As “caçadas aos imigrantes” nas ruas da cidade alemã de Chemnitz, como a chanceler Merkel lhes chamou, estão a obrigar os alemães a confrontarem-se com os fantasmas do passado. A eleição, nas eleições do ano passado, de 94 deputados para o parlamento federal de um partido de extrema-direita, o Alternativa para a Alemanha (AfD), já tinha feito soar os alarmes não apenas no país, mas por toda a Europa. A Alemanha deixou de estar imune ao avanço destes movimentos – e a sua História, ao contrário do que se pensou durante décadas, não o impede o ressurgimento. Hoje, estes movimentos representam uma ameaça ao “Estado de direito” alemão, nas palavras de Angela Merkel.
Durante décadas nas margens da política, a extrema-direita sempre se constituiu em pequenos grupos, que não poucas vezes eram alvo de cisões por uns serem ainda mais radicais que os outros ou por disputas de poder internas. Pelo meio, dedicavam-se ao crime organizado, ora vendendo drogas, armas ou praticando extorsão. De tempos a tempos, uma operação policial decapitava temporariamente as suas lideranças para, depois, uma outra surgir.
As “caçadas” ao “outro” sempre fizeram parte das atividades destes grupos. Aconteceu na Grécia com o Aurora Dourada, na Itália, com o CasaPound, na Hungria, com o Jobbik e até em Portugal, com o grupo Hammerskins de Mário Machado – e em alguns destes países são hoje uma imagem comum. Nas ruas, o terror e o ódio contra quem não nasceu no país ou tem uma cor de pele ou religião diferente são fomentados por estes movimentos. A pureza racial no território nacional, o objetivo declarado.
Tudo começou a mudar para a Europa com a crise económico-financeira, em 2008. Com o aumento das dívidas soberanas, vieram os diktats de austeridade de Bruxelas e a narrativa de que os do Sul eram cigarras preguiçosas e os do Norte formigas trabalhadoras. Os europeus do sul gastam “todo o dinheiro em copos e mulheres” e depois pedem ajuda, disse em tempos o antigo ministro das Finanças holandês e ex-presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem.
Dividiram-se os europeus e cresceram os nacionalismos e, com a crise dos refugiados, a frustração pelo piorar das condições de vida de quem vive do seu trabalho foi canalizada da tecnocracia europeia para quem fugia da guerra por terra ou por mar. Dos movimentos de extrema-direita nasceram ou reciclaram-se partidos com discursos racistas e xenófobos, colocando em causa os sistemas partidários europeus. Uns reciclaram-se, continuando ainda assim a defender o que sempre defenderam; outros continuaram com os seus discursos de sempre, subindo nas sondagens. Fidezs, Frente Nacional francesa, Alternativa para a Alemanha, UKIP britânico, PiS polaco, no primeiro caso; Aurora Dourada, Jobbik, no segundo. E a União Europeia, que se rege pela ortodoxia financeira de sempre, pouco ou nada tem feito para impedir o seu avanço. “A imunidade [à extrema-direita] está em queda por toda a Europa e toda uma geração de tecnocratas que imaginava que a política se podia perpetuar entre o centro-direita e o centro-esquerda mostram-se mal preparados para o desafio”, escreveu o “Guardian” em editorial.
Com medo de perderem eleitores para estas não tão novas e recentes formações políticas, os partidos tradicionais começaram a adotar, aqui e ali, as suas narrativas, mas principalmente as políticas. O termo “fortaleza da Europa” entrou no léxico político europeu e é hoje usado tanto pela esquerda como pela direita. Uns criticam os muros de arame farpado, outros defendem-nos e fazem força para que mais se levantem. Impedir a chegada dos refugiados tornou-se no principal objetivo em muitos países, seja a nível nacional ou europeu. Os discursos de ódio normalizaram-se e os crimes racistas têm aumentado. Centros de acolhimento de refugiados foram reduzidos a escombros no Norte da Europa; refugiados foram atacados em Lesbos, na Grécia, sob gritos de “queimem-nos vivos”; e, agora, multidões avançam pelas ruas para agredir quem seja estrangeiro, relembrando os pogroms que marcaram a Europa no passado. Entre a cumplicidade, conivência ou incapacidade das forças de segurança, a extrema-direita ganha confiança renovada a cada ataque. “Os grupos de extrema-direita procuraram tomar as ruas. As suas ações foram bem organizadas, com uma subcultura estabelecida por uma rede nacional. São grupos pequenos, mas bem treinados e eficazes”, escreveu Hans Pfeifer, jornalista da Deustche Welle, sobre os ataques em Chemnitz.
Pelo seu peso nos destinos da União Europeia, mas também pela história nacional-socialista, a Alemanha é hoje um dos exemplos mais paradigmáticos deste desenrolar dos acontecimentos. Nascido em 2013 como plataforma para defender a saída da Alemanha da moeda única, o Alternativa para a Alemanha rompeu com o isolamento da extrema-direita no país. Nas últimas legislativas federais, o AfD conseguiu eleger 94 parlamentares, obtendo 12,6% dos votos e assumindo-se como terceira força politica e líder da oposição com a coligação CDU/CSU-SPD. Em Dresden, passou a ser a segunda força política mais votada, com 22,4% dos votos, enquanto a CDU ficou um pouco mais à frente com 24,6%, e na Saxónia descolou para os 25,4%, ultrapassando o Die Linke (17,5%) e o SPD (11,7%). Numa sondagem a nível nacional no início de agosto, o partido atingiu um novo recorde: 17% – e não parece estar para diminuir a sua influência no futuro próximo. Num editorial, o “Le Monde” denunciou que o AfD “não hesita em desestabilizar as instituições democráticas” e a apelar para que se “desça à rua” para “fazer triunfar a força face ao direito”. O governo federal terá agora de dar uma resposta rápida, caso contrário a extrema-direita ganhará confiança para futuras “caçadas”.