Contamos hoje três histórias de três famílias que partilharam o mesmo destino fatídico. São três casos que tentaram fugir ao incêndio mas que acabaram por ser envolvidos e morrer no terror da chamada estrada da morte, a EN 236-1.
O casal Machado e os seus dois filhos, com quatro e um ano de idade, de Sacavém e que estava a passar férias numa praia fluvial em Castanheira de Pera, andava a passear de carro nas redondezas quando se cruzou com o incêndio. Foram encontrados dentro do seu Citroën C4 Picasso entre cinco viaturas que tinham batido umas nas outras enquanto faziam várias manobras de inversão de marcha para tentarem fugir à morte, sem qualquer visibilidade por causa do fumo.
Também Fátima Carvalho e Jaime Luís, que viviam em Pobrais, decidiram entrar na sua Nissan Vannette para seguir a viatura do filho de Fátima Carvalho e a sua nora, Ricardo Martins e Ana Henriques, que tinham saído de sua casa em Vila Facaia para fugir às chamas. Também foram encontrados no conjunto de viaturas ardidas na estrada da morte.
E o mesmo destino foi partilhado por duas primas, Anabela Esteves e Anabela Araújo, que viviam em Pobrais. Depois da tentativa de fuga por várias estradas antigas e de terra, Anabela Esteves perdeu de vista a viatura do marido, que seguia na sua frente, e no pânico decidiu virar num cruzamento à esquerda em direção à EN 236-1, enfrentando minutos de terror.
Estas são algumas das histórias das 47 pessoas que morreram no espaço de um troço de um quilómetro na estrada da morte, durante o incêndio de Pedrógão Grande que matou, no total, 65 pessoas.
Nas próximas edições o i vai continuar a publicar as histórias, baseadas em relatos de familiares e amigos, das 65 vítimas mortais.
Família Machado
Baseado no depoimento
de João Cláudio Maria, do Vila Praia
“A família Machado constituída por Sérgio Teixeira Machado (35 anos), Lígia Isabel Libório e Sousa (35 anos), e os seus dois filhos Bianca Sousa Machado (4 anos) e Martim Miguel Sousa Machado (1 ano) vivia em Sacavém. Aproveitando o fim-de-semana prolongado proporcionado pelo feriado de dia 15, festa de Corpo de Deus, tinham reservado um apartamento, no complexo turístico da Praia das Rocas, em Castanheira de Pera, de 15 a 18.
A família chegara no dia 15 na sua viatura Citroën C4 Picasso de 2007 e utilizou a praia fluvial e as restantes instalações do complexo, enquanto lá se mantiveram.
No dia 17, depois do almoço, o casal decidiu dar um passeio de carro pelas redondezas. Não se sabe qual seria o itinerário escolhido, mas era certamente intenção do casal regressar ao alojamento ao fim do dia, pois haviam deixado lá ficar todos os seus pertences.
A viatura da família Machado foi encontrada no conjunto de cinco viaturas a meio do troço do acidente, que viria a obstruir completamente a estrada. Este carro estava virado em direção a Castanheira de Pera e junto do rail esquerdo, embatido lateralmente no carro Toyota Auris de Susana Pinhal. O casal e os filhos foram encontrados dentro do carro.
O facto de o carro se encontrar virado para Castanheira de Pera levou algumas pessoas a considerar que o casal estaria a voltar a Castanheira de Pera e à Praia das Rocas, ao seu alojamento. Embora esta suposição seja plausível, não é possível confirmá-la com segurança. Como se sabe os condutores que entraram neste troço da estrada fizeram, de um modo geral várias inversões de marcha, consoante as condições do incêndio e do trânsito lhes pareciam indicar que a melhor escapatória estaria num sentido ou noutro.
O João Maria, responsável pelo alojamento na Praia das Rocas prestou-nos um esclarecimento importante sobre o comportamento das pessoas que estavam a frequentar a praia fluvial e os alojamentos a ela ligados.
Durante o mês de junho a praia encerra habitualmente às 19 horas, mas no dia 17 ao aperceberem-se da aproximação da trovoada, os gestores do empreendimento decidiram encerrar um pouco mais cedo, às 18h50. Essa decisão foi anunciada no sistema de som da praia e foi bem acolhida pelos utentes, que saíram ordeiramente da praia e deixaram as suas instalações pelas 19 horas ou pouco depois. Esta decisão, embora se tratasse de apenas dez minutos de antecedência, terá contribuído para que os utentes da praia tivessem passado pela EN236-1, seguramente antes da hora mais critica. Na realidade, não foi possível estabelecer qualquer relação entre as pessoas que faleceram ou sequer que passaram na EN236-1 na fase pior, tenham tido qualquer relação com a praia, ao contrário do que se chegou a supor após o acidente.
Com a aproximação do incêndio, anunciada pela presença de fumo, a partir das 20h30, muitas das pessoas que estavam alojadas na Praia das Rocas começaram a colocar a opção de se retirar do alojamento. Para o efeito dirigiram-se à receção para fechar as contas e retirar as suas viaturas.
O João Maria contou-nos que se havia ausentado do empreendimento entre as 19h30 e as 20h30, para ir observar a situação do incêndio. Ao regressar foi confrontado com esta situação.
Com o conhecimento que tivera da propagação catastrófica do incêndio, com o apoio dos seus colegas, explicou aos utentes que estariam muito mais seguros se permanecessem no alojamento, pois o incêndio nunca ali chegaria. É interessante registar que todos os utentes concordaram com esta proposta e nem um manteve o seu propósito de sair.
Ao final do dia foi notada a falta da família Machado no alojamento. Ao receber a notícia de que o incêndio havia causado mortes aumentou o receio de que a família tivesse tido algum acidente. No dia seguinte este receio veio a confirmar-se”.
Família de Jaime e Fátima
Beaseado nos relatos de Susana Martins e de Rui Martins
“A Fátima Maria de Carvalho (57 anos) era casada com Jaime Mendes Luís (52 anos), com quem vivia em Pobrais. De um casamento anterior tinha dois filhos gémeos, o Ricardo Carvalho Martins (37 anos) e a Susana Martins. O Ricardo e Ana Isabel Nunes Henriques (30 anos) viviam ambos em Vila Facaia.
No dia 17 o Jaime e a Fátima encontravam-se na sua casa no centro de Pobrais, quando começaram a dar-se conta da aproximação do incêndio. Várias pessoas desta aldeia decidiram fugir nos seus carros, entre os quais a família Fernando Abreu, Armando Casinhas, Anabela Esteves, João Paiva e outros.
A Susana Martins, que vive em Figueiró dos Vinhos, recebeu uma chamada telefónica da mãe, que estava a utilizar um telefone móvel da rede fixa da sua casa. Apercebeu-se que a mãe estava com o telefone na rua, mas continuava a comunicar. Ouviu muito barulho e confusão, com pessoas a gritar, incluindo a sua mãe.
O Rui Manuel Simões Martins (58 anos) vive em Pobrais, numa casa próxima da de José Tavares, é o pai de Ricardo e Susana e no dia 17 estava em sua casa, com a sua mulher Márcia Cristina Sousa Viana e os seus pais. Apercebeu-se da aproximação do incêndio e decidiu retirar os seus pais de casa, levando-os para a rua principal. Levou igualmente um dos carros da família para o centro da aldeia. Deu-se conta de haver já muita confusão na aldeia, com pessoas a preparar-se para se ir embora.
Enquanto levava o seu pai para a estrada de cima sentiu um vento fortíssimo que os ia derrubando e partiu um ramo enorme de um sobreiro que, ao cair, ia quase atingindo o idoso. O Rui Martins apercebeu-se da saída de José Esteves e da esposa, em carros separados. Ficou nessa zona a ajudar a apagar o fogo junto das casas e observou um recipiente de plástico (um balde de cor azul) que vinha a arder pelo ar e acabaria por cair contra uma janela da sua casa, quebrando-a. A ausência de material combustível em redor impediu que este impacto tivesse causado maiores danos na sua casa e nas outras anexas.
O Ricardo passou pelas 16h30 em Pobrais, pela casa do pai e foi depois para o Bairrão. Pelas 19 horas voltou a Pobrais com a Ana Henriques no seu carro, um Mercedes Benz 190 de 1986. Nessa altura dirigiu-se à casa da mãe e insistiu com ela para se vir embora. O Jaime Luís terá hesitado e, por sua iniciativa, não deixaria a casa, mas possivelmente para acompanhar a Fátima, decidiu tomar a sua Nissan Vanette de 1990 e saíram para a estrada, atrás do carro do Ricardo. Os dois carros terão saído de Pobrais pouco depois da família Abreu, em direção a Barraca da Boavista, com a intenção de fugir para Figueiró dos Vinhos. No cruzamento da EN236-1, terão tentado tomar esta direção, mas tal como sucedera aos outros condutores, depois de algumas idas e vindas acabaram por se separar.
O Ricardo tinha o seu carro orientado para Castanheira de Pera e, ao ver uma aberta no fumo, deve ter acelerado o carro para fugirem naquela direção. No seu trajeto embateu na traseira do carro Peugeot 206 de Fernando Marta e Fátima Nunes, desviando-se para o lado esquerdo da estrada, acabando por chocar com o rail desse lado da estrada imobilizando o carro não muito longe do Toyota, de Susana Pinhal.
O Ricardo saiu do carro pela porta do seu lado e foi junto de Ana, que permaneceu sentada no seu lugar. Algumas pessoas ouviram o Ricardo pedir à Ana para sair do carro, ao que ela terá respondido: “Vou ficar aqui.”
Passado um pouco, a Ana acabou por sair do carro e fugiu, certamente com o Ricardo, para junto do conjunto de carros que, entretanto, se imobilizara no meio da estrada. A Ana foi encontrada dentro do Ford Galaxy, da família Abreu, que deveria conhecer. O Ricardo foi encontrado perto do carro da Anabela Esteves.
Entretanto o Jaime Luís e a Fátima Carvalho mantiveram-se na carrinha Nissan. Terão virado em direção a Figueiró dos Vinhos e estariam a dirigir-se nesta direção quando o seu carro abalroou pela parte de trás um carro Fiat Punto (2000), conduzido por Fernando Freire dos Santos.
Mesmo quando a Fátima estava na EN236-1, continuou a falar com a sua filha Susana, pelo telefone que levara de casa. A comunicação terminou pouco depois das 20h22.
Fátima Carvalho e Jaime Luís foram encontrados dentro da carrinha Nissan.
A sua casa em Pobrais viria a ser destruída pelo fogo, embora as duas casas que se encontravam ao seu lado não tenham ardido”.
Anabela Esteves e Anabela Araújo
Baseado nos depoimentos de José Esteves, Miguel Esteves e Maria Alice Araújo
“No alto dos Pobrais vive a família de José Manuel Esteves (52 anos), casado com Anabela Quevedo Esteves (47 anos), com os seus dois filhos Diogo Quevedo Esteves (26 anos) e Miguel Ângelo Quevedo Esteves (23 anos).
Numa casa, do outro lado da rua, vivia Anabela Pereira Araújo (39 anos), que era prima de Anabela Esteves.
A sua mãe Maria Alice Piedade Pereira Araújo (58 anos) vive habitualmente no Porto, mas vinha regularmente a Pobrais, para estar com a filha.
No dia 17, pelas 19 horas o Miguel Ângelo saiu para ir à Figueira da Foz. Nessa altura a situação não parecia ser preocupante. Pelas 20 horas, o José e a Anabela Esteves viram aproximar-se o incêndio que iria entrar na aldeia pelo lado das suas casas. O José decidiu retirar os carros para um lugar mais seguro, pois teve receio de que, ficando ali expostos, se queimariam. Saiu no Fiat Punto, enquanto a Anabela Esteves levou o Peugeot 106 (1998).
Quando iam a sair, a Anabela viu a prima Anabela Araújo e disse-lhe para vir também, o que ela fez de imediato. Os dois carros saíram juntos de Pobrais, em direção à EN236-1. Ao entrarem nesta estrada, aperceberam-se da confusão que havia na estrada e saíram logo no cruzamento seguinte, para a esquerda, que é o ramal da estrada antiga, que vai para a Barraca da Boavista, e Várzeas. A sua intenção era a de retomarem a direção do IC8 e de fugirem para Figueiró dos Vinhos.
Ao chegar ao cruzamento dentro de Barraca, dirigiram-se à EN236-1, mas ao aperceberem-se da confusão que havia nesta estrada, em direção a Figueiró dos Vinhos, seguiram em frente por uma estrada de terra, que segue para Agria. Voltaram para trás e voltaram ao cruzamento dentro de Barraca da Boavista. Ao chegar a este cruzamento, viraram à direita, por uma estrada antiga, quase paralela à EN236-1. Mas a poucas dezenas de metros mais adiante, esta estrada estava também com fogo em toda a volta, também nalgumas das últimas casas do lugar de Barraca. Fizeram inversão de marcha e voltaram na direção que traziam, para o cruzamento no centro de Barraca, onde estavam a passar pela terceira vez. Certamente perderam-se de vista momentaneamente, por causa do fumo ou por algum atraso na manobra de inversão de marcha e por isso neste cruzamento o José Esteves virou para a direita, em direção a Várzeas, ao passo que a sua mulher virou para a esquerda, de novo em direção à EN236-1.
A Anabela seguiu com o carro para a EN236-1 e deve ter participado na confusão e no terror que ali se viveu nos minutos seguintes. Desconhecemos em pormenor as manobras que realizaram, mas é provável que tenham começado por tentar ir para Figueiró dos Vinhos, mas acabaram por ficar orientadas para Castanheira de Pera.
O Peugeot 106 em que se deslocavam imobilizou-se a 260 metros do início do troço do acidente, de encontro ao rail do lado direito da estrada. Era um dos veículos mais avançados do conjunto de cinco que obstruíam a estrada nesta zona.
Pelas 20 horas o Miguel Ângelo recebeu uma chamada da mãe a dizer-lhe que estava tudo a arder. A partir dessa hora regressou imediatamente para Pobrais, para vir ajudar os pais. Foi falando com a mãe até que ela deixou de ligar ou de atender o telefone.
É seguro que tanto a Anabela Esteves como a Anabela Araújo abandonaram o carro e se dirigiram para o Ford Galaxy da família Abreu, que deveriam conhecer. A Anabela Araújo foi encontrado dentro do Ford e Anabela Esteves junto da porta traseira do lado esquerdo mas, ao que tudo indica, não terá chegado a entrar na viatura.
Um amigo de Anabela Araújo, o Vítor Neves, que é Sapador Florestal, chefiava uma equipa que estava a trabalhar em Escalos Fundeiros. Quando terminaram o seu trabalho ali, decidiu ir até Pobrais, para ver se poderia prestar uma ajuda à Anabela Araújo e aos seus vizinhos. Fê-lo com a ajuda de outras pessoas, sem saber do que havia sucedido à Anabela.
O José Esteves teve que parar o carro, poucos metros mais adiante, ainda dentro de Barraca, por causa do fogo na estrada. No trajeto recolheu um casal, Mário Braz e Regina Braz, de Casal da Horta, que tiveram de abandonar o seu carro, por causa de um pinheiro caído na estrada. Estavam a pé e queimados nas pernas. Pediram-lhe ajuda e entraram no carro de José. Depois refugiaram-se todos em casa de Eduardo Abreu (62 anos) e, na Barraca da Boavista. Este senhor viria a acolher na sua casa mais cinco pessoas, muitas delas feridas.
O Miguel Ângelo regressou cerca das 21hl0 a Pobrais. Como conhece bem as estradas, apesar de algumas estarem cortadas pela GNR e outras pelo fogo, conseguiu chegar à aldeia e foi à procura dos pais. O José Manuel chegou a casa pelas 21h40 e, pouco depois, voltou à EN236-1, à procura da mulher. A GNR não o deixou entrar na zona onde estavam os carros. Mais tarde o Miguel veio a saber que a mãe tinha morrido.