Ceuta sempre foi para nós, portugueses, um nome mágico. Ceuta e o estandarte carmesim, bordado a ouro pelas mãos dedicadas de Dona Filipa de Lencastre, que D. João i ergueu no momento do seu desembarque em terras africanas.
Há uma palavra que foi sempre muito usada em relação a Ceuta: devoção. Local primevo de uma expansão que fez de Portugal a primeira grande nação universal. Devoção pelo poder milagroso que se atribui a Santa Maria de África, também conhecida por A Morenita, e à qual os espanhóis resolveram chamar, simplesmente, A Portuguesa. Os seus milagres foram incontáveis e perdem-se no mundo das lendas. O infante D. Henrique ofereceu a imagem à Ordem de Cristo. Sem surpresa, porque ele próprio era mestre dessa ordem. Motivo? Os serviços prestados pelos seus cavaleiros na conquista da cidade da qual A Morenita se tornou padroeira.
Oliveira Martins, o historiador, sublinhou a sua importância: “Ceuta, no irrequieto pensamento do infante D. Henrique, era apenas o primeiro elo de uma cadeia que haveria de apertar e estrangular o império de Marrocos. O segundo elo, que era Tânger, partiu-se quando o mesmo príncipe temerário, numa empresa que o bom senso não aconselhava, acometeu os muros da cidade. Portugal nem por isso deixou de cumprir o seu destino atlântico.”
Mas há mais da liturgia portuguesa nessa terra que fica para lá do estreito de Gibraltar e continua a exibir, com orgulho, as quinas lusitanas. Escondida numa igreja modesta, é mais pobre e menos milagreira e recorda a primeira missa lusitana celebrada no continente africano: Nossa Senhora da Assunção. “Talhada em pedra dura, guardada na Igreja do Vale, o lugar onde os soldados de D. João i desembarcaram, ganhou dos espanhóis o nome de A Conquistadora. Foi tirada do altar da nau em que o rei fez a viagem, levada em procissão para aquele mesmo lugar no primeiro domingo português de Ceuta e colocada numa pequena mesquita que se transformou apressadamente num templo cristão. Foi ali que o capelão Afonso Anes celebrou a missa e frei João Xira pregou, exaltando o feito surpreendente que as armas portuguesas acabam de cometer para maior glória da Cristandade.”
A Conquistadora viveu sempre na sombra d’A Portuguesa. A Nossa Senhora de África, envolta num rico manto de brocado, coberta com uma coroa de altíssimo valor e rodeada de uma corte de anjos, fitando com lágrimas nos olhos o filho morto, ficava a anos-luz da modesta grade de ferro que envolvia a sua rival, já com a pedra a desfazer-se, linda, pois sim, mas tão ingénua.
Em 1952, a Semana Santa de Ceuta vergou-se à Nossa Senhora de África. Junto a ela, o bastão de D. Pedro de Menezes, primeiro governador de Ceuta. Os locais sempre lhe chamaram o “Bastão do Avô”. O Promontório Sacro era banhado pela luz forte do sol africano. “Sobre aqueles penhascos ciclópicos projecta-se ainda, na sua grandeza desmedida, a sombra prestigiosa do infante navegador. Visto do mar, o histórico promontório oferece o envagamento natural consagrado ao génio português dos Descobrimentos.”
Uma espécie de santificação tomou, nesse dia, conta da cidade. O nicho policromado onde se venerava São João de Deus, que residiu em Ceuta trabalhando como pedreiro nas obras da fortaleza e um pouco por toda a parte, estava rodeado de fiéis. Murmuravam-se orações por entre as ruas que os espanhóis foram pejando de edifícios de orgulhosas fachadas. Sobravam as relíquias de um glorioso passado português, que iam desde as armas da cidade até pormenores que atestam a presença de Camões, que aí terá perdido o olho direito, reza a lenda.
O calor tórrido embaciava o azul do sol. Para lá do horizonte, o Mediterrâneo parecia um lago tranquilo.