O vídeo original foi publicado nas redes sociais a 17 de agosto e tem mais de 15 mil visualizações. Mas só na semana passada começou a circular em páginas e grupos católicos, onde se acumulam comentários de fiéis indignados. A Igreja de São Sebastião na aldeia de Cem Soldos, em Tomar, foi usada como palco de um concerto de rock e o bispo de Santarém já veio dizer que não sabia do espetáculo.
No vídeo que está a circular no Facebook vê-se o público a dançar, a gritar, a tirar fotografias e a aplaudir efusivamente o projeto “Homem em Catarse” do músico Afonso Dorido – que, de guitarra elétrica em punho, vai circulando energicamente pelo palco montado em frente ao altar, com colunas gigantes colocadas ao lado de imagens de Nossa Senhora de Fátima e do Sagrado Coração de Jesus.
O concerto aconteceu a 11 de agosto, integrado no festival “Bons Sons”, que acontece anualmente na aldeia de Cem Soldos. E, apesar de a organização usar a igreja para concertos há vários anos, só agora a polémica chegou às redes sociais. De tal forma, que ontem a diocese de Santarém viu-se obrigada a emitir um esclarecimento. Na nota, o bispo refere não ter tido “conhecimento prévio” de que o templo ia ser usado para espetáculos do festival, que este ano se realizou de 9 a 12 de agosto. “Este ano, o concerto de música (…) provocou várias observações de escândalo que chegaram de várias partes do país e do estrangeiro”, admite a diocese, acrescentando que o espetáculo do “Homem em Catarse” viola as regras do Vaticano sobre os concertos em igrejas.
A nota recorda que o Direito Canónico determina que os espetáculos não devam ser “contrários à santidade do lugar” e que a Congregação para o Culto Divino refere, por isso, que “convém abrir a porta da igreja a um concerto de música sacra ou religiosa e fechá-la a toda a outra espécie de música”. “Não é legítimo programar numa igreja a execução de uma música que que não é de inspiração religiosa e que foi composta para ser interpretada em contextos profanos precisos, quer se trate de música clássica ou contemporânea, erudita ou popular”, continua a nota da diocese, que recorda que, durante os espetáculos em igrejas, o público também tem obrigações. “É preciso que não se desvirtue um ambiente propício à oração pessoal e comunitária, ao silêncio e ao cultivo da dimensão espiritual”, diz o texto.
A diocese refere, igualmente, que qualquer espetáculo dentro de uma igreja deve ser pedido, por escrito, ao padre “ou outro responsável”. Ora o padre, Luís Martinho, admitiu ontem ao i ter dado autorização para a utilização do templo por parte da organização do festival “Bons Sons” deste ano, como também o fez em edições anteriores. “E tem corrido tudo bem. É uma polémica em torno de um único concerto numa lista de muitos outros”, desvaloriza o sacerdote, que admite não ter “informado oficialmente” a diocese da realização dos concertos. “Há quatro anos que estou nesta paróquia e o festival não foi inventado por mim. Herdei isto”, acrescentou, recusando mais explicações com o argumento de que só falará “em sede própria”.
Este ano, e de acordo com a programação do festival, a igreja de Cem Soldos foi usada para oito espetáculos, sendo mesmo um dos nove palcos oficiais. Por lá passaram nomes como Palankalama, Isabel Silvestre acompanhada pelas “Vozes de Manhouce”, Patrícia Costa, Meta, Homem em Catarse, Artesãos da Música, Orquestra de Foles e Douradas Espigas – todos escolhidos pelo projeto “A música portuguesa a gostar dela própria”.
Entre as muitas reações de católicos no Facebook, há quem questione: “o padre está louco?”. “Quem autorizou isso?”, perguntava outro fiel, em resposta a um post do blogue católico “Senza Pagare”, que critica o evento e apelida o vídeo de “Woodstock na Igreja de São Sebastião” . “Podem ter a certeza que se eu visse uma palhaçada destas na Casa de Deus teriam que se ver comigo”, escreve ainda outro católico indignado. “Não é só heresia, é blasfémia”, lê-se num comentário. O i contactou o Festival “Bons Sons”, que remeteu respostas para mais tarde. “Estamos a tentar perceber o contexto e a situação”, justificou a organização.
Igreja de Leiria serviu para espetáculo de dança “lascivo”
Há pouco mais de um mês, um outro espetáculo realizado numa igreja acabou em polémica. Uma performance de dança moderna integrada no festival de artes performativas “Metadança” teve como palco a Igreja da Misericórdia, em Leiria – cujo altar foi “invadido” por um conjunto de bailarinas em soutien e cuecas.
O caso remonta a abril, mas só foi denunciado nas redes sociais em julho e chegou a ser discutido numa reunião de Câmara, com os vereadores da oposição (PSD) a criticarem o teor “lascivo” do espetáculo. Só que, canonicamente, a situação não foi tão longe quanto a de Cem Soldos porque, em 2014, o bispo de Leiria-Fátima (agora cardeal) António Marto, publicou um decreto em que determinava que a igreja, por falta de obras e atendendo ao estado de degradação, deixaria de ser usada para fins religiosos, passando a poder receber atividades culturais – uma vez que já não era considerada, “de forma permanente”, um “lugar sagrado”.
Por outro lado, e ao “Público,” a organização do festival “Metadança” afirmou que a performance “não veiculou qualquer tipo de manifestação antirreligiosa ou quis utilizar a igreja para fins sórdidos, sendo que a fisicalidade e a coreografia apresentada no local não evocam nem se enquadram no conceito de sórdido”.
Mesmo assim, promotores e bailarinas não se livraram de críticas. O vereador do PSD Fernando Costa afirmou ao “Região de Leiria” que o espetáculo não era aceitável “num local onde há um altar e imagens religiosas”, tendo ferido “muitas suscetibilidades pelo tipo de roupa e movimentos utilizados”. O social-democrata, que se confessou “cristão, católico, não praticante”, disse-se mesmo “ofendido por o senhor vereador da Cultura estar a tratar a Igreja da Misericórdia como um palco qualquer”. As críticas foram corroboradas pelo vereador Álvaro Madureira, também do PSD, que se afirmou chocado por “ver jovens com vestimentas menos adequadas, em cima do altar, em posições que chocam para o contexto e para o espaço”.
Quanto à diocese, pediu “bom senso, a fim de respeitar a memória histórica e os símbolos cristãos do edifício”, enquanto o vereador da Cultura, Gonçalo Lopes, garantiu não ter recebido “qualquer reclamação”.