O museu contemporâneo. Trancados no meio da multidão

O museu contemporâneo. Trancados no meio da multidão


A demissão do director artístico de Serralves expôs a “guerra civil” que se trava hoje nos grandes museus, onde os curadores se vêem obrigados a aquiescer face às lógicas que servem o turismo e a propaganda cultural


Um dos triunfos evidentes da arte contemporânea terá sido a forma como rompeu com uma contida pestilência que aproximava museus e morgues. Espaços frios destinados a preservar uma qualquer herança do lento naufrágio do tempo, que nos vai empurrando a todos para o esquecimento. E se as estruturas enormes, palacianas e atemorizadoras do século XIX, não estão completamente ultrapassadas, e até emprestam aos museus um certo peso no imaginário colectivo, isso convive com a noção de que esses templos são lugares onde o aborrecimento vai passar os olhos por todo o tipo de lembranças.

O poeta Lêdo Ivo viu os mortos, também eles, a tirarem férias, turistas do eterno, percorrendo os museus do éter. Walter Benjamin deu nota do risco de os museus se tornarem grandes colecções de restos do passado, com tudo o que fosse digno de ali entrar a ser sujeito a temperaturas negativas, imobilizado num culto, e rodeado de todos os cuidados para ser transmitido às gerações futuras. Assim, viveríamos reféns da tradição, do esforço de transmiti-la, e foi esse o perigo que denunciou Benjamin, afirmando que, se a visão patrimonial da arte se impusesse para além de um certo ponto, mais valia que tudo se perdesse. Antes começar de novo, do que ficar cercado de todos os lados pelo passado.

Duchamp deixou-nos aquela famosa descrição da arte como um jogo entre todos os homens de todas épocas. Se a já clássica divisão entre os espíritos que jogam mais à direita ou mais esquerda – sendo aqueles adeptos de uma visão patrimonial da arte, enquanto estes privilegiam o investimento na função criativa – se mantém, há uma outra definição de arte que assume hoje particular relevância. Oscar Wilde disse que esta é um espelho, não da vida, mas do espectador. E à sua luz, Alberto Manguel, num ensaio sobre a função dos museus – “A Musa no Museu”, que integra a colecção de ensaios “No bosque do espelho” (Dom Quixote, 2009) –, lembra-nos que, se as circunstâncias sociais determinam a natureza do museu, e fazem com que exista, dentro dos seus limites, e mais ou menos consciente desta moldura, o espectador “vê-se confrontado não com o fruto de rigores externos, não com aquilo que é enformado pela moldura, mas com uma construção artística que exige a sua atenção privada e à qual tem de responder como se estivesse só no mundo”.

Manguel irá levar mais longe esta ideia no ensaio seguinte – “Ovos de Dragão ou Plumas de Fénix, ou Uma Defesa do Desejo”  –, e acrescenta que, “para aqueles visitantes que conseguem diferenciar entre o contentor e o conteúdo, entre a colecção e as pinturas individuais coleccionadas, entre o espaço uniformizante e o desejo uniformizado, mesmo uma visita ao Louvre – onde o número de visitantes aumentou dramaticamente nos últimos anos – “pode ser uma viagem privada e autodefinidora, e a relação de um visitante particular com uma pintura particular pode ser a de Robinson Crusoe com a ilha solitária em que ele teve de sofrer e, no entanto, habitar – com todos os seus mistérios, perigos, dificuldades, e nunca esgotadas maravilhas”.

O escritor que tem sido repetida e abusivamente caracterizado como um discípulo de Jorge Luis Borges, procura responsabilizar o “público”: “aquelas pessoas a favor de quem os movimentos populistas, tais como o da Revolução Francesa, tanto lutaram pelo acesso à arte, essa multidão arrebanhada de que todos os governos precisam para justificaram a sua existência, tem de, por sua vez, ser dissolvido”.

Sem necessidade de um grande desvio, é neste aspecto que o actual conflito que se vive na Fundação de Serralves depois da demissão do seu director artístico pode ser encarado numa perspectiva mais abrangente. Há umas semanas, na entrevista que deu ao jornal “Público”, João Ribas vincava o imperativo de o museu “ser um espaço de resistência à influência do mercado”. Ora, um diagnóstico que tem prevalecido sobre o que se passa no “campo artístico” em Portugal tem vindo a subverter as mais clássicas e inspiradoras noções do que é a arte. E numa das suas crónicas, naquele mesmo jornal, António Guerreiro chegou mesmo a afirmar que “nada exprime melhor a natureza mercantil do nosso mundo do que a arte” (“Dinheiro é Arte”).

Numa intervenção a propósito da colecção Miró, e procurando uma justificação para o que teria levado “aqueles banqueiros do BPN, cúpidos e filisteus de nome próprio” a adquirirem aquele acervo artístico, Guerreiro expunha o aspecto mais banal destas operações que se servem de um charme superficial: “A resposta é óbvia e toda a gente a conhece: porque os banqueiros, na medida em que sabem muito de dinheiro, têm também da arte este saber importante e necessário: as obras de arte circulam como o dinheiro”.

Mais à frente, o crítico literário recordava que “os museus especulam hoje sobre as suas colecções exactamente da mesma maneira que os bancos: pondo o seu capital (a colecção), ou o capital de outrem, em circulação (através de exposições). Quanto mais ele circula, mais se acumula. A arte é puro valor de troca (de um ponto de vista marxista, representa a mercadoria por excelência) e tem um valor de uso nulo. Segundo o sociólogo francês Pierre Bourdieu, o valor simbólico da obra de arte, o ‘interesse pelo desinteresse’, é a imagem especular do seu valor de uso. O objectivo principal dos museus de arte contemporânea é obter a confiança do público na arte e no capital, segundo o princípio de que as duas coisas são inseparáveis.”

Entretanto, se a controvérsia envolvendo o Museu de Serralves, em que várias vozes têm denunciado actos de ingerência por parte do conselho de administração liderado por Ana Pinho nas funções de João Ribas – seja enquanto director artístico da instituição, seja enquanto curador da exposição “Robert Mapplethorpe: Pictures” –, o caso provou ter, pelo menos, uma invulgar capacidade de atrair a atenção pública, provocando uma enchente: mais de seis mil pessoas visitaram a exposição em apenas quatro dias. Numa altura em que a poeira está longe de assentar, com o ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, a preferir, como é seu hábito, resguardar-se na morgue, ao invés de ter um papel actuante face a uma instituição onde o seu ministério investe mais dinheiro do que em qualquer dos museus públicos nacionais, deve notar-se que o risco que corre o Museu de Serralves é de uma natureza muito diferente daquela que tradicionalmente se apontava aos museus.

Eduarda Neves, primeira signatária da carta aberta que exigia ao Conselho de Administração de Serralves que, face “aos últimos acontecimentos ocorridos em torno da exposição do fotógrafo Robert Mapplethorpe, “apresente a respetiva demissão ou, caso não se confirmem os factos expostos, proceda ao contraditório”, publicou em julho deste ano, no quinto número da “RE.VIS.TA.” – publicação dedicada aos temas da arte/reflexão/crítica –, o texto “Duas ou três coisas que sei sobre ele. O museu de arte contemporânea de Serralves”. Ali, o diagnóstico anteriormente traçado sobre  os museus é desenvolvido focando o caso de Serralves, que a professora auxiliar da Escola Superior Artística do Porto aponta como exemplo da “familiaridade entre museu e capital”, não opondo resistência à tendência para se transformar em mais um pólo mobilizado pelas lógicas da propaganda cultural que mais investimento atraem: “Anúncios publicitários, faixas, cartazes que nos sugerem a doação de 0,5% do nosso IRS para que o museu possa ‘ir mais longe’, dominam o espaço. Desta forma, engolem imagens que propõem comunicar-nos exposições presentes e futuras. Garantida a fidelidade ao happy end e a aproximação confortável aos patrocinadores e organizadores, contribui para assegurar a boa imagem das empresas, promover o turismo e o show business.”

Incapaz de oferecer resistência ao mercado, como aponta Boris Groys, o museu transforma-se numa espécie de contentor da economia global, e, segundo Eduarda Neves, isso significa que são privilegiadas as “colecções que mais parecem funcionar como banco de trocas”. Consequentemente, “a arte contemporânea não ocidental patrocinada por grandes empresas que investem globalmente, reflecte a forma através da qual o museu constitui a extensão de projectos económicos que servem o turismo, a economia global e a designada prosperidade económica”.

Voltando à ideia de Manguel de que cabe ao público “tornar-se acessível, não como uma massa uniforme idealizada, mas como uma colecção de indivíduos heterogéneos, que trazem desejos específicos e conceitos diversos de saudável anarquia para dentro das salas rotuladas de um museu”, torna-se evidente que são os próprios museus hoje que traem esta noção. Se para Manguel o desejo é a noção chave, pois, uma vez que não pode funcionar como “uma força colectiva, mas algo essencialmente íntimo, um sentido privado com que se explora o mundo”, este vê-se frustrado pelos projectos museológicos que, ao contrário do Louvre, ao invés de buscarem formas engenhosas de lidar com o problema das multidões, tudo fazem para atrair as massas uniformizadas. Ao invés de criar atrito, desconsideram a noção de que “o observador deve estar só perante a criação solitária”, “para que a experiência de visitar um museu possa ter sentido para além do turismo”.

Manguel termina o ensaio lembrando as palavras de Paul Valery gravadas na fachada do Musée de l’Homme, em Paris. Data de 1937, este mot de passe que lê quem esteja às portas daquele museu à espera de entrar – “Depende de quem entra/ Que eu seja tumba ou tesouro/ Que eu fale ou fique em silêncio. Só tu decidirás./ Amigo, não entres sem desejo” –, e que não poderia, por estes dias, ser lido senão de forma sarcástica, por um qualquer Robinson Crusoe que, ao entrar no Museu de Serralves, se sentisse participar num naufrágio em que fosse obrigado a dizer adeus para sempre à condição de solitário, para ficar trancado no meio da multidão.