Roberto Arlt. O corpo contra a literatura parda

Roberto Arlt. O corpo contra a literatura parda


“Escritor Fracassado e Outros Contos” (ed. Livraria Snob) é o segundo livro que nos chega de Roberto Arlt e prova que o conto ainda pode ser um campo privilegiado para a “iluminação profana” do desconhecido


Numa das entrevistas que cede a Ramin Jahanbegloo, George Steiner confessa que muitas vezes sentiu carnalmente o sabor de um pensamento, o gosto de uma ideia que se infiltra na pele e conquista o corpo. Neste seguimento, conta que certo dia, na estação de Frankfurt, dez minutos antes de o comboio partir, viu num quiosque que vendia livros um pequeno volume de capa branca. Não conseguindo decifrar o nome do autor abriu o livro e, aleatoriamente, leu: “A língua a norte do futuro”, perdendo assim o comboio no seu primeiro encontro com Paul Celan.

Este domínio delirante (o tal “ter inferno dentro”) é mais do que queremos exigir à literatura aqui e agora ou, vendo a situação do outro lado da gare, cancelaram todos os comboios da nossa vida e já nada há a perder? Questões desta natureza ficam, quase sempre, irremediavelmente sem resposta, mas há que chamar à mesa os escritores que ainda nos fazem chegar o eco das interrogações.

Roberto Arlt (1900-1942), argentino nascido em Buenos Aires, no modesto bairro de Flores, é dessa laia. Inventor falhado, frequentador das ruas caóticas repletas de prostitutas e rufias de todos os géneros, é um dos responsáveis (ou mesmo o responsável) por trazer ao salão das letras argentinas a histeria, que mais não é que a exuberância de se ter muito a dizer enquanto se vislumbra no fundo do grito essa possibilidade de os homens viverem dentro da língua escrita, acabando por manchar o papel perplexo pelo trabalho da estranheza.

Entendamo-nos: para quem, como o autor deste texto, está cansado dos bordados poéticos, das boas vontades prosaicas, onde tudo é colorido pelos melhores processos com tecnologia de ponta (tema arltiano), e espera incansavelmente que entre pela porta das letras gente que ande de costas, cheia de ideias que só podem ser ditas aos berros, este livro de contos é uma boia que, não nos livrando desta ondulação sonolenta, nos acolhe por umas horas.

“Escritor Fracassado e Outros Contos” (título alternativo a “O Corcundinha e Outros Contos”, caso esta edição seguisse a original) é um bestiário perverso onde os tiques e as manias de Arlt (que o leitor português pode ter vislumbrado em “Os Sete Loucos”) estão ao serviço de todo o tipo de enredos e personagens mesquinhas. Apesar de aparentemente mais sóbrio (com todos os problemas que o adjetivo aqui acarrete) do que no romance referido, este livro é de uma ambição desmesurada, apesar de nunca se notar qualquer intenção prévia à escrita. Mas mais relevante do que falar dos enredos dos contos (crimes, efabulações morais, histórias fantásticas, loucos, tuberculosos arrependidos, o problema da escrita) será evidenciar algumas marcas autorais de Arlt evidentes no livro.

“Qualquer professora da escola primária pode corrigir uma página de Arlt, mas não seria capaz de escrevê-la” (Ricardo Piglia). E com isto em mente sublinhamos na página aberta: “E assim, tal como diante do vazio não me consigo subtrair ao terror de me imaginar a cair no ar com o estômago contraído na asfixia do desmoronamento (…)”. Depois paramos para respirar e sondar outras particularidades que não se centrem na pontuação ou falta dela.

O corpo usado como intensificador frásico: “Era inútil prometer-lhe uma tareia ou fazer-lhe sair a corcunda pelo peito à pancada.” O melodrama: “Por outro lado, se fosse necessário apurar os meus atos, a peneira a empregar deveria chamar-se Sofrimento. Sou um homem que padeceu muito. Não vou negar que tais padecimentos tiveram origem no meu excesso de sensibilidade, tão aguda que, quando me encontrava na presença de alguém, acreditava perceber até que matiz de cor tinham os seus pensamentos”; “Estou triste há tanto tempo que compreendo que, mesmo que cegasse de chorar a minha desventura, a minha desventura não perderia nem dois gramas. Seriam necessários anos, outra vida, para chorar a minha dilacerada existência”. A violência do diálogo: “- Não sei porque me parece que o senhor é dessa laia com que se fabricam excelentes cornudos”; “Que mais indemnização queres, além do beijo que ela, santamente, te dará, insensível à tua cara, que é o mapa da indecência!” A cidade: “Parecia que a cidade tinha sido corrida por um exército de espetros”; “…letreiros luminosos chamejando permanentemente nas queimaduras da cidade capitalista com as suas estruturas de castelos de contos de fadas”. As metáforas sensoriais: “o visado examinou-me bruscamente, com o ódio e a curiosidade do homem em festa que descobre um malfeitor em sua casa”. As comparações rocambolescas: “- Sou melhor que o pão francês e mais arbitrário que uma grávida de cinco meses”. Vocábulos das ciências e tecnologias (que podiam facilmente ser substituídos por termos limados): “esbeltos paralelepípedos”, “linfas de petróleo”, “relevos cuboides”, “maçarico oxídrico” ou “esquadrias de gases fosforescentes”. Reparam no trabalho da alegria na encruzilhada do bom gosto?

Nesta escrita impura e excessiva não há filtro nem preocupação que várias vozes se cruzem, e é essa gente fictícia, que pensa como Dostoievski e fala como proxeneta, que leva as letras de um país às cordas e mostra, com um cardápio de novidades vocabulares e idiomáticas, como se pode escrever um pouco mais junto da pele e um pouco mais longe do dicionário (o Borges, no outro lado da linha), e nesta lógica de tudo poder interagir. E, olhando de soslaio para o livro em cima da mesa, puxo o Vergílio Ferreira, sempre meio certeiro e meio entediado, que diz: “Há duas formas de reagir ao desastre do nosso tempo. Uma é denunciá-lo e sofrer com isso. Outra é colaborar e levá-lo às últimas consequências.” E isto por me parecer que Arlt aceitou os dois caminhos.

Piglia (na condição de quem pensou muito sobre essa tríade maravilhosa: Arlt, Macedonio Fernández e Witold Gombrowicz) conta que alguém que quis denegrir Arlt disse que ele falava lunfardo com sotaque estrangeiro. Concluiu, e bem, que quem emite esse juízo de valor deverá ser o mesmo tipo de gente que levanta a sobrancelha ao espanhol Gombrowicz, não percebendo que o “efeito da língua exilada”, chamemos-lhe assim, é das maiores armas da literatura do séc. xx. Frases como “é um grande escritor, apesar do estilo” desaparecem se a conversa for séria, porque o estilo é o autor.

E porque isto de nos sentirmos vivos falando de alguns mortos pega-se, uma última passagem de “Formas Breves”, de Ricardo Piglia: “Uma tarde Juan C. Martini Real mostrou-me uma série de fotos do velório de Roberto Arlt. A mais impressionante era uma tirada do caixão pendurado no ar por cabos e suspenso sobre a cidade. Tinham montado o caixão no quarto dele, mas tiveram de retirá-lo pela janela com aparelhos e roldanas porque Arlt era grande demais para passar pelo corredor. Aquele caixão suspenso sobre Buenos Aires é uma boa imagem do lugar de Arlt na literatura argentina. (…) O maior risco que a sua obra hoje corre é o da canonização. Até agora, o seu estilo resguardou-o de ir parar ao museu: é difícil neutralizar aquela escrita, ela opõe-se frontalmente à norma de hipercorreção que define o estilo médio da nossa literatura. (…) As narrativas de Arlt (…) confirmam que ele buscou sempre a narração nas formas duras do melodrama e nos usos populares da cultura (os livros de divulgação científica, os manuais de sexologia, as interpretações esotéricas da Bíblia, os relatos de viagens a países exóticos, as velhas tradições narrativas orientais, os casos da crónica policial). O fascínio da narrativa passa pelo cinema de Hollywood e pelo jornalismo sensacionalista. A cultura de massas apropria-se dos acontecimentos e submete-os à lógica do estereótipo e do escândalo. Arlt transforma esse espetáculo na matéria dos seus textos. (…) Arlt é o mais contemporâneo dos nossos escritores. O seu cadáver continua sobre a cidade. As roldanas e as cordas que o sustentam fazem parte das máquinas e das estranhas invenções que movem a sua ficção rumo ao futuro.”

Do que estamos a falar é de livros que nos acordem o corpo. É hoje muito comum alguém referir-se a um livro como sendo “um murro no estômago” ou “avassalador”, mas muito poucos, mesmo os que são edifícios de complexa montagem, criam um desalinho, um “estremeção”, como diria o Manuel Hermínio Monteiro. Esta é uma possibilidade de leitura: sei que o livro X tem em si potência se cria alguma reação no meu corpo: se dou uma gargalhada, se estou embaraçado por estar a gostar de certa passagem, se tenho frio numa esplanada abrasadora (aparentemente, e digo de memória, esta última aconteceu a Eça de Queiroz numa das suas leituras em Paris). O que se pede é que não esqueçamos que a literatura pode ser um assunto sujo, quase patológico, e que o leitor empenhado, o “prosélito fanático que não descansa”, pode e deve comportar–se como um “portador de vírus filtrantes que chegam para contaminar um vasto público”, como nos ensina Julien Gracq.

Diremos ainda que, no que toca ao conto argentino traduzido entre nós (Lázaro Covadlo, Fernando Sorrentino, Samantha Scweblin, o Virgilio Piñera exilado), apenas vemos semelhanças com um conto do livro: “A Lua Vermelha”. Diga-se ainda que “O Corcundinha”, que abre o livro, e “Escritor Fracassado” serão dos melhores contos que poderão ler nestes dias. O segundo, talvez o mais fiel que lerão em anos no que toca ao baile de horrores comum à cabeça do escritor porvir quando a sociedade se encosta a ele esperando o desastre. “Ester Primavera” é o florir perfeito do remorso e “Noite Terrível” o maior lembrete a quem estiver noivo. No entanto, há desequilíbrios internos e, por vezes, sentimos que um tijolo não é do mesmo tamanho do outro. Era expetável.

 O livro está para sair, editado pela Livraria Snob, numa tradução que adivinhamos exigente ou inventiva de Miguel Filipe Mochila, e não faltarão críticos que, na porta estreitíssima da sua arte, deem pistas aos que se inquietarem por não saberem se riem ou se choram. Até ao surgimento de sobressalto semelhante que valha a pena registar, estejam atentos aos quiosques da vossa terra.