Foi pelas 20 horas que a família Pinhal decidiu abandonar as casas onde estava de férias para fugir ao incêndio. O fumo intenso que pairava na chamada estrada da morte, a EN 236-1, forçou os carros a fazerem várias manobras de inversão de marcha numa tentativa de escapar às chamas. Pelo meio da confusão e da perda total da visibilidade, que resultou em acidentes entre as várias viaturas que circulavam naquela estrada, Mário Pinhal conseguiu tirar dali o seu carro já sem pneus, com as jantes a arrastar pelo alcatrão. Salvou os seus pais e a sua tia, que seguiam consigo na viatura até onde a carroçaria aguentou. A mesma sorte não teve a sua mulher, Susana Pinhal, e as suas duas filhas Joana Pinhal e Margarida Pinhal, com 15 e 12 anos, respetivamente, que acabaram por morrer a duzentos e poucos metros da viatura de Mário Pinhal sem que este, que as procurou durante horas as tivesse descoberto.
Este é o relato de Mário Pinhal aos investigadores da equipa de Domingos Xavier Viegas, que conta em detalhe no capítulo VI o inferno que se viveu durante aquelas horas do dia 17 de junho de 2017.
Nas próximas edições o i vai publicar as histórias, baseadas em relatos de familiares e amigos, das 65 pessoas que morreram durante o incêndio de Pedrógão Grande. São as histórias que constam do capítulo VI do relatório encomendado pelo governo aos peritos liderados por Xavier Viegas e que o executivo decidiu ocultar.
“O grupo da família de Mário Pinhal era constituído por sete pessoas, de três gerações da mesma família: Eduardo Pinhal Rodrigues Paiva (72 anos), casado com Maria Odete Paiva António (68 anos), pais de Mário Pinhal (55 anos), Maria Helena Rodrigues António, irmã de Maria Odete; Susana Maria Guerreiro Marques Pinhal (40 anos), casada com Mário Pinhal e Joana Marques Pinhal (15 anos) e Margarida Marques Pinhal (12 anos), filhas de Mário e Susana Pinhal.
Eduardo Paiva e Maria Odete vivem perto de Lisboa, numa casa próxima da de Mário Pinhal, mas possuem outra casa em Várzeas contígua à de Maria Helena. Mário Pinhal vive próximo de Lisboa e tem uma casa de construção recente, na parte de baixo de Várzeas, próximo da dos pais.
Estava a passar uns dias em Várzeas com os pais e no dia 17, após o almoço descansaram um pouco, pois estava muito calor. A meio da tarde o Mário foi arranjar um muro no fundo da propriedade, enquanto as filhas tomavam banho num tanque de que dispõem. Pelas 18 horas ouviu um trovão ao longe e pareceu-lhe ver cair umas “velhas” (termo que designa as fagulhas ou partículas queimadas ou de cinza). Alguém terá dito: “Parece que vem aí uma trovoada.”
O Mário disse às filhas para saírem do banho, para irem jantar e depois foi com o pai até sua casa, que ficava mais acima, para ver onde era o incêndio. A Maria Odete ficou ainda no quintal a regar uns canteiros.
O Eduardo apercebeu-se logo da violência do fogo, do vento forte e do grande barulho que fazia, na direção a Pedrógão. Nesta altura chegou a sua mulher, Maria Odete que informou que tinham ficado sem eletricidade e disse que ia preparar as miúdas para fugirem.
O Mário reparou que junto de uma torre de telecomunicações que está a leste de sua casa tinha começado a arder. Pouco tempo antes tinha olhado para aquela mesma torre e vira que não havia fogo naquele local. Sentiu que o ar era sugado para o incêndio.
Ao regressar a casa, a Susana e a Maria Odete encontraram-se e trocaram este diálogo: “Mete medo, não há quem resista. Vou fugir no carro.”
A Maria Odete disse-lhe: “Susana, e se ficássemos em casa?”
Ao que a Maria Odete respondeu: “Eu vou com as minhas filhas.”
O Mário referiu-me que em conversa com a mulher, quando estavam a construir a casa, haviam tomado a resolução de, em caso de aproximação de um incêndio, permanecerem em casa, que lhes parecia oferecer segurança.
Nessa altura continuava o vento e o barulho. O portão da casa batia com o vento e viam-se rolos de ervas e troncos de árvores a voar.
O Mário foi até casa dos pais, ligou a bateria do Ford Escort do pai, que estava na garagem e preparou-se para arrancar, com os pais e a tia. A Maria Helena não queria ir-se embora, só à terceira insistência da Maria Odete, se decidiu a sair.
A Susana saiu ao volante do carro profissional do marido, um Toyota Auris, com as duas filhas, seguindo atrás do Mário. Seriam cerca das 20 horas, quando saíram de Várzeas.
Ao chegar ao cruzamento de Barraca da Boavista não havia chamas. Viraram à esquerda, na 236-1, mas vendo carros parados adiante, depois de percorrerem uns 30 metros, fizeram inversão de marcha, em direção a Castanheira de Pera. Ao chegarem perto do cruzamento para Pobrais viram que havia carros parados e fumo. O Mário apercebeu-se que havia uns três ou quatro carros batidos à sua frente e viu o Mercedes Benz 190, com o Ricardo e a mulher. Teve de travar a fundo, para não chocar com eles. Fez nova inversão de marcha, a penúltima, em direção a Figueiró dos Vinhos. A Susana seguiu sempre o marido em todas as manobras e inversões de marcha que fez.
Pelo testemunho de Mário Alves, que saíra igualmente de Várzeas, alguns minutos depois desta família, sabemos que em determinada altura dois carros, que ele admite que sejam os que eram conduzidos pelo Mário Pinhal e pela Susana, estariam a fazer inversão de marcha, deixando a direção de Castanheira de Pera e voltando para Figueiró dos Vinhos.
O Mário Alves contou-nos que quando estes dois carros completaram a manobra, a estrada ficou livre para ele e pode prosseguir com a sua mãe, no Opel Corsa, em direção a Castanheira de Pera. Se esta interpretação estiver correta, pergunta-se o que teria levado aqueles dois carros a fazer inversão de marcha, pois logo a seguir um carro mais pequeno conseguiria prosseguir na direção que levavam, sem problemas de maior. Temos de admitir que se tratou de uma questão de oportunidade, num ambiente em que as circunstâncias mudavam de um minuto para o outro, sendo que uma decisão que poderia ser tomada a um dado momento, deixava de ser exequível no minuto seguinte.
Ao passar pelo carro da Susana, o Mário gritou-lhe: “Vamos voltar para casa!”
A partir desta altura a sua ideia era a de voltar para Várzeas. Quando iam em direção a Figueiró dos Vinhos, pouco antes de chegar ao cruzamento para Barraca e para as Várzeas, o Mário viu um pinheiro caído no lado esquerdo da estrada. Ao considerar que não tinha condições para passar ao lado, ou por cima dele, decidiu fazer nova inversão de marcha, que seria a última. A meio da manobra, quando se preparava para recuar, apercebeu-se que vinha um outro carro, em marcha rápida, com intenção de passar por trás dele. A fim de não o atrapalhar, não apenas suspendeu a marcha, como, num gesto de grande lucidez e altruísmo, desengatou a marcha atrás, com o que apagou a luz indicadora, para sinalizar ao outro condutor que poderia prosseguir na manobra que estava a fazer. O condutor da outra viatura era o Carlos Gama.
Nesta manobra de inversão, possivelmente a Susana adiantou-se e seguiu para diante, separando-se do carro do Mário. O Mário não se apercebeu disso, considerava que vinham atrás dele, como sempre o tinham feito.
A Susana foi andando, no meio do fumo, percorrendo cerca de 275 metros desde o início do troço, ficando parada a meio da faixa de rodagem, pouco atrás do carro de Anabela Antunes, que tinha batido no rail do lado direito. Ao seu lado esquerdo e um pouco atrás estava a viatura Ford Galaxy (2001) de Fernando Abreu. Possivelmente nesta paragem a viatura Ford Focus, que estava parada um pouco atrás terá batido no carro da Susana, pois este apresenta uma deformação na traseira, que aparenta ter sido causada por um embate traseiro.
O carro do Mário parou uns metros atras do carro da Susana. O Mário parou o carro e sentiu um carro bater-lhe na traseira. Como estava parado entre dois carros, o Mário não conseguia retirar o seu. Ao princípio pensou que o carro atrás dele fosse o da sua mulher e filhas. Ficou muito alarmado quando viu que começara a arder. Quis sair para ajudar a retirar as filhas. Pouco depois reconheceu que não era o carro da mulher.
Nessa altura chegou a língua de fogo, o vidro do para-brisas escureceu e deixou de ver para o exterior. O retrovisor que estava colado no interior do para-brisas, descolou-se e caiu. Desligou o motor e decidiu esperar. Observou que os retrovisores exteriores começaram a derreter e a descair.
Viu ainda uma pessoa que saíra de um carro, ao colocar-se em pé, o seu cabelo começou a arder. Pouco adiante a roupa começou a arder e a pessoa caiu no chão, à beira do carro. Depois levantou-se e continuou a andar, vindo a cair do lado direito da estrada, antes do pinheiro que caíra na estrada.
Teve a presença de espírito de manter os vidros do carro fechados e, apesar da insistência da mãe para saírem, foi firme a dizer que não deveriam sair. Deu indicações aos seus familiares para respirarem com calma, evitando gritar, para poupar o ar que tinham no carro. Sentiu que alguns carros à volta estavam a arder e ouvia os pneus de outros carros a rebentar.
Entretanto deixou descair o carro, afastando-se do monovolume que estivera encostado ao seu carro. Conseguiu assim espaço para manobrar o carro e, pondo o motor trabalhar, saiu de onde estava, em marcha atrás. Os pneus tinham ardido e o carro estava a andar com as jantes na estrada. O Mário lembra-se de ter levado o motor do carro às 5000rpm, para fugir rapidamente daquele inferno e foi até onde o carro aguentou.
Quando o carro parou, a mãe queria sair do carro. O Mário abriu o vidro e sentiu que o ar exterior estava muito quente e por isso fechou-a imediatamente. Mais tarde abriu uma segunda vez e sentiu que o ar no exterior estava mais frio e considerou que poderiam sair. Deu indicações à mãe para colocar o avental que trazia de casa, à volta da cara, para proteger as vias respiratórias.
Ao sair do carro o Mário olhou em sua volta, para ver se reconhecia o carro das suas meninas.
A mãe e a tia, que vinham atrás, saíram pela porta do lado esquerdo. O Mário teve de ajudar a tia, pois logo que começou a andar, o calçado ficou pegado ao alcatrão. A senhora perdeu o equilíbrio e caiu no chão. O Mário ajudou-a a levantar-se, recolheu o sapato e foi sempre amparando a tia. Voltaria a cair de novo. Os pais do Mário foram um pouco mais depressa e a determinada altura perdeu de vista a mãe.
A Maria Odete, foi recolhida por Sérgio Lourenço, adjunto dos Bombeiros Voluntários de Pedrógão Grande, acabaria por chegar a Figueiró dos Vinhos e fizeram-lhe um curativo no Centro de Saúde, por causa das queimaduras que tinha. Os serviços de saúde pretendiam levá-la para Coimbra, mas pediu que a deixassem ficar.
Depois de ter passado para o outro lado do pinheiro viu uma viatura de Figueiró dos Vinhos. Um Bombeiro começou a gritar para ele, ao que o Mário lhe disse:
“ – Vá ajudar as minhas meninas!
– Se eu for para lá, fico lá também”.
Entretanto o Mário veio andando com o pai e a tia, andando até Barraca da Boavista, convencido de que a mulher e as filhas tinham ficado para trás e que possivelmente teriam ido para casa, como lhes tinha indicado, ia olhando para os carros que por ali estavam, para ver se algum seria o seu. Em Barraca foram acolhidos na casa de um senhor, que lhes ajudou com tudo o que podia. Já lá havia outras pessoas.
Pelas 21hl5 o Mário fez uma chamada para a Susana, mas não teve resposta. Admitiu que estivessem sem rede ou sem bateria.
Já perto das 23 horas voltou para Barraca da Boavista, recolheu o pai e seguiram a pé até Várzeas. Tendo deixado o pai em casa de uma vizinha, foi até sua casa, com a esperança de encontrar lá a mulher e as filhas. Encontrou no entanto a casa fechada e o portão trancado. Apagou as luzes e alguns focos de incêndio que havia no quintal.
Pelas 23 horas chegou uma viatura de Bombeiros de Batalha, que ajudou a apagar o fogo nalgumas casas. O Mário foi com o 2.º Comandante dos Bombeiros Voluntários de Batalha para Vila Facaia e noutra viatura para Figueiró dos Vinhos. Em seguida voltou para Várzeas, para junto do pai. Pelas 5 horas, chegou a mãe.
Pediu ajuda a um vizinho para o levar de novo a Barraca, para falar com a GNR, que já ali estava desde há várias horas, não deixando que as pessoas se aproximassem. Pelas 7 horas, encontrou alguns agentes da PJ, a quem deu indicações do carro da sua mulher, referindo as suas filhas. Pediu-lhes para lhe falarem com franqueza e abertamente, pois saberia receber uma má notícia, sem desfalecer. Passado algum tempo, depois de verificarem que as indicações dadas coincidiam com os registos que tinham, os agentes confirmaram ao Mário a morte da sua mulher e filhas”.