Quando, em 1980, Mário-Henrique Leiria foi desta para melhor – diz-se que empurrado pela fome – há muito que tinha deixado indicações sobre o fim, parentes daquelas que Mário de Sá-Carneiro registou num dos “últimos poemas” que escreveu. Nada de solenidades e as coisas pouco afinadinhas, assim desejava o génio do surrealismo português. Tirara as medidas ao pátio, conhecia bem a comédia literária de Lisboa e, pelo sim, pelo não, achou que o melhor seria prevenir negros cerrados, gravatas pretas e discursos à beira do coval, desses que soam a oco, enfadam e até defuntos encavacam, nivelando tudo. E depois, havia que acautelar apropriações abusivas e até a possibilidade de vinganças finais sem contestação: “Para o enterro/ que terei um dia,/ quero que venham cores azuis … / … e nostalgia. […] Quero que soem bombos, fungagás,/ que hajam gaitas ocas e charangas/ tocadas por poetas surrealistas/ vestindo fatos anarquistas,/ com casacos que não tenham mangas.” Já no que toca aos seus papéis foi Leiria menos cuidadoso: não deixou inéditos prontos a publicar, enfiados num baú para edição póstuma. E se os havia! O primeiro volume das obras completas do autor, publicado em Março do ano passado com o selo da E-Primatur, “Ficcões”, veio revelar que havia muito mais Mário Henrique-Leiria para lá dos “Contos do Gin-Tonic”. Entre os seus papéis, dispersos, muito preparado ficou por publicar também no domínio da poesia, que começou a escrever muito antes de se evidenciar na literatura portuguesa como autor de best-seller.
Coube de novo a Tania Martuscelli organizar este segundo volume, que inclui um esclarecedor prefácio e preciosas notas. Sem surpresa: a investigadora brasileira que dirige o Departamento de Estudos Hispânicos e Portugueses da Universidade do Colorado/Boulder, nos Estados Unidos, e estuda há décadas o espólio do autor surrealista, é a maior especialista da sua obra. Assim, apresenta agora o poeta para surpresa de muitos assíduos leitores dos celebrados contos de Leiria.
Só por encenação paródica, fita ou mofa os louros lhe assentariam bem na calva, mas o certo é que escreveu até um “poema épico”. Paródia ao leme, a coisa inicia in “medias res”, como compete, e com sonoro estardalhaço, mas afasta-se logo dos píncaros épicos para prosseguir em clima burlesco, despenhando-se nos pequenos formatos da trivialidade doméstica. Os lances heróicos de excecional valor dão lugar aos dias regulares, rasteiros: “Diz uma voz: Maria, o café!// Levanta-se o homem que tal tinha dito/ Avança, indómito, com ar tétrico./ Vai ao paliteiro, tira um palito/ E sai, para ir apanhar o eléctrico”. Contava então 16 anos e não voltou a reincidir no poema épico. Mas não fechou com uma cruz a experiência da inconformidade com as “coisas compridas”, os formatos de longo curso, grandiloquências, e, em particular, com esse género maior que é a epopeia, e que haveria, de resto, de transformar no seu anti-modelo, como comprovam muitos dos poemas que este novo volume recolhe.
Se escasseiam, naturalmente, as marcas estáveis da epopeia clássica e as formas canonizadas, não faltam as musas, amiúde designadas com os mais espaventosos atributos: “meu pequeno e carinhoso motor diesel”, “meu avião de jacto/ perdido ao jogo de dados/meu caranguejo-tigre/ minha mala-infância/ meu vento-mulher […]”. Nem faltam nomes ilustres, episódios e figuras da nossa história colectiva, como o Adamastor, “chuva de reis” – sanchos, segismundos, raimundos e mais uma catrefada deles –, feitos subidos. Nem mesmo os do tio Abel, em quem se centra, aliás, o poema “Arraial!!”. São rijos os festejos e concorrido o folguedo: “Atroam ares as trompas da Glória,/ Gritando aos Sete Mundos cantos de Vitória// Gigantes barbudos, ferozes e tremendos/ Saiem de seus antros escuros e horrendos. //Cavaleiros de arneses e broquéis,/ Pajens, jograis, bufos, menestréis. // Todos vêm saudar o Gran-Senhor,/ Arraial! Arraial! Grita a saudação. //Pelos teus anos, caro tio Abel,/ Grito eu, com satisfação.”
Se há cores que podem ser postas no centro deste volume que recolhe a poesia completa do autor essas cores são, seguramente, o vermelho e o verde, salpicados daquele humor avinagrado, então pouco usado na literatura que por cá se produzia e que se converteu na imagem de marca da sua escrita. E mesmo a cenografia fúnebre que projectou para o seu enterro, ainda que centrada nos melancólicos azuis, não dispensa as pátrias cores: “E ao longe, envoltos em tristeza,/ dois gatos solitários,/ miando a “Portuguesa”…”. E depois há a geringonça, desatinada, delirante: “máquina/ de fazer sorvetes/ que uma bela hora/ – por avariada –/ deitou cá para fora/ – ó que surpresa! – / um riquíssimo cozido à portuguesa”. São versos do poema “Portugal”, a integrarem o relato de um estranho produto que promete mas não cumpre, falha e torna a falhar. É o país das padarias, dos “barbeiros de bigodes ultramarinos”, dos banquinhos artesanais, do Josefino “ex-futuro ministro do governo”. O Portugal que tem dores nas cruzes e pés inchados, “e quanto a calos/é o que se sabe/ parece que se dão nos pés/ de Lisboa”.
Em “Lisboa Voo do Pássaro”, o último livro publicado por Leiria, em 1979, composto por uma série de poemas que dialogam com fotografias de João Freire, centrados numa capital pós-revolucionária, sentimos o riso a arrefecer. O sulfuroso humor de Henrique Leiria revela-se insuficiente para estilhaçar afloramentos líricos mais marcados e aquela tristeza tão portuguesa que domina estes fotopoemas. Lisboa, “antiquíssima cidade imperial”, é aqui uma cidade que vale pela pátria inteira e por tudo aquilo que ela tem de desarranjado, de decadente, de ruinoso e triste. A cidade das monumentais construções e ruas maiores, ilustradas com mitos e referências naúticas some-se para deixar ver habitações gastas, fachadas decrépitas, mamarrachos sem préstimo e outros alvos sempre apetecíveis aos procedimentos menorizantes da antiepopeia: “e aqui/ para terminar// a Torre de Belém// croquete/ que realmente/ nunca existiu/ e por isso mesmo/ nunca serviu/ para ninguém.” É a mágoa íntima de quem descrê de Portugal porque deambula, procura e, ao cabo dos anos, não acha senão pequenez, pobreza, murmúrios de mar e de gente, halos de tragédia, a “decretada austeridade”. Sobra o raivoso apego de quem não consegue dar-lhe as costas.