqui-e-agora em que ele se visibiliza, esse autorretrato tem sentido, ou se é o lugar onde esse sentido acontece, se presentifica (pelo menos, para quem o traça). “O que é que o pode fascinar nisso? Em mim? Talvez não esteja fascinado. Talvez esteja o contrário de fascinado. O que será o contrário de fascinado? Ficar enredado em pensamento, em reflexão. Enredado. Lá está ele a olhar para a mesma coisa dia após dia, mês após mês. Borboletas que pousam em plantas roxas.” (p. 87) 

Noutro fragmento, o narrador conta: “Fizeram-me todos os exames”. E desde logo se antevê o homem a acenar ao destino, ou o destino a acenar ao homem, cada qual se reconhecendo a meio do caminho, ajustando-se as medidas um ao outro e subtraindo à morte quaisquer conotações fatalistas: “[…] havia alguma coisa que não estava bem. E eu disse, bom, eu sei que alguma não está bem. Porque acha que estou aqui? [O médico] limitou-se a olhar para mim com uma expressão vazia” (p. 12). E, depois, faz-se parágrafo, acentuando-se a leveza da elipse e o cómico de situação: “De manhã ia tomar o pequeno-almoço a uma tasca mexicana. Enchiladas. Queijo com ovos. Pimentos verdes” (idem). Por vezes, frases brevíssimas, despojadas de articulações, semelhantes a didascálias, feitas para iluminar os motivos essenciais de um cenário, ou instruir um ator sobre as coordenadas do espaço (e não descuremos aqui a longa carreira de Shepard como dramaturgo, vencedor de um Pulitzer em 1979 pela peça Buried Child). 

Estes trejeitos da língua, por vezes num registo aparentemente pouco vigiado, podem ser, também, o modo como o texto assume a sua condição falível: não a forma una, conseguida, sob efeito de um arco temporal que, tendo começado algures, conhece alhures o seu epílogo, mas a forma indulgentemente impura, feita de tentativas e erros, que deixam tremidas as imagens de um passado que passa continuamente, sem nunca poder cristalizar-se: “O tempo que estou a tentar capturar – o tempo que estou a tentar capturar aqui é um tempo frágil. Como uma crosta muito estaladiça, muito pequena, que se arranha. Está um pouco turvo, este tempo. Não está muito claro para mim. Deve ter sido – deve ter sido, diria eu, em meados dos anos 70. Por aí. O que é que passou? Não está claro. Camboja. Ofensiva do Tet. Helicópteros a cair. Watergate. Muhammad Ali. […] A despeito da maneira como forem entretecidos, não há escapatória da confusão desse tempo.” (p. 51)

E se a Literatura, na sua versão maiusculizada, higiénica, se esmera por dar ordem a essa confusão, para garantir que tudo entre nos eixos, com o devido nome e o devido lugar na hierarquia dos modos, géneros e subgéneros, outros textos há, não menos literários, não menos poéticos, que acolhem a essa confusão, dando-lhe rédea solta. O registo autobiográfico, quando não movido por complacências narcísicas, pode ser isso mesmo: o registo de quem não se confessa, mas que investiga, explora, cria. E parte desse charme, desse despojamento, como se o eu aí se desnudasse, terá contribuído para que etiquetas como “literatura confessional”, “textos intimistas” ou “literatura do eu” acabassem por menorizar o género ao pé da ficção pura e dura. Mas um autor como Henry Miller baralha justamente estas questões para fazer vingar o que interessa: “A autobiografia é o romance mais puro. A ficção está sempre mais próxima da realidade do que os factos. A fábula não é a essência da sabedoria mundial, mas a casca amarga que a oculta” (in Os Livros da Minha Vida, trad. Ana Bastos, Antígona, 2006, p. 44). E, num outro texto do mesmo livro, confessa: “Iniciei a minha carreira de escritor com a intenção de dizer a verdade acerca de mim mesmo. Que tarefa imbecil! […] [P]osso dizer que não revelamos nada sobre nós mesmos contando a verdade, mas que, por vezes, nos descobrimos a nós próprios. Eu, que pensara dar algo, descobri que recebera algo” (pp. 116-7).

Anuir que de uma narrativa autobiográfica se retira a imagem de um eu límpido, coeso, é sucumbir ingenuamente a uma das armadilhas mais conhecidas deste género literário: a sedução romântica pela identidade que o texto ora esconde, ora revela. Porque o que manifestamente interessa em “Espião na Primeira Pessoa” é o modo como essa identidade se desdobra de fragmento em fragmento, nos rostos que nenhuma máscara subjuga por completo, tal é a forma como a memória flutua, se reinventa, captando cheiros, cores e movimentos, cavalgando diálogos onde os pronomes baralham os presumíveis referentes, os tempos e os lugares. (É constante, ao longo do livro, a imagem de um corpo a baloiçar numa cadeira: a dada altura, o ritmo desse baloiço parece ditar a forma como as impressões se vão acumulando, como se fosse a lógica de fundo que orquestra o pequeno e íntimo caos de que se faz este sujeito.) Em última instância, quanto mais um sujeito diz escrever sobre si, mais é a própria escrita que agenciará o seu reflexo no espelho. Um “espelho de tinta”, para citar o título de uma obra de referência sobre o autorretrato literário, da autoria de Michel Beaujour.

“Alguém desliga um cortador de relva. Alguém está sentado numa paragem de autocarro. Alguém espera alguém. As luzes começam a acender-se. Começam a servir o jantar. Trazem panelas a fumegar com qualquer coisa. […] Alguém está à espera de alguém que o leve dali – que o leve para longe” (p. 16). Alguém – mas quem? Respondemos por impulso: eu, ele. Mas dizer eu não resolve o enigma. Pelo contrário: adensa-o. E por mais que um eu se desnude, por mais que se revele e que admita expor a sua interioridade, a linguagem continua a falar-nos – é ela a última pele, o último filtro, a derradeira máscara. E continua a ser preciso morrer. 

“Se estivéssemos em viagem num país estrangeiro e perdêssemos os nossos cães e perdêssemos o nosso carro e perdêssemos a mensagem que a nossa mãe nos pregou no colarinho e perdêssemos as nossas roupas e estivéssemos nus e alguém se aproximasse de nós e perguntasse, de onde é, como responderíamos? Perguntaríamos ao único antepassado que era português? Ou perguntaríamos à Invencível Armada? Alguém foi esquecido.”