Descentralização rima com autoflagelação


Podemos e devemos criticar o governo pela forma atabalhoada e pouco ambiciosa como geriu a lei-quadro para a descentralização. Mas temos de reconhecer que a lei vai no sentido certo


Isolados, corremos sem adversários pelo campo. Entramos na área com a bola controlada e a baliza escancarada. Na hora de faturar, rematamos para a estratosfera. Se a política nacional fosse um jogo de futebol, o relato era este. Somos um país de empatas. Chega a ser desesperante a forma como desperdiçamos a oportunidade de ser melhores. Amor à mediocridade e à autoflagelação ou simplesmente incapacidade? Espero que não estejamos condenados por nenhuma delas. A verdade é que o país continua a mandar para o lixo fatores que lhe podiam dar um futuro melhor.

A descentralização é o melhor exemplo desta idiossincrasia nacional.

Com a exceção da extrema-esquerda protototalitária, todos os decisores bem-intencionados a consideram uma boa reforma. A descentralização é boa porque responsabiliza os poderes públicos, porque dá mais liberdade e qualidade de serviço público aos cidadãos e porque é um princípio básico de racionalidade económica no reforço do Estado social. É, pedindo as palavras emprestadas a António Costa, a “pedra angular da reforma do Estado”.

Mas então como se explica o facto de ela ainda não ter sido feita?

Quando o PSD era governo, o PS não quis saber de fazer.

Quando o PS passou para o governo e o PSD para a oposição, houve acordo para fazer.

Mas quando houve acordo para fazer entre governo e oposição, quando houve apoio do Presidente da República e das autarquias, eis que surgem mais pretextos para que tudo fique na mesma.

Podemos criticar o governo, e devemos fazê-lo, pela forma atabalhoada e pouco ambiciosa como geriu a lei-quadro para a descentralização. Mas, em consciência, temos de reconhecer que, apesar de todas as suas falhas e omissões, esta é uma lei que vai no sentido certo. Sobretudo é uma lei que vai ao encontro das ambições manifestadas por muitos daqueles que agora hesitam, avançam e recuam, ao sabor da tática que melhor lhes serve.

Lamento dizê-lo, mas quando os meus colegas autarcas arranjam alvos de contestação em todo o lado e exploram todos os argumentos possíveis e imaginários na defesa da situação, não fazem mais do que mimetizar o PCP em larga escala. E esta é a melhor forma de matar a descentralização.

Cascais, câmara que lidero e que assumiu papel de vanguarda nesta matéria ao assinar, em 2015, com o anterior governo de Pedro Passos Coelho, o contrato inter-administrativo de delegação de competências, vai mais uma vez dar passos concretos no sentido de aprofundar a reforma.

Ontem, em sede de reunião de câmara, com os votos favoráveis de todas as forças políticas (com a exceção do PCP), aceitámos todas as competências sobre as quais o governo pediu pronúncia. Tanto quanto sabemos, somos a primeira autarquia do país a fazê-lo. E insisti, apesar de nada na lei o obrigar, em levar esta disposição aos órgãos autárquicos. É uma manifestação de vontade política.

Conhecemos os diplomas setoriais? Não. Conhecemos os envelopes financeiros? Não. Isso é argumento para não avançar? Não.

A descentralização é um processo orgânico que deve crescer naturalmente. Não pode, não deve ser um grande plano definido pelas entidades estatais. Se assim fosse, estaríamos a caminhar no sentido contrário ao da natureza subsidiária. Seria sinónimo de fé centralista – coisa que todos os crentes no municipalismo dispensam.

Acresce que o governo PS, tal como o do PSD antes dele, tem cumprido escrupulosamente os pressupostos dos acordos celebrados. O Estado sempre pode ser pessoa de bem e não há razões para desconfiar das intenções do governo.

A escolha das autarquias neste processo é muito simples. Podem ficar de fora, contribuindo para mais um adiamento sine die da descentralização que voltará a empatar o país e contentará particularmente o PCP. Ou podem entrar no processo, conhecendo as suas limitações, mas trabalhando para melhorar e aperfeiçoar a reforma que seja sinónimo de revolução municipalista, com efeitos positivos nos nossos territórios e nas populações que representamos.

Durante décadas, autarcas de todos os partidos pediram uma oportunidade para fazer a diferença. Essa oportunidade foi criada. Queremos ou não aproveitá-la, cientes de que é apenas um ponto de partida, e não um ponto de chegada?

A novela da descentralização tem sido esclarecedora.

O PS fez menos do que podia e não teve ambição.

O PSD demonstrou uma grande ingenuidade na ansiedade de fazer acordos com o PS.

Por andar a reboque dos acontecimentos, a Associação Nacional de Municípios Portugueses prova que não serve para nada.

É tempo de rematar à baliza. Com menos lamentos e mais vontade. Tão cedo não teremos outra oportunidade como esta.

 

Escreve à quarta-feira