Sexismo e preconceito. Os acórdãos mais polémicos de Portugal

Sexismo e preconceito. Os acórdãos mais polémicos de Portugal


A mais recente decisão do Tribunal de Relação do Porto levou à convocação de uma manifestação para amanhã. O objetivo: tornar públicos episódios de preconceito no sistema judicial português. O i lembra outros casos polémicos


As reações ao polémico acórdão do Tribunal da Relação do Porto, tornado público na última semana, que decidiu manter a pena suspensa para os dois funcionários de uma discoteca que abusaram sexualmente de uma jovem de 26 anos, tomaram conta das redes sociais nos últimos dias. Foram várias as partilhas e os movimentos feministas que se pronunciaram sobre o tema: será a Justiça em Portugal preconceituosa e sexista? Diminui as vítimas de crimes? Até já há uma manifestação marcada para amanhã, no Largo Amor de Perdição, no Porto, que visa debater sobre o tema e lutar contra o sexismo na Justiça.

Os factos que ocorreram em Vila Nova de Gaia, porém, estão longe de ser únicos, nos últimos anos houve várias decisões polémicas que deixaram os portugueses indignados. Ainda no que diz respeito a crimes sexuais, em 2011, o Tribunal da Relação do Porto absolveu um psiquiatra num caso de violação de uma paciente grávida de 34 semanas.
De acordo com a decisão da Relação, o desrespeito pela vontade da ofendida não foi qualificado como um ato de violência. Os juízes entenderam que a vítima poderia ter resistido, “a não ser que se admitisse que o mero ato de agarrar a cabeça provoca inevitável e automaticamente a abertura da boca”.

Já em julho do ano passado, foi o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) que condenou uma decisão da Justiça portuguesa. Desta vez foi um processo de negligência médica que ocorreu em 2015. Nesse ano, o Supremo Tribunal Administrativo decidiu reduzir o valor de indemnização a uma mulher que tinha ficado com lesões irreversíveis, após uma cirurgia na Maternidade Alfredo da Costa.

No acórdão que baixou a indemnização a pagar à vítima, os juízes consideraram que o problema de saúde da autora do processo já era de longa data e que a cirurgia não fez mais do que agravar as queixas que não eram consideradas como novas. Mas foi a observação que se segue a gerar a revolta dos portugueses: “Importa não esquecer que a autora (da ação) na data da operação já tinha 50 anos e dois filhos, isto é, uma idade em que a sexualidade não tem a importância que assume em idades mais jovens”.

Para o TEDH, a infração foi clara: a justiça portuguesa violou os artigos 14.º e 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a proibição de discriminação e o direito ao respeito pela vida privada e familiar. “A decisão baseou-se sobretudo na ideia de senso comum de que a sexualidade não é tão importante para uma mulher de 50 anos e mãe de dois filhos como é para alguém mais novo”, contestou o Tribunal Europeu dos Diretos do Homem, que considerou a decisão preconceituosa.

O TEDH condenou ainda Portugal a pagar 5710 euros à ofendida por danos não pecuniários e despesas. A crítica, porém, ficou patente, uma vez que Estrasburgo foi mais longe na análise, ao constatar que, em 2008 e 2014, em dois casos de negligência médica movidos por homens, a justiça nacional não tinha sido tão condescendente. “Nestes casos, o Supremo considerou que o facto de os homens não poderem voltar a ter relações sexuais normais afetara a sua autoestima e resultou num ‘choque mental tremendo’, independentemente da sua idade ou se tinham filhos ou não.”

OBSERVAÇÕES DA RELATORA DA ONU

Antes do alerta de Estrasburgo, já tinha havido um aviso internacional sobre as incongruências da justiça portuguesa. Ainda que a observação tenha sido genérica, a relatora da ONU, Gabriela Knaul, que visitou Portugal em 2015 para avaliar o sistema judicial português, detetou as habituais queixas de morosidade e dificuldades de acesso para quem tem menos recursos.

Gabriela Knaul assinalou ainda que é fundamental uma formação adequada e sensibilizou para um melhor desempenho dos atores judiciais no tratamento das vítimas de todos os crimes. “Isto é especialmente verdade enquanto meio para evitar a replicação de preconceitos nas decisões judiciais ou a adoção de medidas contraditórias, nomeadamente no que diz respeito à prisão, o que poderá facilitar o acesso de agressores conhecidos às suas vítimas”.
 
O CASO da POLÉMICA

O alegado abuso sexual que foi noticiado na última semana na imprensa e que tem deixado os portugueses a debaterem sobre a justiça portuguesa aconteceu um ano após a vinda da relatora da ONU a Portugal, numa casa de banho de uma discoteca de Vila Nova de Gaia. Segundo a decisão do Tribunal da Relação do Porto, o sucedido resultou de um ambiente de “sedução mútua” e “ilicitude não elevada”.

Os arguidos são o responsável pelo estabelecimento e o porteiro/relações públicas da casa de diversões noturna, com  25 e 39 anos, respetivamente. Inicialmente foram condenados a quatro anos e meio de prisão pelo Tribunal de Vila Nova de Gaia, mas apenas estiveram de fevereiro a junho de 2017 em prisão preventiva. Tendo passado de seguida para prisão domiciliária com pulseira eletrónica até à data do julgamento, no qual foram condenados “pela prática, em autoria material, de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência”, cuja moldura penal é de dois a dez anos de prisão.

Apesar de o acórdão assinado pelos juízes Maria Dolores da Silva e Sousa (relatora) e Manuel Soares referir que “os factos demonstram que os arguidos estão perfeitamente integrados, profissional, familiar e socialmente e dão-nos conta de, pelo menos, grande constrangimento dos arguidos perante a situação que criaram”, o Ministério Público (MP) recorreu da sentença por não concordar com a suspensão da pena de prisão. O MP considera mesmo expectável que, perante a função dos acusados, estes protegessem os seus clientes, em vez de serem eles a aproveitar-se do estado das pessoas, neste caso de excesso alcoólico.

Durante as declarações, a vítima afirma que depois do crime e ainda antes de abandonar a discoteca, apresentou alguns “momentos em que recuperava a noção da realidade”, mas foi durante o trajeto para casa, que recorda ter sido confrontada por um dos arguidos “por se encontrar acometida de sentimento de vergonha”, lê-se no acórdão.

O documento revela ainda que houve tentativas de contacto e mensagens escritas enviadas para o telemóvel da vítima no dia seguinte, “dando assim conta das circunstâncias que veio a confirmar serem da autoria dos arguidos, uma vez que nunca haviam trocado entre si os números de telemóvel”.

CRONOLOGIA

1989  O Supremo Tribunal considerou que duas turistas sequestras à saída de Almancil e que viriam a ser violadas por dois homens tinham sido culpadas, em parte, pelo sucedido, por terem sido ingénuas e provocadoras. “Se é certo que se tratam de dois crimes repugnantes, as duas ofendidas muito contribuíram para a sua realização”, lê-se no acórdão. “Raparigas novas, mas mulheres feitas, não hesitaram em vir para a estrada pedir boleia a quem passava, em plena coutada do chamado macho ibérico. É impossível que não tenham previsto o risco que corriam; pois aqui, tal como no seu país natal, a atração pelo sexo oposto é um dado indesmentível e, por vezes, não é fácil dominá-la”.

2017  O juiz desembargador Neto de Moura absolveu um arguido em junho de 2016, num caso de violência doméstica de um homem de Felgueiras. Em outro acórdão, o juiz já tinha criticado a vítima por ter cometido o adultério e escreveu “uma mulher que comete adultério é uma pessoa falsa, hipócrita, desonesta, desleal, fútil, imoral. Enfim, carece de probidade moral”. De acordo com última decisão judicial e mesmo após ter sido provado o caso de violência, o juiz relatou que “não surpreende que [a ofendida] recorra ao embuste, à farsa, à mentira para esconder a sua deslealdade e isso pode passar pela imputação ao marido ou ao companheiro de maus tratos”.

2017  Se as observações sobre o adultério da mulher foram criticadas de forma unânime, as opiniões parecem dividir-se na discussão de fundo, sobre o preconceito da Justiça portuguesa. A ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, foi perentória: “Não é um caso que faz o sistema”. Mediante os casos, a procuradora de carreira salientou que não é possível extrapolar “o estado de consciência da magistratura relativamente a questões de igualdade”.