Deixar de ser extremista. Do ódio ao reconhecimento do outro

Deixar de ser extremista. Do ódio ao reconhecimento do outro


Fizeram parte de grupos de extrema-direita durante a adolescência, mas saíram e contaram o que viveram. Dizem que a extrema-direita se limitou a reciclar a imagem e discursos, continuando a propagar o que sempre defendeu


Juntaram-se a grupos de extrema-direita nos anos tumultuosos da adolescência. Negavam a existência do Holocausto a quem os quisesse ouvir, mas, anos depois, abandonaram esses grupos ao perceberem que levavam uma vida de “raiva, ódio, agressão e violência”, com entradas e saídas constantes da prisão. Agora, alertam para os riscos do avanço da extrema-direita nos Estados Unidos e na Europa, relembrando as suas experiências para dissuadir jovens rapazes e raparigas de fazerem as mesmas escolhas de que eles hoje se arrependem de ter feito. 

A adesão dos jovens a estes grupos pode basear-se em inúmeras motivações, entre as quais a integração, a sensação de poder e a promessa de um futuro melhor. “Pertencer a alguma coisa. Sentir que era parte de algo”, relembra ao site Vice Frank Meeink, outrora um jovem skinhead de Illinois, Estados Unidos, e hoje dirigente da organização Life After Hate, que se dedica a reabilitar ex-membros de grupos de ódio no país. “Ser uma pessoa cheia de ódio é, de certa forma, divertido e é uma maneira de libertar qualquer raiva contida”, explica Christian Weissgerbe, em tempos uma das principais figuras da extrema-direita na Turíngia, Alemanha, sobre as razões de ter aderido ao movimento. Também há quem reveja nestes grupos uma fantasia de poder, de se ser alguém diferente de todos os outros, como contou Tony McAller, ex-recrutador skinhead no Canadá. “É como se estivessem a vender a fantasia de que podes ser um herói. Vemos muito disso na extrema-direita [nórdica], com as imagens de vikings”, explicou o ex-recrutador. “É uma jornada distorcida do herói hipermasculino, o que parece ótimo quando não tens muita coisa a acontecer na tua vida”, acrescentou. 

Num momento em que a incerteza da adolescência prevalece, os discursos convictos, autoritários e rígidos apresentam certezas, aliadas a quem as profere, que, não poucas vezes, têm posições de autoridade nas estruturas hierarquizadas do grupo. “Têm um discurso musculado, de poder e rígido que acaba por ser extremamente autoritário e onde os jovens acabam por se querer integrar por sentirem segurança”, explicou o psicólogo Carlos Poiares ao i. “Esses grupos propõem a criação de uma nova ordem social onde esses jovens se sintam incluídos”, referiu ainda. “A adolescência é uma fase de separação das figuras de vínculo, da automatização e a individualização assume um papel fundamental. É o aproximar ao grupo de pares e que tem uma função de criar sentimento de pertença”, complementou Marina Carvalho, psicóloga clínica. 

Se entrar é fácil, sair depois de longos anos pode ser bem mais complicado, com ameaças de retaliação a serem um dos muitos obstáculos. Antes de qualquer mudança de atitudes ou comportamentos, vem a fase da discórdia das práticas do grupo ou a mudança de perspetivas sobre o que defendem. Depois de anos no movimento que chegou a coordenar, Weissgerbe acabou por concluir que, independentemente de o Holocausto ter ou não existido, “prender pessoas em campos de concentração – locais que mesmo os negacionistas mais extremos admitem ter existido – já é suficientemente criminoso”. “Entender isso foi o meu primeiro passo para deixar de negar o Holocausto”, admitiu. 

Há quem tenha dado esse passo por entender que a sua vida não era a que tinha imaginado e que uma reviravolta era necessária, reconhecendo o “outro”, aquele que durante anos tanto odiou sem conhecer. “Em 1993 tinha 19 anos e a vida não era o que eu esperava. [Depois de quatro anos no movimento], não esperava estar a entrar e a sair da prisão”, conta Meeink. “Costumava ter conversas com um colega negro dentro da prisão sobre as nossas namoradas e tínhamos os mesmos sentimentos e emoções, preocupávamo-nos se nos estavam a trair”, acrescentou. 

Quando esses pequenos grandes passos são dados, não são os únicos a terem de ser ultrapassados. Toda vida política, pessoal e profissional tende a girar em torno do movimento, misturando camaradagem com amizade e relações amorosas, ameaçando quem queira sair com o isolamento social. “Perdi a maioria dos meus amigos”, admite Weissgerbe. Saiu com a ajuda da Exit, outra organização que ajuda membros de extrema-direita a abandonar os movimentos, e começou a estudar Filosofia na universidade, tornando-se mais tarde tradutor.

O caso de Heidi Bennesckenstein, escritora de 25 anos criada numa família de extrema-direita, é semelhante. “Muitas pessoas não acreditam que podem voltar à sociedade e serem aceites, ou mesmo receberem ajuda. Tens que começar uma nova vida, o que, obviamente, é muito difícil”, contou. Para o ultrapassar, Bennesckenstein não esteve para meias medidas e mudou-se para um bairro multicultural em Munique, na Alemanha, ainda que garanta que “é preciso muito mais do que simplesmente misturares-te com outras pessoas”. 

E o impacto das retaliações dos movimento sobre os ex-membros não podem ser desvalorizadas. “Se eles me quiserem matar, podem tentar. Pensar demasiado nisso seria paralisante – é assim que funciona a intimidação”, disse Weissgerbe. Ainda que tente não estar sempre olhar por cima do ombro, Bennesckenstein não o consegue evitar. “Recentemente, alguém pintou uma suástica enorme com as palavras ‘Vamos apanhar-te’ no muro da estação de comboios perto da nossa casa [onde vive com o filho de um ano e o marido]”, disse. 

O afastamento e reabilitação de ex-membros estão longe de terem um manual. Além de todo o contexto a envolver a pessoa, depende muito da sua vontade em sair ou não do movimento, de ter dado já esse pequeno grande passo. Para Marina Carvalho, o “afastamento significa que a pessoa que está envolvida nestes grupos mudou os seus comportamentos, o que é extraordinariamente difícil”. Mudança que acaba por ser muito complicada através da estratégia da “transmissão de informação”, acabando por “criar mais resistência”. “Quanto maior e mais firme for a sua crença maior a probabilidade de qualquer tipo de informação contrária ou alternativa criar resistência”, acrescentou. 

Se a abordagem da informação pode trazer mais prejuízos que benefícios, Marina Carvalho prefere uma outra: a das competências. “Os programas que mostram mais resultados focam-se na mudança de atitudes e de crenças face ao papel e pertença a esse grupo e, por outro lado, com a formação de competências” para terem alternativas de vida ao movimento, explicou a profissional. 

Por seu lado, Poiares prefere, não descurando a vertente da reabilitação, mais prevenir que remediar em tempos em que os valores da “democracia, do Estado de direito e liberdade” estão em risco. “Temos de estimular muito a cultura política, que é uma atividade fundamental em qualquer sociedade, e valores base, como a empatia e o respeito pelo outro”, explicou o psicólogo. “A capacidade de se colocarem no lugar do outro”, acrescentou, referindo que assim se consegue aplacar o discurso identitário, racista e xenófobo destes grupos.

Hoje em dia, tornou-se comum chamar à extrema-direita “direita alternativa” (alt right), mas quem viveu por dentro estes movimentos não tem dúvidas que as transformações foram apenas de imagem e abordagem discursiva. “A ‘direita alternativa’ não existe. São só supremacistas brancos que reciclaram o ódio e servem-no de uma forma mais propícia ao consumo humano”, explica King. Uma transformação a que a própria assistiu e até chegou a participar: “Começámos a ouvir ‘parem de rapara cabeça, parem de se tatuar, parem de ser tão facilmente identificáveis, parem de cometer crimes que nos vão trazer atenção negativa’”. E revelou que os líderes do movimento queriam que se disfarçassem para se tornarem “polícias, advogados, médicos”. “Infiltrarmo-nos em diferentes áreas da sociedade e, quando fosse a altura certa, haveria um único objetivo: guerra racial”, explicou. 

Se a King deram orientações sobre como se comportar e vestir, McAleer chegou a ser elogiado pela forma como vestia essa nova roupagem. “Era conhecido por fazer o irracional soar razoável. Podia pegar na ideologia nazi e usar uma linguagem diferente para fazer com que soasse muito razoável”, explicou o ex-recrutador skinhead. “Se vestes fato e gravata e dizes que as pessoas devem ir para a universidade, não se tatuarem, entrarem para o mainstream, faz com que a supremacia branca pareça razoável”, acrescentou. E, em última instância, também parece não ter mudado muito nas linhas narrativas do discurso. “A nova direita é sobre a mesma coisa, mesmo quando não coloca as suas crenças da mesma maneira. Eles recuperam sempre o argumento da geografia e genealogia, que é a política de sangue e solo numa forma diferente”, acrescentou Weissgerbe. 

King não tem dúvidas quando afirma que o avanço da extrema-direita nos Estados Unidos e Europa se deve ao facto da extrema-direita estar a conseguir explorar os medos de milhares de pessoas, canalizando-os para políticas de ódio. “Temos ‘bolsas’ de pessoas no nosso país [EUA] que não são inerentemente racistas ou cheias de ódio, mas cujas vidas não vão muito bem”, explicou a ex-supremacista branca. “Não estão a enriquecer e, na verdade, mal conseguem sobreviver”, afirmou. Um discurso extremista que, segundo King, se limita a distorcer a realidade: “Dizem que refugiados e migrantes são o grande inimigo, não que essas pessoas estão a fugir para salvar as suas vidas”.