Há 100 anos, entre Setembro e Novembro de 1918, no final da Grande Guerra, um vírus letal atingiu o seu pico de mortalidade, causando em todo o mundo, até 1920, entre 20 a 40 milhões mortos, segundo estimativas feitas na altura, mais provavelmente 50 a 100 milhões de mortos, segundo estimativas recentes. Essa terrível pandemia, causada pela “influenza” – “pneumónica”, em Portugal -, ficou mais conhecida como “gripe espanhola”, apesar de ser, provavelmente, oriunda de Étaples, na França, tendo-se expandido após a batalha do Somme, em 1916. Mas também se admite que tenha sido oriunda da China, trazida para a Europa e a América por 350 mil trabalhadores emigrantes, 150 mil dos quais transitaram por Marselha (França), e os outros por Vancouver (Canadá) e por Nova York (EUA). Eram originários, todos eles, de três províncias chinesas – Shandong, Hebei e Shanxi – atingidas por uma gripe, ou “pequena peste”, durante o Inverno de 1917. O certo é que o terrível vírus espalhou-se pelos campos de batalha da França e por toda a Europa, enfraquecida e devastada por quatro anos de terríveis combates, estendendo-se ao continente americano levada pelos soldados dos contingentes dos EUA e do Canadá, contaminados durante a guerra na Europa.
Como explica a jornalista Laura Spinney, no seu livro “Pale Rider, The Spanish Flu of 1918”, foi o facto de a Espanha, então neutral, não dissimular as suas vítimas da pandemia, por não haver censura militar, que levou todo a gente a pensar que o vírus letal era oriundo desse país. Mas, no meio do pânico que então se gerou, ainda foram atribuídas outras origens a essa “grande assassina”. Por exemplo: no Chile falou-se duma punição divina; na Rússia apontou-se o dedo aos bolchevistas; em França houve quem acusasse a Suíça, que acolhera prisioneiros de guerra da Alemanha e da Áustria; nos EUA, a culpa tanto era da comunidade italiana como de submarinos alemães que teriam lançado um ataque biológico.
Tendo causado cerca de 20 milhões mortos, a Grande Guerra foi uma catástrofe, mas a “gripe espanhola” foi uma catástrofe ainda maior, com cerca de 50 milhões de mortos (avaliando por baixo). Ao todo, mais de 70 milhões de mortos. Entre os quais alguns personagens célebres, vítimas da “pneumónica” em 1918, como por exemplo: o jovem pintor austríaco Egon Schiele, o grande poeta francês Guillaume Apollinaire (atingido na guerra, dois anos antes, por estilhaços de um obus) e o poeta e dramaturgo francês Edmond Rostand. Mas também Gandhi foi afectado pela pandemia, assim como o magnífico escritor checoslovaco Franz Kafka, o grande compositor húngaro Béla Bartok (que ficou surdo) e o presidente dos EUA, Woodrow Wilson, durante as negociações do Tratado de Versalhes.
No seu livro “À Feu et à Sang: De la guerre civile européenne, 1914-1945” (Stock, Paris, 2007), o historiador italiano Enzo Traverso (n. 1957) salienta que a guerra civil europeia do século XX tem dois antecedentes. Primeiro, a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), uma carnificina brutal e devastadora, um imenso cataclismo demográfico e político que mergulhou em fogo e sangue grande parte da Europa, sobretudo a Mitteleuropa, mais concretamente o mundo alemão e a região da Lorena, com perdas demográficas comparáveis às causadas pela famosa “Grande Peste” ou “Peste Negra”, que terá provocado mais de 100 milhões de mortos – cerca de um terço da população europeia – entre 1343 e 1353. Depois, o outro antecedente apontado pelo historiador Enzo Traverso: a Revolução Francesa de 1789 e o longo processo de ruptura e de transformação encetado com a tomada da Bastilha e que se prolongará até à queda de Napoleão, em 1815. Qualquer destes antecedentes – a Guerra dos Trinta Anos e a Revolução Francesa – foram devastadores e modificaram profundamente o rosto da Europa. No livro “Kaputt”, o escritor Curzio Malaparte, que em 1942 era correspondente de guerra na frente oriental, recorda a amarga ironia com que os soldados da Wermacht rebaptizaram o seu combate como a “guerra-relâmpago dos Trinta Anos”. Também em 1942, o ideólogo do nazismo, Alfred Rosenberg, estabelecia outro paralelo, considerando o bolchevismo, que os exércitos de Hitler combatiam, como a “doença” da Europa engendrada pelo Iluminismo (as Luzes) e pela Revolução Francesa.
Todavia – salienta Enzo Traverso – quem primeiro esboçou um paralelo entre a crise europeia do século XVII (a Guerra dos Trinta Anos) e uma futura “guerra mundial” foi sem dúvida Friedrich Engels, num célebre artigo publicado em 1888 e cujo caracter profético tem sido sublinhado por vários historiadores. Numa tal guerra, previu Engels, “entre oito a dez milhões de soldados matar-se-ão uns aos outros e arrasarão a Europa como um enxame de gafanhotos jamais conseguiria fazer”. E disse mais: “As devastações da Guerra dos Trinta Anos concentrar-se-ão em três ou quatro anos, espalhadas por todo o continente”. Tudo isso produzirá fome e epidemias à escala de grandes massas, mergulhando a economia num “caos irremediável” que conduzirá, finalmente, a uma “bancarrota generalizada”. Assistir-se-á, então, ao “desmoronar dos velhos Estados e da sabedoria estatal tradicional, de tal modo que as coroas reais rolarão às dezenas pelo chão, e não haverá ninguém que acorra para as salvar”. Esta espantosa profecia de Engels encontraria eco, dois anos depois, num famoso discurso proferido no Reichstag, em Maio de 1890, pelo general prussiano Helmuth von Moltke, ao afirmar que, face ao enorme poder de fogo dos diferentes exércitos nacionais, nenhum Estado, em caso de conflito, conseguiria impor-se rapidamente aos outros, e o resultado seria uma nova Guerra dos Trinta Anos terrivelmente devastadora.
A Grande Guerra ou I Guerra Mundial terminou com a assinatura do armistício em 11 de Novembro de 1918, em Compiègne, na famosa carruagem 2419, que Hitler iria resgatar quando os seus exércitos invadiram e ocuparam a França na II Guerra Mundial, último capítulo da guerra civil europeia que se prolongou entre 1914 e 1945. Entre as duas guerras mundiais, uma pandemia devastadora, a revolução russa de 1917, um Tratado de Versalhes completamente errado, a ascensão do fascismo em Itália com tomada do poder por Mussolini, e a ascensão do nazismo na Alemanha com tomada do poder por Hitler, tendo como pano de fundo a crise financeira, económica e social – a Grande Depressão – que eclodiu em 1929 e iria conduzir à II Guerra Mundial. De facto, poucos aprendem com a História. E ela é cada vez menos ensinada e difundida entre as novas gerações…
Escreve sem adopção das regras
do acordo ortográfico de 1990