1. Batizado brilhantemente de geringonça por Vasco Pulido Valente, um nome logo retomado publicamente pelo panfletário Paulo Portas, o atual governo é um caso fenomenal, quer se goste ou não da sua substância.
Trata-se de uma verdadeira mesa pé de galo. Tem três pés: PS, Bloco e PCP. Sendo na prática uma coligação parlamentar, equilibra-se com dificuldade, mexe, abana, mas não cai como aquelas mesas sobre as quais se deitam cartas e se fazem chamadas para falar com o além e antecipar o futuro. Quem antevia o caos na sua vigência enganou-se. Pelo contrário, as coisas correram particularmente bem devido à habilidade de Costa e à estratégia de Centeno de ministrar uma austeridade enorme, mas escondida, aliada a uma conjuntura económica e de paz social inéditas nos últimos anos.
Para além deste governo pé de galo, todo o quadro político que temos é praticamente único, irrepetível e cheio de equilíbrio. Começa pela circunstância do maior partido, o PSD, não estar no governo, apesar de ter ganho as eleições. Essa situação confere aos sociais-democratas uma influência enorme porque lhes basta fazer acordos com o Bloco e/ou com o PCP para deixar os socialistas em minoria. No limite, se todos os outros se abstiverem, o PSD bate sempre o PS. Necessariamente, isso dá uma legitimidade reforçada à palavra política dos sociais-democratas que normalmente não sabem utilizar. Inversamente, bloquistas e comunistas podem procurar o apoio do PSD sempre que queiram contrariar iniciativas do PS. Há, portanto, um sem fim de geometrias variáveis no parlamento. Cá fora, nos ministérios, manda o PS, mas os lugares intermédios estão a ser paulatinamente ocupados por bloquistas e em menor grau por comunistas, enquanto se vão mantendo alguns sociais-democratas em empresas públicas e os inevitáveis independentes que estão com todos.
No topo da hierarquia do Estado está um presidente interventor, de direita moderada, que tem uma relação única e direta com a população, o que lhe dá uma autoridade política e moral sobre todo o espectro político e as organizações que compõem as forças vivas da sociedade. Apesar de tudo isto ser um quadro um tanto esdrúxulo, importa reconhecer que temos vivido um período de inédita estabilidade.
O passado mostra que os portugueses têm uma “sagesse” especial quando votam. Parece que sim. O resultado do mais recente voto legislativo gerou uma inesperada e surpreendente situação de estabilidade, feita de equilíbrios, de poderes e de contrapoderes. Não foi a primeira vez. Aconteceu antes também. Foi assim quando logo no PREC os eleitores travaram o PCP ao votarem no PS de Mário Soares; foi assim quando se cansaram do PS e deram corda ao PRD que logo aniquilaram quando viram que era ainda pior do que os outros; foi ainda isso que presidiu a escolhas de maiorias como a AD, a de Cavaco e até a de Sócrates, só possível depois dos episódios surrealistas do governo Santana Lopes.
No ano que vem os portugueses irão votar duas vezes, uma para eleições europeias e outra para legislativas que decidem quem governa. Não vale a pena tentar antecipar resultados. O que for soará. Mas esperemos que os eleitores mantenham a tradição de serem mais inteligentes a votar do que os políticos a governar ou os comentadores a opinar.
2. Joana Marques Vidal não foi reconduzida nas funções de Procuradora Geral da República, ao contrário do que se chegou a dar como certo, inclusivamente neste espaço. Como aqui se defendeu também, o princípio de um mandato único de seis anos era aquele que respeitava a democracia quanto a um cargo de escolha política e com poderes tão vastos como os de PGR, que ninguém controla. Joana Marques Vidal fez um mandato globalmente positivo. Espera-se que a sua sucessora faça a mesma coisa. Lucília Gago é experiente em muitas áreas. Uma delas tem a ver com as questões de menores e de crianças. Será que finalmente se vai averiguar e saber que teias existiram em certas adoções como as da IURD que a TVI denunciou? Oxalá.
3. A torre das Picoas é um atentado arquitetónico nascido em Lisboa na avenida Fontes Pereira de Melo. É mais um caso que o Ministério Público está a averiguar, depois de uma série de notícias denunciando trapalhices. Em resumo, o ex-dono do terreno não recebia autorização para mais de sete andares. Faltou-lhe liquidez, vendeu ao BES de um Salgado. Depois o PDM foi modificado e o mamarracho cresceu até dezassete pisos, com a bênção da autarquia onde pontifica no urbanismo outro Salgado. Agora o monstro está lá e de lá não vai sair. Pobre Lisboa, vítima de tantas teias, de tanta intriga, de tanta golpada, de tantos quadrantes políticos e de tantos interesses.
4. Acabou a rábula demagógica e pateta de transferir para o Porto o Infarmed. Era impraticável, ia custar milhões e o instituto perderia em qualidade. Foi uma precipitação tola para compensar o falhanço da vinda da Agência Europeia do Medicamento para o Porto, ele próprio um processo imposto à última hora quando Lisboa estava em posição de ganhar a corrida. Dois falhanços claros do governo e de Rui Moreira, por mais que este tente sacudir a água do capote.
Jornalista