1. A verdade é um valor crucial da democracia. Porque reforça a ligação de confiança entre eleitos e eleitores. Feita esta asserção inicial, que julgamos incontestável, cumpre assinalar mais um episódio em que o poder político faltou à verdade aos portugueses. E, desta feita, tal conduta é especialmente repreensível: por um lado, porque não foi apenas o usualmente mentiroso António Costa (que tem um problema crónico com a verdade, já há muito tempo diagnosticado) que faltou à verdade aos portugueses, antes envolvendo também o Presidente da República; por outro, o objecto imediato da mentira é particularmenre grave, correspondendo ao estatuto constitucional de um órgão fulcral na administração da justiça portuguesa, maxime, a nomeação da Procuradora-Geral da República. Avançamos, aqui e agora, que o mais chocante neste processo consistiu na argumentação expendida pelo Presidente (que é um magnífico e inspirador Professor Catedrático da melhor Faculdade de Direito do país que é a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) de que a Constituição prevê um mandato único, longo, para o Procurador, posição que ele (Marcelo Rebelo de Sousa) defenderia há mais de vinte anos, indo, destarte, ao encontro da posição expressa por António Costa. Ora, nada disto é verdade: nem a Constituição da República Portuguesa prevê um mandato único para o Procurador-Geral da República; nem, tão-pouco, Marcelo Rebelo de Sousa defende há vinte anos tal posição. Demonstremos.
2. A Constituição não prevê, muito menos impõe, um mandato único para o Procurador-Geral da República. Há, sobre este ponto, muita confusão que foi posta a correr nos jornais que importa esclarecer. É verdade que a revisão constitucional de 1997 introduziu alterações nesta matéria, ao acrescentar ao artigo 220.º da Constituição da República Portuguesa, um número três, dispondo o seguinte: “o mandato do Procurador-Geral da República tem a duração de seis anos, sem prejuízo do disposto na alínea m) do artigo 133.º”. Pois bem, o que a revisão constitucional de 1997 resolveu foi o problema da duração do mandato do Procurador-Geral da República, não limitando, contudo, a possibilidade de renovação do seu mandato. De forma mais clara e directa: a Lei Fundamental diz-nos quantos anos tem cada mandato do Procurador-Geral da República; não nos diz, porém, quantos mandatos pode exercer um determinado Procurador-Geral da República. Complexo? Nada disso. Estabeleçamos o paralelo com o Presidente da República: a Constituição diz-nos que o mandato do Presidente da República tem a duração de cinco anos; e que um determinado Presidente da República pode desempenhar dois mandatos. Já no caso do Procurador-Geral da República, a Constituição resolve a primeira questão (mandato tem X anos); contudo, não resolve a segunda (quantos mandatos poderá um titular do órgão desempenhar). Solução: compete ao Governo e ao Presidente da República a decisão cimeira sobre a renovação do mandato do Procurador-Geral da República, efectuando um juízo político (não jurídico) sobre o seu desempenho.
3. Aliás, o acto de nomeação do PGR é um acto político stricto sensu. Porquê? Porque se traduz no recorte de opções políticas essenciais da comunidade politicamente organizada, neste caso, do traçado de órgão que intervém na administração da justiça em sentido amplo, mas que, simultaneamente, representa o Estado (e executa a política criminal definida pelos órgãos dotados de legitimidade democrática para o efeito). O que significa que este acto de nomeação e exoneração do Procurador-Geral é um acto livre do Presidente da República, mediante proposta do Governo – inexistem limites, legais ou constitucionais, adicionais para a sua prática. Este entendimento já foi sufragado pelo Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 254/92 (citando, curiosamente, a melhor doutrina nesta matéria que é a de….Marcelo Rebelo de Sousa – que ironia do destino!). Mais: ao contrário do que sugeriram alguns comentadores televisivos, a Assembleia da República não pode, sob pena de inconstitucionalidade orgânica e material, fixar, em letra de lei, um mandato único para o PGR. Porquê? Porque precisamente tal lei significaria a restrição (por acto legislativo ordinário) de um poder constitucional (livre, mediante proposta do Governo) do Presidente da República.
4. Por outro lado, Marcelo Rebelo de Sousa afirmou que é a favor do mandato único longo. Mandato longo? O que é um mandato longo? Ora, para nós, um mandato longo poderá ser reconduzido ao mandato dos juízes do Tribunal Constitucional (de nove anos). Porquê? Porque, em tese, estes juízes poderão coexistir com dois Presidentes da República, três legislaturas e até três Governos. E daí a Constituição, ela própria, impor um mandato único. Ora, no caso do PGR, o mandato é de seis anos – o que significa que é pouco mais do que um mandato presidencial e uma legislatura. Como se poderá afirmar que é um mandato tão longo, que justifica (sempre) apenas um mandato? Já para não referir que a própria Constituição permite que o Presidente da República, mediante proposta do Governo, exonere o Procurador, caso este abuse dos seus poderes ou coloque em causa a necessária independência do órgão – retirando, pois, fundamento às preocupações de Marcelo e Costa….Muito mais poderia ser dito sobre o estatuto jurídico do PGR. Limitações de espaço – e de paciência do leitor – ditam o abreviamento das nossas considerações. Politicamente, nós sabemos que Marcelo Rebelo de Sousa conhece tudo o que aqui ficou escrito – e concorda, integralmente, connosco. Basta apenas ir ler o que Marcelo publicou sobre a matéria nos seus anos de docência e intervenção política. Não obstante, inventou que defende há vinte anos tese diferente apenas para cobrir a decisão política de António Costa – abdicando, por conseguinte, dos seus poderes presidenciais. Incumprindo, por consequência, o seu dever constitucional de cumprir e fazer cumprir a Constituição, mentindo aos portugueses sobre o seu conteúdo. E, antecipadamente, por coerência, abdicando de concorrer a segundo mandato – e dando azo a que proliferem, nas redes sociais, suspeitas sobre as suas verdadeiras motivações– as quais são, acrescentamos, profundamente injustas.
5. Cessando agora a intervenção na faceta de analista jurídico-político, deixo aqui uma última nota enquanto amigo de Marcelo Rebelo de Sousa: a honorabilidade de Marcelo não pode ser colocada em causa e as desconfianças são uma injustiça gritante; espero que o Presidente da República esclareça rapidamente os verdadeiros motivos da sua decisão como prova da sua independência. Nunca é tarde demais para contar a verdade – e é sempre cedo o suficiente para impedir os efeitos nefastos de uma mentira. Caso contrário, utilizando expressões que lhe são muito queridas, Marcelo dará um pontapé na nuca monumental à credibilidade da democracia portuguesa, que não lembraria ao careca.
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Escreve à terça-feira