1. Ficou demonstrada, na passada semana, a relevância do debate público livre, esclarecido, racional e liberto das amarras do politicamente correto. Um exemplo bem elucidativo – e que merecia estudo atento nas faculdades de comunicação social e ciência política – prende-se com as mutações na apreciação político-mediática da proposta emblemática de António Costa para o próximo Orçamento do Estado: referimo-nos à redução de (alegadamente) 50% no IRS devido por portugueses emigrantes (entre 2011 e 2015) que regressem a Portugal. Relembramos que tal medida foi anunciada previamente pelo “Expresso” em clara articulação (à melhor maneira da propaganda socialista) com António Costa, para que este brilhasse no comício da rentrée do PS – o diretor do “Expresso”, Pedro Santos Guerreiro (o costista mais costista que o próprio Costa), assegurava então que a medida merecia “enérgicos aplausos” e já estava tecnicamente pronta. E, de facto, no fim de semana do seu anúncio, os comentadores televisivos desdobraram-se em estridentes elogios a tal medida. Sim, seria uma medida que traria muitos benefícios para Portugal. Na segunda-feira seguinte, os jornais mantinham o tom de elogio geral quanto à “borla fiscal” – seria, pois, mais uma medida brilhante do genial político Costa.
2. Na terça-feira seguinte, nós expusemos aqui no i as debilidades (jurídicas, políticas e económicas) do desconto fiscal nos termos em que fora anunciado. Nesse dia à noite, o tom começou a mudar substancialmente: as televisões já começaram a alertar para os perigos de inconstitucionalidade, com alguns economistas a alertarem para os efeitos económicos nulos da medida, que se traduziria em receita fiscal negativa sem contrapartida de benefício social. Na sexta-feira seguinte, até Francisco Louçã deu nota negativa ao desconto fiscal de António Costa invocando a sua… inutilidade. António Costa, por seu turno, sentiu a necessidade de publicar um vídeo no site do PS objetando às críticas que nós aqui formulámos no i – nós agradecemos a simpatia do primeiro-ministro quer pela resposta que nos dedicou em forma de vídeo, quer por ter confirmado a nossa tese. De facto, António Costa teve um verdadeiro ato falhado: os argumentos que avançou para defender a sua proposta revelaram-se absolutamente ridículos, agravando (e não diminuindo ou afastando) o nosso juízo de inadmissibilidade constitucional e de futilidade política. Enfim, trata-se de uma medida cujos vícios refletem, afinal, os vícios do governo António Costa.
3. Mais: no referido vídeo, António Costa divulgou que a medida ainda se encontrava na fase de discussão técnica, sendo uma ideia ainda carecida de concretização. Ora, atendendo a que o “Expresso” (o diretor Pedro Santos Guerreiro, claro) garantiu que a medida já estava praticamente fechada, resta questionar quem mentiu descaradamente aos portugueses: se António Costa, se esse “jornalismo de referência” virado “propaganda de indecência” que é o “Expresso” atualmente. Não deixa de ser sintomático que o referido semanário – que poderemos com propriedade designar por “Expresso socialista”, porque pagar os 3,80€ do jornal é o mesmo que contribuir para o órgão oficial do PS, a “Acção Socialista” –, na edição seguinte tenha ignorado o “desconto fiscal”, optando, et pour cause!, por dedicar a capa a Fernando Medina (delfim de António Costa) para anunciar uma outra medida a constar do Orçamento do Estado para o próximo ano: desta feita, a redução do custo do passe social. Primeiro, só para Lisboa; depois, face à pressão de Rui Moreira, também no Porto; finalmente – parece! – , para todo o país. E assim se constrói um Orçamento do Estado de um país que esteve há pouco à beira da bancarrota: lança-se a ideia para o ar (sempre através do “Expresso”), analisa-se a reação do público e dos parceiros da esquerda – e, em função das tendências e da popularidade, decide-se.
4. É um verdadeiro buffet orçamental: António Costa e Pedro Santos Guerreiro colocam uma ementa à disposição do público, o qual poderá ir escolhendo e cozinhando a seu gosto as propostas sugeridas. Mais uma originalidade deste Portugal geringonçado… A propósito, alguém se lembra da caravana do Orçamento que iria percorrer as praias por esse país fora? Uma caravana, anunciada com pompa e circunstância pelo governo, que iria aproximar os portugueses da decisão orçamental? O que é feito da caravana? Ninguém sabe. Na verdade, ninguém sabe se a caravana saiu alguma vez da garagem. Se a caravana for da mesma qualidade do governo de Costa, então só poderá ser um calhambeque. Mas António Costa nunca apitou nem apitará este calhambeque do Orçamento Participativo – também por esta razão se prova que os socialistas gostam muito da participação dos cidadãos na vida política na teoria; na prática, os socialistas decidem, enquanto os outros se calam e obedecem.
5. Senhor primeiro-ministro António Costa: por uma vez na vida, seja coerente e honesto para com os cidadãos portugueses. A sua proposta de “borla” fiscal só teve um mérito: o reconhecimento implícito de que o sistema fiscal português é disfuncional, confiscatório e um desincentivo ao investimento privado. Que prejudica os trabalhadores, os empreendedores, a promoção do mérito e a justiça social. Que pune a justiça comutativa – e distorce a justiça distributiva. Sr. primeiro-ministro: deixe-se de mentiras e jogos de poder, oferecendo a uma parcela mínima dos portugueses aquilo que nega à maioria, apenas para preservar as suas alianças partidárias. Tenha a coragem de discutir com o PPD/PSD (com ou sem Rui Rio, que pode preferir ficar consigo) uma ampla e histórica reforma fiscal, assente nos seguintes pressupostos: (1) redução da taxa máxima de IRS e do número de escalões, ao mesmo tempo que se avança na simplificação da legislação fiscal; (2) revisão do estatuto do contribuinte, alargando as suas garantias de defesa e disciplinando, com rigor, os poderes de intromissão da administração fiscal na vida e na propriedade dos contribuintes, que, antes do mais, são cidadãos dotados de direitos subjetivos fundamentais; (3) adoção de um regime de IRC que seja altamente competitivo, ao nível europeu e global, revogando as medidas que o senhor primeiro-ministro aprovou para preservar os seus interesses pessoais e partidários (designadamente, para se manter no poder com o apoio dos comunistas e trotskistas); (4) revisão do regime do contencioso tributário, acentuando a sua dimensão subjetivista.
6. Senhor primeiro-ministro António Costa, não minta mais aos portugueses: o senhor já admitiu (ao propor uma borla fiscal só para alguns) que o atual regime de IRS não atrai ninguém e prejudica os portugueses que ficam aqui, no território da nossa pátria, que têm de trabalhar arduamente (ganhando pouco) para sustentar as suas famílias, que desejam uma educação de qualidade para os seus filhos e saúde para si e para os seus – tudo aquilo que o senhor primeiro-ministro lhes nega, com as suas cativações e as suas habilidades politiqueiras.
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Escreve à terça-feira