Depoimentos ao i de Nádia Piazza, mãe de uma das vítimas
“17 de junho de 2017 fez da vida de muitos pó. E da vida dos que sobreviveram, suspensão e anseio por Justiça. 17 de junho de 2017 ficará marcado na memória como o dia em que foi revelado que o Estado, os seus responsáveis e agentes não garantiram o mínimo de segurança das populações contra uma catástrofe. Que há pontos negros no mapa de Portugal, onde a vista do Estado não alcança. No dia 17 de junho de 2017, mais de meia centena de vidas foram sacrificadas no espaço de apenas uma hora, consumidas pelo grande incêndio de Pedrógão Grande, totalmente abandonadas à sua sorte. A lição? Somos um país de papel, onde planos e leis são fumo de uma democracia moribunda. De responsáveis e chefes com competências também de papel, que se esfumam ao menor teste de rigor. O que esperar da Justiça nesse país de faz de conta para muitos? Que se faça história…”
A morte de 65 pessoas a 17 de junho de 2017 vítimas dos incêndios de Pedrógão Grande trouxe à luz do dia as fragilidades de um Estado incapaz de proteger os seus cidadãos. Após a tragédia, exigiram-se responsabilidades e o governo pediu um parecer à equipa de especialistas liderada por Domingos Xavier Viegas – professor catedrático de Engenharia Mecânica da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra e um estudioso com cartas dadas a nível internacional. O relatório foi entregue no Ministério da Administração Interna a 15 de outubro desse ano, quatro meses depois do incêndio de Pedrógão Grande. Mas, logo nesse dia, o governo preferiu pôr em surdina os gritos das vítimas e a raiva dos sobreviventes proibindo a divulgação do capítulo VI onde os cientistas narram de forma crua e cinematográfica a forma como as vítimas, no espaço de uma hora, foram engolidas pelo fogo sem que as socorressem. A acusação do Ministério Público está praticamente concluída e que o relatório é uma das peças fundamentais do despacho. Durante as próximas edições, o i, com a colaboração de Xavier Viegas, traz a público, todo o capítulo censurado. Hoje contamos a história da família Lopes da Costa, que estava reunida a jantar, em Várzeas, e que perdeu nove pessoas.
“Este grupo era constituído por nove pessoas com laços familiares entre si, que se encontravam na casa de Fausto Costa, em Várzeas. O grupo era constituído por Fausto Dias Lopes da Costa (74), a sua esposa Lucília da Conceição Simões (72), Miguel dos Santos Lopes da Costa (42), filho de Fausto Costa, Fernando Rui Mendes da Silva (47), filho de Lucília Simões, Ana Mafalda Pereira da Silva Correia Lacerda (41), mulher de Miguel Costa, Ana Maria Correia Fernandes Boléu Tomé (31), mulher de Fernando Silva, António Lacerda Lopes da Costa (7) e Joaquim Lacerda Lopes da Costa (4), filhos de Miguel Costa e de Ana Lacerda e Luís Fernando Benedetti Piazza Mendes Silva (5), filho de Fernando Silva.
Pouco antes das 20 horas, o grupo preparava-se para jantar, quando, perante a aproximação do incêndio, terão decidido fugir, em quatro carros, com a seguinte distribuição: Rover 414 – Fausto Costa (condutor); Peugeot 207 – Fernando Silva (condutor), Ana Tomé e Luís Silva; Mercedes Benz C220 – Miguel Costa (condutor), Ana Lacerda, António Costa e Joaquim Costa; Skoda Fabia – Lucília Simões (condutor).
Faz-se notar que a casa em que se encontravam, pertencente Fausto Costa, era uma moradia, de construção recente, em pedra, com vários pisos e uma área envolvente, empedrada, com muito boas condições de segurança, não apenas para as pessoas como para as viaturas. Se tomaram a decisão de sair de casa, tê-lo-ão feito por motivos imperiosos, como terá sido possivelmente a falta de eletricidade e água e o aspeto assustador do incêndio.
As quatro viaturas terão saído de Várzeas com pouca distância entre si, tendo sido vistas por vários vizinhos. Seguiram por Barraca da Boavista, ao entrarem na EN236-1, viraram em direção a Figueiró dos Vinhos. Ao verem um aglomerado de carros nesse troço de estrada, antes do cruzamento, terão feito inversão de marcha, voltando em direção a Castanheira de Pera. Esta manobra terá sido feita pelos quatro carros, antes do nó do IC8 e mesmo antes do cruzamento para Nodeirinho (no sentido de Castanheira de Pera para Figueiró dos Vinhos). Pelas dificuldades que a condução no meio do fumo envolvia, pouco depois de ter feito a inversão de marcha, a Lucília Simões deixou o seu carro à beira da estrada, no lado direito, em direção a Castanheira de Pera e passou para o Peugeot, conduzido pelo filho. Mais adiante, pelas mesmas razões e para poder ajudar o pai na condução, o Miguel Costa estacionou o seu carro na esquina da estrada 236-1 em direção a Barraca da Boavista e todos os ocupantes deste carro, incluindo as duas crianças, passaram para o Rover, tendo o Miguel passado a conduzir o carro do pai.
Nesta altura o grupo de nove pessoas passou a estar assim distribuído pelos dois carros: Rover 414 – Miguel Costa (condutor), Fausto Costa, Ana Lacerda, António Costa, Joaquim Costa; Peugeot 207 – Fernando Silva (condutor), Ana Tomé, Luís Silva, Lucília Simões.
Logo que entraram no troço do acidente, os dois veículos terão sido envolvidos na nuvem de fumo e nas línguas de fogo, descritas por todos os sobreviventes que passaram então naquele local.
Apesar das manobras de inversão de marcha e das paragens, como terão sido dos primeiros veículos a entrar no troço, de entre os que ali permaneceram, terão chegado ainda com boa visibilidade e não se devem ter envolvido em colisões com outros veículos. Desconhecemos em detalhe se fizeram manobras de ida e volta, como sucedeu com outros condutores, mas podemos afirmar que em determinada altura os dois veículos conduzidos pelo Miguel e pelo Fernando ficaram orientados em direção a Castanheira de Pera e sem outros carros a impedir a estrada.
O Rover conduzido pelo Miguel Costa iria possivelmente na dianteira e foi a viatura que se deslocou mais no troço do acidente. Deveria estar a deslocar-se com alguma velocidade, quando terá sido apanhado pela chegada do fumo e do fogo, vindo com grande intensidade, do desfiladeiro ao lado direito da estrada. Com a perda de visibilidade, repentina, embateu no rail do lado direito, desviando-se para a faixa de rodagem contrária. O carro ficou parado fora da estrada, na berma do lado esquerdo, a cerca de 320 metros da linha de referência. A deformação do rail no lado direito, a 305 metros da linha de referência, é indicativa de que o carro se deslocava a uma velocidade não muito baixa. Os cinco ocupantes do carro não conseguiram sair da viatura, tendo sido colhidos pelo fumo e pelo fogo.
O Peugeot conduzido por Fernando Silva, que deveria vir um pouco atrás do Rover, terá sido surpreendido pelo mesmo processo de propagação do fogo. Impossibilitado de prosseguir, devido ao fumo e ao calor, o condutor terá parado a viatura onde se encontrava, possivelmente ponderando se voltaria para trás novamente. Não existem sinais de que os ocupantes tenham tentado sair da viatura.
O carro Skoda de Lucília Simões, que fora abandonado na EN236-1 próximo do cruzamento para Nodeirinho, foi destruído pelo fogo, ao passo que o Mercedes nada sofreu, apesar de ter ficado estacionado muito perto da zona da estrada onde ocorreu a propagação mais intensa e onde pereceu o maior número de pessoas.”