Moisés, ou a doçura de uma morna que acabou mal

Moisés, ou a doçura de uma morna que acabou mal


Moisés insiste em ouvir música a altas horas da noite. Sozinho, agarra-se à esfregona a dançar, enquanto no vão das escadas do prédio a vizinhança se organiza, de pijama e vassouras em punho. Da última vez que chamaram a polícia, a coisa ficou feia


Já não há quem aguente tanta morna no bairro. Mas o que há-de fazer um homem solitário com coração de trovador, senão bailar a tristeza? Moisés é um repetente e por demais conhecido na esquadra da polícia, porque os agentes são chamados, noite sim noite não, a apaziguar os ânimos no velhinho prédio da Ameixoeira.

E enquanto o sonhador se agarra à esfregona, dançando na sala ao som de mornas e milongas, cá fora os vizinhos fazem esperas munidos de vassouras. No vão das escadas do prédio, o baile é mesmo outro: o ‘dress code’ é pijama e uns desesperam e perdem a cabeça, enquanto outros suspiram, desanimados, à espera que a polícia chegue. Há dias houve quem se tenha até lembrado de levar bolachas para enganar o estômago e improvisou-se uma espécie de pic-nic ‘after hours’. Assim como assim, ninguém consegue pregar olho em casa por causa da música e enquanto os agentes não chegam sempre se dá duas de conversa, ainda que o grupo – meia dúzia de sonâmbulos acordados –, seja de poucas falas.

“Eu só me chateio porque não me deixam em paz… e é sempre a mesma coisa, que eu faço barulho e isto e aquilo… que eu perturbo, mas a mim também não me perturbam? A baterem-me à porta o tempo todo? Eu não já nem abro, fico a fazer a minha vida”, explica Moisés, a transpirar indignação, ao tribunal. A revolta é grande: o homem das mornas confessa que não suporta a vizinhança que, por sua vez, não o suporta a ele e às mornas. E, da última vez que os polícias lhe foram bater à porta, pouco depois da uma da manhã e a mando dos vizinhos, a coisa ficou feia. “Antes de os senhores agentes chegarem, já me tinham vindo tocar à campainha umas dez vezes e eu claro que não abri a porta, porque já sabia o que era. Depois pararam e vieram ao murro e ao pontapé e eu também não fiz nada”, queixa-se Moisés.

Com o sangue já demasiado à flor da pele, assim que ouviu a campainha mais uma vez, baixou finalmente o gira-discos, caminhou a passo pesado e rápido até à porta e entrou na conversa a matar. “O que é que foi, ó filhos de uma grande puta?”, atirou. Os dois polícias tentaram acalmá-lo, mas Moisés mais parecia uma bomba nuclear prestes a explodir. “É que eu estou farto desta merda, isto é só palhaços e filhos da puta”; “e vocês, seus ladrões de merda, andam feitos com eles”; “vão-se foder é todos”. Com uma receção assim, os agentes não tiveram outro remédio senão levá-lo para a esquadra, algemado. “Para se acalmar”, explicou ao juiz o agente Brites, que se diz profundamente ofendido com o chorrilho de injúrias.

Mas Moisés insiste na tese de que os vizinhos organizaram um complô contra ele. “Eu vivo ali há dois anos e há dois anos que sou atormentado. Nunca agredi ninguém, digo-lhe já, senhor doutor. Eu meto-me na minha casinha e ali estou entretido, não ando nem com conversas”. O discurso flui muito depressa, entre episódios melodramáticos e teses múltiplas de conspiração. Moisés diz-se vítima das intrigas da vizinhança, de escárnio por parte das crianças e até se queixa de ter sido atacado pelo dois caniches do vizinho de cima. “E como não têm mais nada com que pegar, pegam com a música. Então eu agora não posso ouvir música dentro da minha casa?”, pergunta, indignado.

“Mas o senhor tem de perceber que não pode fazer isso de forma tão exuberante à uma da manhã, está a compreender?”, tenta explicar o juiz. Mas Moisés é teimoso que nem uma mula e, contra tudo e contra todos, bate o pé. Jura que é tudo mentira e fruto da inveja da vizinhança. Verdade ou não, o certo é que acabou condenado por dois crimes de injúria agravada, por ter insultado os polícias. Levou uma multa de 500 euros e ainda vai de pagar uma indemnização de 100 euros a cada agente. Há desgostos que nem uma milonga é capaz de curar.