Micromáquinas: e se for possível  engolir o médico com um copo de água?

Micromáquinas: e se for possível engolir o médico com um copo de água?


Esse aprofundamento da fusão entre pessoas e máquinas, será mais um passo gigantesco no aumento da esperança e da qualidade de vida de milhões de seres humanos


Em 1959 o prémio Nobel da Física Richard Feynman referiu, pela primeira vez, a possibilidade de construirmos micromáquinas. Em 1984, Feynman voltou a essa temática numa conferência célebre, a que chamou “tiny machines”, e que vale a pena assistir na integra (https://www.youtube.com/watch?v=4eRCygdW–c). Quase sessenta anos depois da ideia original de Feynman, já somos capazes de construir micromáquinas. Apesar de ainda não o conseguirmos fazer com tanta facilidade e fiabilidade como o fazemos com macromáquinas (carros ou aviões, por exemplo) é, no entanto, possível e altamente provável que estes novos dispositivos venham a introduzir nas próximas décadas mudanças significativas no nosso modo de vida. Mas vamos por partes. Primeiro tentaremos explicar o que é uma micromáquina e depois para que serve ou poderá servir.

Comecemos pelo conceito de micromáquina (o acrónimo inglês é MEMS, de micro-electromechanical systems). O prefixo “micro” aplica-se as coisas um milhão de vezes mais pequenas do que a unidade de referência. Assim, sendo a unidade comprimento de referência (no mundo dos seres humanos, claro) o metro, uma micromáquina será um dispositivo com um tamanho cerca de um milhão de vezes inferior ao metro, isto é, com dimensões de alguns micrómetros. Um micrómetro é a milésima parte do milímetro. Para nos situarmos melhor, é de referir que nós, seres humanos, conseguimos distinguir a olho nu cerca de 100 micrómetros (uma décima de milímetro) e uma célula animal é 10 vezes menor (tem entre 10 a 20 micrómetros). Portanto, quando falamos de micromáquinas estamos mesmo a falar de máquinas muito pequenas. Do tamanho de células, ou menores ainda.

É claro que sermos capazes de construir uma máquina tão pequena que nem sequer a podemos ver, não parece, numa primeira análise, uma coisa particularmente útil ou interessante. Nem sequer impressionante. Sobretudo no tempo em que vivemos, de comunicações rápidas e fáceis para todos os pontos do planeta, telemóveis com memória capaz de abarcar facilmente toda a informação contida na biblioteca da Academia das Ciências conjuntamente com todas as nossas selfies de férias, entre muitas outras maravilhas, para que nos serve fazer um carro tão pequeno que nem sequer o vemos para poder brincar com ele?

Feynman foi, logo em 1959, confrontado com esta questão: para que serve uma micromáquina? Entre as respostas que deu, mencionou a ideia revolucionária que lhe havia sido sugerida por um seu ex-aluno (Albert Biggs): seria muito interessante para um doente se ele simplesmente pudesse engolir o médico com um copo de água. O médico mecânico (a micromáquina) poderia assim ser direcionado até ao local da intervenção e corrigir localmente o problema (por exemplo, remover uma a uma um conjunto de células cancerígenas), ou alternativamente, poderia ser introduzido de forma a ficar permanentemente dentro do indivíduo, corrigindo problemas em órgãos que funcionam inadequadamente. Esta foi a visão de Feynman há sessenta anos, apesar de ter parecido na altura (e ainda hoje) pouco mais do que ficção proveniente de uma mente um pouco transtornada.

Mas qual é a realidade presente, relativamente a esta temática?

Por um lado, as micromáquinas são uma realidade: valor total global do mercado destes microssistemas é, atualmente, de 10 mil milhões de euros, prevendo-se que chegue aos 50 mil milhões já em 2024 (por exemplo, os sensores que disparam os airbags de todos os carros do mundo são micromáquinas). Por outro lado, os dispositivos biomédicos inseridos no organismo humano de forma temporária ou permanente, são uma realidade, quase trivial nos dias que correm (sondas, próteses, válvulas cardíacas, stents, etc). Assim, sendo certo que ainda não chegámos ao microcirurgião mecânico, ou à injeção de pequenos dispositivo diretamente no cérebro ou no sistema nervoso, com o objectivo de corrigir patologias degenerativas (como a doença de Parkinson ou de Alzheimer), muito provavelmente, tal acontecerá nas próximas duas décadas. Esse aprofundamento da fusão entre pessoas e máquinas, será mais um passo gigantesco no aumento da esperança e da qualidade de vida de milhões de seres humanos. Mas levanta também questões éticas, pelo menos tão complexas como é a construção do microcirurgião mecânico que nós tomaremos com um copo de água, que importa discutir.

 

Professor do Departamento de Engenharia Mecânica do IST