Arturo Pérez-Reverte. “Os europeus acreditam que deixaram para trás o horror, mas isto não é mais do que uma trégua”

Arturo Pérez-Reverte. “Os europeus acreditam que deixaram para trás o horror, mas isto não é mais do que uma trégua”


O escritor esteve há dias em Lisboa para o lançamento em Portugal do segundo livro da trilogia Falcó, “Eva”


Tinha 14 anos quando veio pela primeira vez a Lisboa, depois de ter ganho um concurso de escrita na escola com uma redação em que comparava livros a portas. Tirou uma foto com a paixoneta da altura no Castelo de S. Jorge e diz que caiu de amores por esta “outra casa”, embora diga que essa Lisboa já não existe depois de um tsunami chamado turismo. Hoje, aos 67, Arturo Pérez-Reverte, o escritor mais vendido de Espanha – “um dos mais vendidos”, corrige-nos -, já perdeu a conta à quantidade de vezes que atravessou a fronteira que gostava que não existisse: “Filipe IV perdeu uma ocasião enorme.” Veio novamente a Lisboa, a capital “natural” do iberismo que defende, para a apresentação do segundo livro da trilogia Falcó, “Eva” (ed. Asa), lançado agora por cá. Ficou novamente no Hotel Avenida Palace, um dos palcos da história, furtou-se como de costume às perguntas sobre Espanha e, apesar de os meios de comunicação espanhóis lhe chamarem o “Terminator” do Twitter, provou que não é um dependente das redes sociais – que o “divertem” – quando sacou do bolso o telemóvel: um velhinho Nokia. Internet só em casa, no primeiro andar e fora do horário de trabalho. Arturo Pérez-Reverte é conhecido pelo seu pessimismo – realismo, prefere -, e nisto da escrita também abomina floreados e romantismos: “Ninguém escreve um romance por impulso.” 

 

É o tipo de pessoa que começa a escrever logo de manhã ou prefere à noite?

Isto é um trabalho. Sou um escritor profissional, isto não é uma afición ou um impulso artístico. Isto, para mim, é como ir trabalhar para uma redação ou um escritório: levanto-me de manhã, pelas 8h00, tomo banho e por volta das 9h00 estou a trabalhar. Trabalho todos os dias, das 9h00 às 15h00, mais ou menos. Normalmente, da parte da tarde corrijo o que escrevi de manhã. É um trabalho sistemático.

Percebeu que precisava deste método quando começou a escrever?

No princípio era diferente porque ainda era repórter, viajava muito. Morava em Madrid e quando voltava ao fim de semana escrevia todo o dia. Depois, quando me profissionalizei, estabeleci os meus horários de trabalho como toda a gente.

Não tem nada a ver com aquela ideia romântica do escritor, sozinho pela noite fora, a fumar e a beber.

Essa figura é falsa. E há que evitar essa imagem, é muito rara. Alguns serão assim, estou a pensar no Bukowski, mas é muito raro. O escritor profissional aborda a escrita como um trabalho. 

E, pelo que conta, com disciplina.

Sim. Trabalho na minha biblioteca, em silêncio, no computador, rodeado de livros. Durante o meu horário de trabalho não uso telemóvel e inclusivamente o meu computador não está conectado à internet. Tenho dois computadores: um no piso de cima, outro no piso de baixo, e esse de baixo é só para trabalhar, não para receber nenhuma mensagem, nada. E não ouço música: somente os livros ao meu redor e um pequeno jardim visto da janela, onde vou por vezes corrigir alguma coisa. 

E faz muitas pausas?

Algumas, para café, para uma aspirina. Mas dez ou 15 minutos, é isso.

A escritora norte-americana Joan Didion relata uma experiência muito semelhante.

Quase todos os escritores profissionais que conheço trabalham desta forma. Um romance não se escreve por impulso. Talvez um poeta possa escrever um poema assim, mas um livro que significa dois anos de trabalho, e a cada dia se vão somando páginas e páginas, tem de ser feito de uma forma muito sistemática. Alguns escritores meus amigos, como o Javier Marías, preferem escrever de noite. Levanta-se muito tarde, lá para o meio–dia, come, passeia e começa ao fim da tarde, até às quatro da manhã. Mas seja à hora que seja, normalmente, o escritor profissional tem sempre um esquema de trabalho sistemático e organizado. 

Esteve cá há menos de um ano para lançar o primeiro livro da coleção Falcó. Pelo que percebo da sua agenda, tem novamente uma série de jornalistas para o entrevistar. Isto ainda o surpreende?

Bem, já escrevo livros há 30 anos e estou acostumado a isto. Não é que me surpreenda, mas há uma coisa que, para mim, é interessante: fui jornalista muitos anos, 21. E ainda nunca me consigo ver totalmente deste lado da conversa. Vejo-me mais vezes aí do que aqui. Nunca consigo ver-me como o escritor que está a falar com um jornalista, psicologicamente vejo-me mais como vocês. Não falo como um romancista, mas como um jornalista para um jornalista. E por isso vejo isto como uma conversa e acabo por fazer confidências… Não sou um escritor formal, não consigo sê-lo. Fui demasiado tempo jornalista para me esquecer. Digo sempre que é como se tivesse sido puta ou sacerdote: isso marca-te para toda a vida.

Então gosta mais de fazer perguntas do que de dar respostas.

Às vezes acontecem-me coisas… Por exemplo, na televisão, dizer, “olha que te está a acabar a bateria da câmara”, ou discutir as objetivas com o fotógrafo que me está a tirar o retrato. 

E em 30 anos há muita repetição, sente que está sempre a responder ao mesmo?

Isso é curioso. Claro que há perguntas que são as mesmas, mas não são repetidas, são feitas de maneira diferente. Cada pessoa é um mundo diferente e os jornalistas têm inquietudes diferentes. O que, sim, me dou conta é se leram os meus livros ou não.

Vê este momento de promoção como uma parte do seu trabalho como escritor?

Sim. Agora estou a trabalhar. Tenho amigos romancistas que odeiam as entrevistas, que acham terrível ter de falar. Mas pagam-nos por este nosso trabalho.O trabalho não é só escrever, mas é também acompanhar o livro. Hoje em dia há muitos livros, muitas novidades editoriais, muito movimento. E por isso é necessário acompanhar o livro durante um tempo para lhe dar oportunidade de se conhecer. Um livro é uma cadeia, é um autor, um editor, um livreiro que o vende e o leitor que o lê. Para fazer o seu trabalho, o escritor deve acompanhar o livro em todas as fases até chegar ao leitor. E depois também reunir-se com o leitor e acompanhar as redes sociais. Há que ajudar, e não ter uma postura de dizer “o livro está aí, tomem lá a obra de arte” e pronto. Como digo, isto é um trabalho e há que ser o mais eficaz possível.

Essa cadeia de que fala mudou muito desde que começou a escrever até agora, até – ou principalmente – por causa das redes sociais?

Sim. E as redes sociais complicaram as coisas. As redes sociais têm uma coisa boa e uma coisa má para um romancista. Fazem com que sejas mais conhecido, com que tenham mais informação sobre ti. Antes lia Anthony Burgess, um inglês de que gostava. Agora fazes assim [simula um gesto de scroll down] e tens toda a vida dele, se é um pederasta, se viajou ou não, se é homossexual, se é de direita ou esquerda. E isso é mau porque, às vezes, a biografia do autor perturba a leitura do livro. 

Sente isso em relação a si? Em algumas entrevistas que li queixa-se de que os leitores procuram características suas nas personagens. 

Sim. Digamos que a leitura está contaminada com o conhecimento que têm do autor. E isso às vezes acontece-me, sim. Mas as redes sociais de que estávamos a falar têm uma parte positiva: chegamos a gente que não chegaríamos antes. Tu pões um tweet sobre um romance, outro amigo partilha e por aí fora. Digamos que compensa. Mas há depois o tal lado de que as redes sociais projetam o próprio autor no livro.

Falou aí do Twitter, onde é muito ativo. Os meios de comunicação espanhóis apelidaram-no de “Terminator” do Twitter. O que pensa desta alcunha?

(ri-se) Isso é uma brincadeira que não tem nada a ver com a literatura, mas com outra atividade. E é muito divertido. Não sou um… Vê o meu telefone [tira do bolso um antigo Nokia]. Não estou sempre na internet – aliás, só uso quando estou em casa. E acho muito divertido entrar no Twitter, mas não sou um utilizador ativo das redes sociais, embora me divirtam. É uma forma de mandar mensagens rápidas, e depois tenho polémicas com um ministro, com este e aquele político. É divertido, mas é anedótico, não tem nada a ver com isto.

Vamos então falar “disto”. “Eva” começa em Lisboa, Falcó fica inclusivamente neste hotel onde estamos a falar, que foi um palco intenso de espionagem. Conhece pessoalmente todos os locais de que fala?

Sim, e aí há outra coisa importante: um livro é um trabalho, mas também é um prazer para mim. E a parte mais divertida do livro não é escrevê-lo, é prepará–lo. Quando escrevo é um trabalho, digamos, mecânico, frio, sério, concreto. Mas quando estou a preparar um livro, tudo é possível. A imaginação viaja pelos sítios, tomo notas, tiro fotografias, leio sobre os lugares. Para esse capítulo vim a Lisboa outra vez e estive cá a ler livros sobre a época de Salazar, sobre o Portugal dos espiões, sobre este hotel e como era na época, como era a cidade… Li revistas e jornais da época. É um trabalho de documentação muito divertido, agradável e que me faz passar muito bem. 

É um grande crítico do turismo de massas. Não teme que as escolhas dos sítios de que fala nos seus livros possam enchê–los ainda mais de turistas? Por exemplo, o Martinho da Arcada – um sítio de que também fala em “Eva” -, onde ia frequentemente e onde agora quase nunca arranja mesa.

Não posso evitar essas coisas. É igual quando vou a lugares onde Hemingway ou Borges foram, ou Eça de Queirós e Pessoa iam. Há pessoas que depois vão aos sítios sobre os quais escrevo, é inevitável, não é minha responsabilidade. Mas disseste algo importante que é verdade e que eu penso que é um dos principais problemas para a cultura hoje em dia, que é o turismo de massas. 

E qual será a solução para isso?

Não há solução. Venho a Lisboa desde 1965, tinha 14 anos. Lembro-me de uma Lisboa elegante, tranquila, amável, silenciosa, melancólica, belíssima. Agora tornou-se moda e, como o turismo está mais barato, toda a gente vem a Lisboa. E a cidade – e todas as que estão assim, Barcelona e Madrid estão iguais – reconverteu-se para este turismo. As cidades perderam as suas características e estão a tornar-se iguais. A minha tragédia é que a Lisboa que eu amo tenha desaparecido, esta é uma Lisboa diferente para esse turismo… E para estas pessoas que não sabem quem foi Pessoa ou quem foi Saramago e nem querem saber. O importante é tirar uma foto aqui e ali e está visto, e é certo que nem perguntam quem é a pessoa da estátua ou o que aconteceu ali. Mas pronto, é o que há. 

Pode falar um pouco dessa primeira vinda a Lisboa?

Tinha 14 anos, ganhei um prémio de redação na escola com um texto sobre livros que abriam portas. O prémio para os miúdos que ganharam, dois rapazes e duas raparigas, era vir a Portugal durante 15 dias. Estive em Coimbra, Setúbal, Nazaré e Lisboa, claro. Estava apaixonado pela rapariga que vinha comigo, que era da minha idade. Tenho uma foto com ela no Castelo de São Jorge.

Ainda tem essa foto?

Tenho, tenho. Digamos que foi a primeira viagem juvenil. Depois fui muito a Sintra, gostava muito, e no meu romance “O Clube Dumas” há uma parte importante que se passa em Sintra. Venho muito cá, gosto muito de Portugal. E sou um iberista, como era Saramago, que era muito meu amigo. Creio que é um erro que Portugal e Espanha vivam separados, devia haver uma federação, algum sistema.

É adepto da jangada de pedra, então.

Sim, creio que sim! Somos diferentes [portugueses e espanhóis] dos restantes europeus, e creio que Filipe iv perdeu uma ocasião enorme, depois daqueles 60 anos em que Portugal foi espanhol. Devia ter tornado Lisboa a capital do império, ligada ao Atlântico e à Europa. Gosto de estar aqui porque me sinto em casa.

E a capital seria Lisboa, não Madrid?

Lisboa! Madrid é um horror, um lugar horroroso. Lisboa, sim, seria uma boa capital, virada ao mar. Creio que foi um erro enorme político de Filipe iv. Mas acontece-me sempre isto quando venho cá, sinto-me em casa: a comida, as pessoas, a maneira de ser…

Quando começou a pensar desta forma, que tinha sido um erro?

Como digo, sempre vim muito a Portugal, em férias e tudo, e lia muito Eça de Queirós. Digo sempre que “O Primo Basílio” e “La Regenta” (de Clarín), se fossem ingleses ou franceses, estariam entre as obras-primas da literatura universal. Mas como eram portuguesas e espanholas, estão aí como secundárias. 

Pensa que um dia vão ser tidas como universais?

Não creio. “O Primo Basílio”, li com 16 ou 17 anos e fascinou-me. Para mim, o iberismo não é uma utopia, é algo que lamento que não tenha acontecido. Eu e Saramago falávamos muito disso, os dois. 

Em Espanha?

Em Espanha não sabem o que é Portugal. A ignorância que em Espanha existe sobre Portugal é terrível. Espanha vira–se completamente de costas para Portugal.

É o escritor mais vendido de Espanha…

Há outros que também vendem muito, mas já faço isto há 30 anos. É verdade que os meus livros se vendem muito bem, mas digamos que sou o mais decano desses que vendem muitos livros.

Queria saber era se sentia alguma pressão quando está a escrever para continuar a vender bem ou se não quer saber disso para nada.

Não. Tenho livros muito diferentes uns dos outros, romances históricos, outros modernos, e todos funcionam. Claro que uns mais, outros menos, mas estou satisfeito com todos os livros. Não há nenhum romance meu que tenha sido um fracasso – e fico contente com isso. 

Li que a maioria dos seus leitores são mulheres.

Não: a maioria dos leitores são mulheres, não dos meus leitores. As mulheres leem mais do que os homens, muito mais. A mulher tem uma inteligência emocional muito mais intensa e uma maior curiosidade pelo mundo. E uma maior necessidade de ler. Durante muitíssimos séculos, as mulheres estiveram absolutamente separadas dos territórios chamados masculinos; por isso, quando a mulher tem portas abertas, lança-se por elas com entusiasmo. Historicamente, as mulheres necessitam de ajustar uma conta pendente que têm com os homens. A leitura é uma forma de compensar tudo o que a vida lhes negou durante séculos.

No sentido de ser uma forma de evasão? Refiro-me às alturas da história em que até o acesso ao ensino superior lhes era negado. 

Talvez para algumas. Mas não acho que fosse evasão, era compensação. Ainda para mais, há uma coisa muito interessante: sobre o homem, está tudo escrito. Todos os romances falam de homens, os homens têm sido estudados literariamente há mil anos. A mulher não, e hoje há uma mulher surgida da modernidade que não existia antes. Uma mulher que já não é a dona de casa com os filhos, é uma tipa que luta, que trabalha, que mata, que morre, que abre o seu próprio caminho na vida. Essa mulher não deixou de ser a mulher tradicional, mas também é uma mulher moderna, e essa esquizofrenia, essa mistura de duas mulheres cria conflitos muito interessantes. Acredito que na narrativa do séc. xxi, os livros mais importantes, os filmes mais importantes terão mulheres como protagonistas, porque haverá conflitos novos nunca antes dados na literatura.

É mais fácil para si criar personagens masculinos ou femininos?

É igual. Tenho romances como “A Rainha do Sul”, “A Tábua de Flandres” (ed. Asa) ou “La Carta Esferica” (ed. Punto de Lectura) em que as mulheres são protagonistas. E noutros livros, mesmo que não sejam protagonistas, as mulheres são muito importantes. Há muito tempo que tenho mulheres como personagens narrativos e não vejo que haja diferença. Tenho 67 anos, acho que já conheço as mulheres… uma coisa é ter 30, outra é ter 67!

Como constrói estas suas personagens femininas, memórias, falando com mulheres?

Não, aplico o senso comum. E as minhas recordações. Tenho uma filha que me ajudou muito a entender muitas coisas. Compreendi um montão de coisas a vê–la crescer e formar-se como mulher. Hoje tem 33 anos e é arqueóloga. Mas observar a minha filha e as recordações das mulheres da minha vida é o que uso para construir as personagens.

Este seu Falcó não é uma personagem para se gostar, é amoral, é duro. Tem leitores que lhe dizem que gostam mesmo de Falcó?

Muitos leitores. Penso que gostam sobretudo porque estamos num tempo de heróis politicamente corretos. Agora, as personagens dos filmes e dos livros são todas feministas, ecologistas, defensoras dos animais e respeitadoras das minorias étnicas. E os detetives dos livros policiais são todos cultos, leem todos Proust. Jamais vi na minha vida um polícia que leia Proust. (risos) Então nesse ambiente literário de ficção tão positivo, tão correto, e com todos a serem democratas e pró-República, anti-Salazar, para mim era necessário criar algo diferente. Queria romper esse esquema todo, criar um personagem que fosse todo ao contrário e politicamente incorreto: um assassino…

E cabrão.

Muito cabrão! Cruel, que usa as mulheres, machista, até tendo em conta que estamos nos anos 30.

Mas todo bonito.

Sim, para compensar. E também é simpático. Digamos que os leitores começam a estar cansados de personagens politicamente corretos. 

Tem neste livro uma frase que me parece que é uma base para esta e muitas das suas personagens: “Na realidade, tanto te faz o êxito como o fracasso, que morras ou vivas, (…) o que na realidade te interessa é que haja sempre um sobrescrito para abrir.” 

Creio que há dois tipos de seres humanos: os que se ficam na segurança, no conforto, e os que o rasgam, seja intelectual ou fisicamente. Creio que há que rasgar-se, que o ser humano deve abrir–se à aventura. Correr o risco dos erros, do embate da morte e da vida. Todos os meus personagens são assim. E toda minha vida também estive em movimento, desde que era pequeno. Com 20 aos peguei na mochila, depois fui como repórter para a guerra, continuo a viajar. E digamos que Falcó beneficiou deste olhar.

Pensa que nesta Europa onde podemos andar por todo o lado, não temos as contingências que havia há umas décadas…

De momento. 

Queria perguntar-lhe se, apesar desta ausência de barreira que diz ser momentânea, se acha que as pessoas se sentem livres.

Creio que há um sentimento de falsa segurança. Os europeus acreditam que deixaram para trás a dor, o horror, a incerteza, mas isto não é mais do que uma trégua. Não é uma vitória. Isso sempre está por aí e volta ciclicamente. Uma guerra, um tsunami, um ataque terrorista. Creio que o grave problema do nosso tempo é que pensamos e educamos os nossos filhos para acreditarem que a vida está resolvida. Que o mundo é bom, que os lobos são amorosos como peluches, que a bondade triunfa, que o ser humano tem um bom fundo. E isso é mentira. O ser humano é um filho da puta muito perigoso, os lobos comem pessoas e são animais carniceiros, matamo-nos uns aos outros e o mundo é um lugar injusto e desagradável. Estamos a deixar os nossos filhos indefesos e, quando a realidade chega e as golpeia, as gerações mais novas não têm mecanismos de defesa. Não estão acostumadas a lutar por algo, a defender-se e a saber que o mundo é um lugar perigoso. Creio que estamos a fazer um mau favor às crianças e jovens. Falta realismo à educação. Falta História e realismo. E creio que isso vai produzir danos muito graves a curto-médio prazo. Estamos a deixá-los indefesos em relação aos lobos – e o mundo está cheio de lobos. 

É pessimista, mas diz que não vive amargurado com isso.

Sim, porque sou realista. As coisas são o que são, conheço-as, nada mais. 

Mas já em jovem via o mundo desta forma?

Não, fui muito educado para acreditar num mundo de amor, de humanidade, de cultura, todas essas coisas. E para crer que os polícias são bons, os sacerdotes também, que na vida há prémios para os bons e castigos para os maus, que com educação e diálogo tudo se consegue, que a violência é má, etc. Fui educado assim, mas depois vi um mundo real e que a vida não é isso. Ao longo da vida fui tendo uns reflexos infantis desta educação da juventude, mas a minha visão é diferente. Quando comecei a viajar e vi a guerra, a condição humana, tudo isso mudou.

Quais foram as primeiras cenas que o marcaram?

As primeiras guerras nos anos 70. Chipre, Líbano, Moçambique, Angola. Muitos mortos, violações, torturas. 

Quando quis ser jornalista queria ser repórter de guerra ou foi um acaso?

Não queria ser jornalista, queria viajar e ter aventuras. Queria a guerra como uma aventura. E ser jornalista era um pretexto para ir. Fui-me de casa para procurar a aventura depois de ter sido um grande leitor, li muitíssimo desde pequeno. E depois queria ver se a vida real era como nos livros. Queria encontrar na vida real o que lia nos livros: mulheres bonitas, perigo, valentia, bebedeiras, viagens, lutas em bares. 

E encontrou?

Sim, vivi isso. Tive uma juventude muito cheia. (risos)

Este seu Falcó também tem um passado semelhante. E é um personagem muito sofisticado – dá muita atenção a descrever as roupas, o relógio, o chapéu. Pesquisou o que se usava na década de 30?

Para lá da internet, li muitas revistas da época que às vezes compro em antiquários e depois tomei nota dos anúncios dos perfumes, restaurantes… Comprei também guias Michelin antigos, de viagens, e assim vou reconstruindo o ambiente. Não uso tudo o que encontro, só pequenas pinceladas. Neste hotel, por exemplo, escrevi uma cena passada na sala do pequeno-almoço, que está ali. Mas antes dessa cena estudei todo o hotel.

Há quase 100 anos, as pessoas eram mais sofisticadas, arranjavam-se mais?

Acho que sim. Os fatos, os coletes, os chapéus… pelo menos cuidavam mais da sua aparência. É uma característica que se perdeu. Hoje, a maioria das pessoas não cuida da sua aparência.

Gosta de se cuidar?

Bem, é o que se vê: normalmente uso casaco, por exemplo. Diria que cuido razoavelmente, não sou um dândi exagerado.

Já teve muitos escritos seus que se tornaram séries e filmes. Escreve a pensar no livro ou no ecrã?

Penso no livro. Sou um escritor muito visual, a minha literatura vive muito das situações e do ambiente dos lugares. E percebo que isso faça pensar em cinema. Mas quando escrevo não estou a pensar em nada disso, quero é que o leitor veja o que eu vejo.

O que pensa quando vê as histórias que saíram da sua cabeça na televisão ou num filme? Qual é o primeiro impacto?

Não são as minhas histórias. Uma vez, o Roman Polanski [que realizou “A Nona Porta” baseado no livro “O Clube Dumas” de Pérez-Reverte] pediu-me ajuda e eu disse que não o ajudava na história porque era a leitura dele para um filme dele sobre o meu livro e eu não podia estar implicado, porque a minha visão seria sempre outra. E não há problema nenhum. Também cada leitor faz a sua própria leitura, e um filme é uma leitura feita pelo realizador. Quando me compram os direitos, depois de me pagarem, façam o que quiserem. Se depois gosto do resultado, dou os parabéns; quando não gosto, calo-me.

Mas tem opinião sobre os atores escolhidos para dar vida às suas personagens?

Tenho, sim. O Johnny Depp, por exemplo, esteve muito bem em “A Nona Porta”, Viggo Mortensen foi um bom Alatriste, outros não tanto. Joaquim de Almeida, que é um ator estupendo, foi um ótimo mestre de esgrima, foi formidável. Claro que há filmes de que gosto mais do que outros, e outros de que não gosto nada. Por exemplo, “A Tábua de Flandres”, feito por um americano, o Jim McBride: o filme é muito mau mesmo, mas a atriz Kate Beckinsale, que depois se tornou muito famosa – e este foi o seu primeiro filme – , foi estupenda. Isto para dizer que mesmo nos filmes maus há coisas que me interessam e que estão bem.

Este livro passa-se durante a Guerra Civil Espanhola. Muitas vezes, quando lhe fazem perguntas sobre Espanha, responde que já disse tudo o que tem a dizer ou que já escreveu sobre o assunto, mas o que pensa da exumação do corpo de Franco?

Para mim é-me igual que o exumem, que enterrem, que o deixem lá, que façam empanadillas do corpo. Há 40 anos que Franco não é assunto meu, que não me interessa e que não tem nenhuma importância na minha vida nem profissional nem pessoal. É-me indiferente.

Acha que esta discussão é uma perda de tempo?

Sim. Tempo e dinheiro. Não vou perder o meu tempo com esse assunto. 

Já terminou o terceiro livro desta trilogia. Quando chega a Portugal?

Dentro de 15 dias é publicado em Espanha; em Portugal, para o ano. 

Serão apenas três “Falcós” ou prevê prolongar a coleção?

De momento, serão três. 

Tem saudades das personagens? 

Não. Escrevo o romance que me apetece, sou um escritor livre. A vantagem de estar há tanto tempo a publicar livros e de ter tantos leitores é que me aceitam como sou. Há alguns livros de que gostam mais, outros menos, mas continuam a seguir-me como autor. Assim como eu enquanto leitor: por exemplo, comprava todos os livros do Saramago, embora tenha gostado mais de uns do que de outros. 

Já tem outra personagem na cabeça?

(ri-se) Comecei a escrever um romance que não tem nada a ver com um período histórico. Vivo com um montão de histórias possíveis na cabeça. Por exemplo, estou a olhar para o teu sapato e, se calhar, posso pensar num romance sobre um sapato. Tudo é uma possibilidade. Às vezes estou sentado e ouço uma música, vejo a luz, uma palavra, uma mulher que passa, um amigo que diz algo, e vem uma ideia. E parto para esse mundo. Depois passo uns dias a pensar se é mesmo aquela história que quero escrever, faço umas leituras, calculo o que seria uma possível estrutura, e depois tomo a decisão de escrever ou não. Mas claro que tem de me apetecer também.

Dorme descansado com tantos mundos na cabeça?

Durmo muito bem e há dias em que me deito e sonho com o que vou escrever no dia seguinte. É uma sensação muito prazerosa. Sou um escritor feliz, não sofro a escrever. Quando ouço um escritor a dizer que escrever é um sofrimento, respondo que mude de profissão. Escrever para sofrer é ridículo. 

Não tem então a síndrome da folha em branco.

Nunca, jamais na minha vida senti isso. Há dias que custam mais, que são mais difíceis, mas acabar com uma folha em branco, jamais. 

Pensa escrever durante mais quanto tempo?

O que a vida me permitir.