Vazante. “O mestiço brasileiro é filho do estupro”

Vazante. “O mestiço brasileiro é filho do estupro”


Tragédia perfeita é este Brasil no fim do período colonial a que recua a realizadora brasileira Daniela Thomas em “Vazante”, protagonizado pelo português Adriano Carvalho


Privilegiado aqui é um homem branco descalço. António [Adriano Carvalho], que, depois de perder a mulher e o filho, há de se casar com uma sobrinha de 12 anos. A história é essa, o resto é a vida. História de costumes, do quotidiano no Brasil já por pouco mas colonial ainda, no início do século XIX. A vida tão banal quanto o mal. Os brancos, os negros e os mestiços. Os brancos procurando salvar-se. Os negros nem sempre iguais, mas sempre escravos: os escravos da casa, os de fora, o escravo que não será e aceita as consequências. Ninguém é livre aqui, nem mesmo o homem branco. Palavras da realizadora brasileira Daniela Thomas de visita a Lisboa no dia em que, ao lado de “Joaquim”, filme de Marcelo Gomes sobre Tiradentes, “Vazante” chegou às salas portuguesas.

Chegaram-nos a Portugal alguns ecos da discussão gerada pela estreia de “Vazante” no Brasil, há mais ou menos um ano, e acho que era importante falarmos também sobre elas. 

São discussões ligadas à questão do movimento negro no Brasil. Há uma exaustão no audiovisual brasileiro da imagem do negro subjugado. A questão negra é a questão da escravidão, a nossa grande chaga. O Brasil é um país construído sobre o trabalho escravo negro, como um grande Egito. Isso é uma coisa terrível, obviamente. O audiovisual brasileiro, em relação à escravidão, sempre foi uma espécie de eco do cinema americano. O negro do cinema brasileiro é um pouco o negro do cinema americano. O “Vazante” chegou como um filme obcecado com a verosimilhança. Talvez a primeira palavra de ordem, a primeira informação que passei para quem fosse produzir o filme era de que queria reproduzir tudo o que se sabe sobre aquela época pela primeira vez no cinema. Porque o cinema brasileiro que trabalhou este tema foi um cinema mais imaginativo, mais carnavalesco. O nosso filme assenta numa espécie de realismo possível a partir da pesquisa que existe na historiografia brasileira, que deu uma avançada extraordinária nos últimos 30 anos. Mas a imagem que está [no filme] é a imagem do homem negro subjugado.

Poderia ser de outra forma?

Poderia. Poderia ser um filme sobre sublevação, porque houve isso também no Brasil. Mas não fiz um filme sobre isso. Fiz um filme sobre a condição humana naquele lugar, naquela época. 

Parece-lhe que as reações ao filme têm a ver com uma dificuldade de olhar para o que era a realidade então?

É o “cansei de me ver apanhando, cansei de me ver subjugado. Cansei. Não aguento mais esse lugar, esse imaginário”. Que não é imaginário, é um lugar real. Um “cansei dessa repetição, existem outras histórias para se contar da perspetiva do negro”. E os negros têm tão pouco acesso ao audiovisual brasileiro… O atraso no acesso à educação, no acesso aos meios de produção de cinema… O cinema brasileiro está muito atrasado em relação à imagem da sua própria história. Quem é que fez o quê? Como contar essa história? E a questão do “lugar de fala” está muito em evidência. Já ouviu essa expressão?

Sim.

A questão, agora, é: não só o tema do negro não deveria ser tratado dessa maneira como eu não deveria sequer tratar dele. Deveria deixar ao negro o poder de falar sobre si próprio e parar de falar em nome dele. Então me cobraram de duas maneiras: me castigaram por continuar torturando negros no cinema, continuar mostrando a subjugação negra, e ser uma branca usando atores negros para contar a história dos negros. Essas duas coisas são tabu, e eu compreendo. Compreendo e simpatizo. Mas eu sou artista, não tenho nada com isso. Tem pouco tempo que eu me chamo de artista, acho que fui obrigada a me chamar de artista nesse trabalho [“Vazante”]. O artista é um ser livre – é a minha fantasia.

No Brasil, essa liberdade não tem existido nos últimos tempos.

No momento, não. São fases. Em fases muito militantes, com muitas discussões sociológicas, antropológicas e políticas e em que isso está muito à flor da pele, é muito difícil ser artista. Neste momento, o artista é considerado um burguês, um elitista, uma pessoa insensível, autorreferente. Nesse sentido, me considero artista e tenho uma espécie de musa, que é interior e me impõe os assuntos, os temas, as histórias. Eu sigo ela e acredito que seja necessário contar essa história dessa maneira. 

Sei que partiu de uma história da sua família, que transportou para 100 anos antes, até ao final do período colonial, em Minas Gerais.

Essa história nasce quando, aos 17 anos, começo a estudar História e percebo que existe uma carência da história da escravidão no Brasil. Saí do Brasil nessa época, não terminei História, fui morar fora e fiz outras coisas. Estudei literatura, cinema, fiz teatro, a minha vida seguiu um outro caminho. Mas lá no Brasil, nesse momento, estava começando exatamente a se pensar em escrever a história da escravidão e eu fui muito sensível a isso. Quando teve a Lei Áurea, a lei da libertação dos escravos, em 1888, houve uma história que ficou famosa de um ministro que mandou queimar os documentos de posse dos escravos. A tese dele era que se ele queimasse isso, os senhores dos escravos não poderiam pedir indemnização pela perda dos escravos, mas na verdade fez um grande mal à história do Brasil – que nem esse museu que ardeu agora. Os historiadores ficaram com a ficção de que não havia documentos e foi preciso uma historiadora americana vir ao Brasil, no começo dos anos 1980, ver os arquivos e dizer: “Está tudo aqui. Existem arquivos nos cartórios: nascimentos, compras, vendas, doenças, casamentos.” Queimou-se muita coisa, mas muita coisa sobrou e existe, desde 1980 para cá, uma historiografia enorme, maravilhosa, da escravidão no Brasil. Este filme contou com duas historiadoras brasileiras que nos deram informação sobre o que se comia, como se comia, o que se cantava, o que se vestia… Por isso quis fazer o filme. Porque achei que o cinema não tinha registo dessa realidade pulsante de tudo isto que já está em livros e em teses. E isto é uma história. A que me contou o meu pai não se passa na mesma época.

É mais tarde.

Bem mais tarde, no começo do séc. xx. Essa é no começo do séc. xix. Quis juntar as duas coisas porque nessa pesquisa sobre o interior do Brasil, uma coisa que percebi foi que se casava com 10, 12 anos e que os casamentos eram económicos. Eram casamentos arranjados entre famílias para criar vínculos, que nem em Roma, que nem na Idade Média, sei lá. Era assim. E o meu pai me contou essa história fabulosa de um tio que era um viajante, caixeiro-viajante, e que não usava sapatos, e então, quando chegava em casa, ficava tirando pedriscos da sola do pé. E ele teria se casado com uma menina de 12 anos. Quando ele morreu, ela tinha 19, 20 anos, e nunca recasou. Era apaixonada por ele, supostamente, porque ele esperou ela menstruar, aos 15 anos, para torná-la sua esposa oficialmente. Esse respeito era considerado assim uma joia, uma espécie de bem cultural da família, o homem ter esperado. O mais amoroso é que ele trazia bonecas para ela das viagens. 

Tal qual o António [Adriano Carvalho] de “Vazante”. 

Exatamente. Quis contar essa história porque, no Brasil, as mulheres eram propriedade dos homens. Eram forma de pagamento, eram uma moeda. Ele comprou uma filha, não é? E ao mesmo tempo, comprando a menina, resolveu o problema financeiro da família. Foi essa dinâmica que quis retratar. Sabe que tem uma disputa muito grande entre os movimentos identitários, o movimento negro e o movimento feminista. Nesse filme, que trata a questão feminina e a questão racial, houve uma guerra. A questão racial se sobrepôs à questão feminina. 

Vi-o sobretudo como um filme sobre a condição da mulher naquela sociedade.

A questão principal é a questão da mulher.

A mulher branca, a negra, todas as mulheres. 

Acho que a condição feminina no Brasil do séc. xix é fundamental para a gente entender, hoje, questões como o feminicídio no Brasil. A questão da posse, da mulher como propriedade. O carro, o apartamento, a mulher. Tudo isso, para mim, é muito forte, mas ficou em segundo plano frente à questão racial. Na receção, claro, não na minha criação. A minha hipótese para o filme era que a miscigenação brasileira se deu pelo estupro. Não estou querendo dizer que o filme é sobre isso, mas a minha hipótese emocional, a razão pela qual escrevi aquela história, era falar que filho de branco e negro, mestiço, é filho do estupro. 

Para lá disso, está aqui muito presente toda uma questão de classes que vai muito para lá de uma oposição entre o branco, senhor, ao negro, escravo. 

Não há ninguém livre ali. Nem mesmo o homem branco. Estão todos capturados por um sistema violento e estéril, horrível, que é o sistema patriarcal escravista. O que quis mostrar é que ninguém se salva. Até o branco é infeliz. Ele é um nada, um faz-nada. O tempo não passa. Ele na rede, usando as pessoas para fazer serviço… é patético. É horrível. Todos estão escravizados por um sistema doente, muito doente de nascença. A propriedade do homem pelo homem, a violência das relações, ninguém se dá bem, ninguém se salva disso. 

Aproveitando essa ideia do tempo que não passa, em termos formais, o filme está construído como uma espécie de crónica do dia-a-dia. Mais do que contar uma história, é um retrato do quotidiano.

Ele reflete o que se sabe de como era. Há imagens de artistas que D. João v levou para o Brasil ou que vieram em missões de viajantes para conhecer o Brasil do séc. xix e que foram fundamentais, a fonte absoluta. Para cada coisa que você vê ali, eu tenho uma imagem para te mostrar. Aquela tropa descendo aquele morro, aquela riqueza extremamente modesta. Isso vem escrito: uma riqueza pobre, que um rico no Brasil é um pobre paupérrimo na Europa. Então tem uma mesa, poucas cadeiras…

Isso está escrito onde?

Está escrito pelos viajantes e está escrito nas heranças. Quando se transmite, se transmitem três garfos. Uma mesa. Uma cómoda. Sabe? Um fazendeiro monumental transmite dez objetos. É muito pobre, apesar do território vasto e do tamanho da casa. Foi uma fixação, uma obsessão, isso de fazer um retrato extremamente fiel ao que se sabe. 

O que a surpreendeu mais na pesquisa?

Descobri muita coisa no processo. Por exemplo, não sabia que não se beijava. Supostamente. A boca era um lugar fétido. Não havia nenhuma ideia de como aquela coisa fétida poderia causar prazer. Acho isso interessantíssimo. O beliscão, por exemplo, era uma grande intimidade. Uma historiadora com quem a gente trabalhou, Mary del Priore, historiadora da vida privada, ela nos deu esse repertório de detalhes. Em detalhe, era muito comum homens de 50, 60 anos se casarem com meninas de 12. Esse caso de ser um homem apessoado, porque o Adriano é bonito, seria uma grande sorte [risos], porque seriam homens abomináveis. Ela contou também que as mulheres brancas, como não faziam absolutamente nada, tendiam, como se vê nas imagens, a ficar muito gordas. E todo esse convívio da mulher branca com a criança negra, que ela trata como um bicho. Como um gato ou um cão. O cinema americano sobre a escravidão tem muito uma obsessão com o sadomasoquismo – o “12 Anos Escravo”, “O Mordomo da Casa Branca”, enfim -, e eu quis fazer uma hipótese também que é a hipótese da banalidade do mal de Hannah Arendt. Percebi nesses documentos todos que o mal era presente em tudo. A ideia do castigo físico é a maneira como se trata. O que é que isso lembra? Lembra como se trata um cavalo, como se trata um boi, como se trata animais de serviço. O negro era considerado mais um animal de uso doméstico. A Igreja ajudava, o Estado ajudava, havia todo um arcabouço legal para estabelecer que era essa a relação. Castiga-se um negro como um cavalo. Você não fica matando um cavalo. 

Só a partir de uma premissa do género dessa é possível que a escravatura tenha acontecido.

Era muito perverso, só não era considerado perverso. O que os portugueses fizeram nas viagens pelas ilhas do sul da Índia… Perversidade não chega para aqueles extermínios. Os ingleses no sul da África, os belgas… Quando você começa a contar o que os belgas fizeram no Congo… é muito terrível. A história humana é muito perversa. E o Brasil tem muitos anos, muitas décadas de História para se recuperar, para se repensar como país. A gente viveu alguns momentos-chave de uma epistemologia da História, da antropologia e da sociologia no Brasil. E, muito rapidamente, começa com a ideia de eugenismo. No final do séc. xix e começo do séc. xx, surgiu uma ideia nas universidades de limpar, branquear a população brasileira. Uma ideia de que todos os problemas do Brasil estavam numa boçalidade… como se o negro fosse naturalmente um ser inferior e que, se casasse cada vez mais com brancos, se a gente recebesse estrangeiros, europeus, a gente tinha uma oportunidade de “branquear” e de “melhorar a raça”. Aí aconteceu uma revolução nos anos 30, uma revolução incrível na antropologia brasileira, por um cara chamado Gilberto Freyre, que escreveu um livro chamado “Casa-Grande & Senzala”, que mudou a história do Brasil. Ele é tão sedutor que faz a História ficar assim saborosa e inventa um novo tema que é “o brasileiro é mestiço”. O povo brasileiro é mestiço e essa é a sua qualidade. Não temos nem brancos nem pretos, somos todos pardos. Mas não fala em estupro, é como se os desejos da negra e do homem branco fossem o mesmo. 

Mas essa é uma ideia que continua viva aqui em Portugal, até hoje, uma ideia de que o colonialismo português foi menos terrível do que outros porque os portugueses se misturaram mais do que outros.

Estupraram-se. É um pouco diferente. Mas no Brasil também [continua]. É contra isso que o movimento negro está se colocando. O movimento negro quer racializar a discussão, quer sair dessa democracia social que eles acham que é fake, que é mentira. É mentira porque a cor muda tudo. Eu sou neta de negros mas sou branca, e é como branca que sou tratada. A minha cor é como me tratam. Essa modificação demorou muito tempo porque o conceito de negro foi sendo substituído pelo conceito do mestiço, do grande brasileiro nessa democracia incrível onde todos são de todos. Esse português maravilhoso, lúbrico, sensual, que seduziu as negras, e o Brasil como resultado desse grande bacanal maravilhoso. Essa fantasia durou muitos, muitos anos, e só mesmo nos anos 80 é que começou este grande processo, quer na historiografia, quer político, pelos movimentos negros. Tem um escritor negro que escreveu um livro poderosíssimo, importantíssimo – “O Genocídio do Negro Brasileiro” [Abdias do Nascimento, 1978] – o anti-Gilberto Freyre, dizendo “nada de mestiçagem”, que existem negros, todo o resto é branco. Vamos encarar.

A Daniela estava à espera das críticas com que foi recebido o filme por esses movimentos?

Não! Levei um susto. Achei que estava sendo tão fiel que ninguém poderia jamais me cobrar por estar fazendo algum tipo de propaganda. 

Uma das críticas mais apontadas foi o facto de as personagens dos escravos ou as personagens femininas não terem voz. 

Ninguém tem voz ali. Essa é a grande questão. 

A única forma que o escravo que se revolta encontra de ter uma voz é o suicídio.

Exatamente. É a antivoz. A resistência é calar-se. Conversei com alguns historiadores que me ajudaram muito depois disso. O José Reis, historiador das revoltas negras, falou para mim: “O seu filme tem tudo. A revolta, a fuga, a resistência, o negro que se mata, o negro que oprime o outro negro.” Falou que o filme era uma espécie de compêndio da vida negra. Este é um filme muito rigoroso, até na amostragem das possibilidades sociológicas dos negros. Mas isso não bastou. E ainda falaram na objetificação do corpo negro. 

Mas o negro era objetificado.

Exato, mas eles acham que fazer isso no filme é perpetuar isso.

Talvez essa exaustão de que a Daniela fala exista no Brasil. Em Portugal, a confrontação com este passado é mais do que necessária. 

A obra de arte não pode nascer para responder a questões políticas ou de emancipação. A graça de fazer arte é a liberdade, é ser o lugar, ainda, onde o cérebro e a imaginação podem vibrar, livremente. No momento em que você perde isso, por um lado ou pelo outro, você perde a razão de fazer arte.

Um ponto importante do qual ainda não falámos é a incorporação de não atores no elenco.

Acho que o cinema é olhar e tenho uma fixação pela capacidade do ator de estar no filme. Tenho muita dificuldade com o cinema americano de grandes atores porque olho no olho deles e vejo o agente refletido. Juro por Deus. Gosto muito de filmes em que você acha que só tem aquele olhar, em que existe uma raiz naquele personagem. E achava que não ia conseguir porque, na cidade, onde circulo, os negros são muito urbanos e jamais conseguiria transmitir o que via nas fotos de época, nas fotos do Marc Ferrez. Tem um livro, “A Imagem do Negro no Brasil” – você vê ali o “Vazante” inteiro. Eu queria aquelas caras, precisava daqueles rostos, e achava que não ia conseguir até que assisti a “Terra Deu, Terra Come” [de Rodrigo Siqueira], um documentário sobre quilombolas [descendentes de escravos fugidos que se organizaram em novas comunidades, os quilombos], naquela região. Liguei para o diretor [Rodrigo Siqueira] e ele me franqueou as portas. O “Vazante” só existe porque vi esse documentário. 

Vem dessas referências de que fala a opção pelo preto-e-branco no filme?

Sim. Eu via em preto-e-branco e não queria fazer hipóteses na direção de arte, perder tempo com isso. No Brasil, a gente não tem, como aqui na Europa, uma arte pictórica contínua. Por exemplo, de 1500 a 1808 ou 1810 não há um retrato, praticamente. E achava também que o preto-e-branco tem essa carga emocional, afetiva, ligada às imagens dos nossos antepassados. Então não tive dúvida, desde o começo.