Otavio Frias Filho. Morreu o Quixote do jornalismo brasileiro

Otavio Frias Filho. Morreu o Quixote do jornalismo brasileiro


Diretor da “Folha de São Paulo” desde 1984, o jornalista e escritor que liderou a maior renovação das últimas décadas na imprensa brasileira morreu na terça-feira, aos 61 anos


Morreu o mais descontente dos jornalistas e um dos mais inconformados com a morte anunciada desta profissão. Um homem que soube fazer da frustração diária um ímpeto, sem ficar desmoralizado com tudo o que fica sempre pelo caminho, o cadastro que deixam as inevitáveis falhas. Otavio Frias Filho tinha uma relação duradoura com a urgência. Compreendia o jornalismo, o seu alcance e os tantos males de que padece – de resto, “jornalismo, o mal necessário” foi o sugestivo título de uma das suas últimas colunas mensais. E mesmo assim foi fiel à máxima que ele mesmo fixara, em 1986, num texto sobre o projeto editorial da “Folha de São Paulo”: “É preciso não se acomodar.”

O cancro no pâncreas deu a Frias Filho menos de um ano depois de ter sido diagnosticado, em setembro de 2017. Depois de cinco ciclos de quimioterapia, com as dores a manifestarem-se crescentemente, o seu amigo Marcelo Coelho conta que se sentia bem, “com o equilíbrio e o realismo de sempre”. Teve ainda tempo de terminar um livro de contos infantis: “A Vida é Sonho e Outras Histórias para Pensar”. A meio ficou o livro que andava há anos a escrever sobre o pai.

Na terça-feira, desapareceu. Tinha 61 anos, e os últimos 34 esteve ao comando da “Folha”, e para além de deixar o jornal como o diário mais lido em formato digital no Brasil, e o terceiro no que toca à circulação impressa (dados do Instituto Verificador de Circulação referentes a 2017), sob a sua liderança, a renovação daquele título foi um passo decisivo para a modernização da imprensa no país. 

Chegou à “Folha” em 1975, quando atingiu a maioridade. O jornal fora comprado pelo pai, o empresário Octavio Frias de Oliveira, em 1962, dois anos após o processo de fusão dos três títulos que lhe deram origem: “Folha da Noite” (lançado em 1921), “Folha da Manhã” (1925) e “Folha da Tarde” (1949). E foi enquanto adjunto do então diretor Cláudio Abramo que Otavio se iniciou na profissão, enquanto fazia o curso em Direito, seguido de uma pós-graduação em Ciências Sociais. Acabou por abdicar das suas pretensões intelectuais, de uma carreira académica ou até, eventualmente, na política, subindo a diretor da redação em 1984, com apenas 26 anos. 

O poeta Régis Bonvicino, que conheceu o jornalista nesses verdes anos, lembra o embate com “um cara inteligentíssimo” que em breve viria a tornar-se uma das figuras centrais da vida político-cultural brasileira: “Desde jovem, via em Otavio uma figura conflituada e trágica, uma figura arquetípica de alguma tragédia grega não escrita”, lembra Bonvicino. “Ele era uma figura muitas vezes torturada, que parecia carregar a pedra de Sísifo em seus ombros. Era metralhado por críticas de todos os lados, muitas INJUSTAS.”

Sobre o período de renovação da “Folha” e o conjunto de iniciativas em que este foi pioneiro na década de 80, Bonvicino vinca que se tratou do “único projeto renovador e democrático do jornalismo brasileiro nos últimos 40 anos. Projeto que influenciou toda a imprensa, escrita, televisual e até radiofônica. Mérito de Otavio, de sua sensibilidade e dedicação”. O jornal quis ser um espaço aberto, sendo um terreno de confronto de visões contrastantes, com colunistas representando diferentes correntes de opinião, e, ao mesmo tempo, assumindo uma função de vigilância e crítica, fazendo jus à ideia do jornalismo como contrapoder. 

Depois de o título se ter deixado colar às ações de repressão no início dos anos 70, o esforço de demarcação do jornal passou por dar voz aos opositores da ditadura militar. A distância que passou a observar no escrutínio dos sucessivos governos deu substância ao compromisso de independência da “Folha”, mas o agravamento das tensões políticas nos últimos anos dificultou em muito o papel que o próprio diretor se outorgara, o de “moderador de tensões”. E isto porque, se esteve firme na sua ação crítica diante dos executivos de Lula da Silva e de Dilma Rousseff, na contenda entre os apoiantes da atual solução de governo e aqueles que viram no impeachment de Dilma um golpe de Estado, Otavio foi um claro defensor da manobra que permitiu ao executivo de Temer, com muita corrupção à mistura, virar do avesso muitas das mais emblemáticas medidas da governação PT.

Isto não apaga as tantas medidas que fizeram de Frias Filho um inovador em termos de jornalismo. E Bonvicino sublinha que essa figura – a do inovador – é coisa raríssima no Brasil. Entre as suas iniciativas pioneiras na década de 80 destacam-se a criação de um livro de estilo, o “Manual da Redação” – publicado pela primeira vez em 1984 e regularmente atualizado desde então -, e a nomeação de um provedor do leitor, em 1987, a par da rubrica “Erramos”, num esforço para assegurar uma constante autocrítica e controlo da qualidade editorial. E Otavio aproveitou o discurso da cerimónia dos 90 anos do jornal, em fevereiro de 2011, para destacar a importância do leitor no crescimento da “Folha”, afirmando que isso “jamais teria acontecido sem aquele que é origem e destinatário de tudo, aquele a quem o Sr. Frias, o criador da ‘Folha’ moderna, chamava de Sua Excelência, o leitor”.

Alguns anos antes, Frias Filho tinha expressado aquele que pode ser encarado como o seu maior legado, ao entender que, se pretende “municiar os leitores de ferramentas para um exercício mais consciente da cidadania”, o jornalismo deve reconhecer que “existem muitas maneiras de relatar um fato, inúmeras interpretações a seu respeito”. E se não há “nenhum critério seguro para definir qual delas é a melhor”, então “o melhor serviço prestado pelo jornalismo é divulgar a riqueza desse contraditório”. 

Pouco dado a afetos, um personagem tantas vezes descrito como sisudo, numa entrevista à revista “Playboy”, em 1988, Otavio entrou num registo mais íntimo, confessando: “Acho que sou uma pessoa infeliz, no sentido em que estou sempre descontente com o que já fiz; estou descontente com o que eu tinha que fazer hoje. É difícil aplicar a ideia da felicidade no meu caso, porque me sinto muito insatisfeito com as coisas e comigo mesmo.”

Na sua vida adulta não só não professou nenhum tipo de crença religiosa, como resistiu também à praga das emoções que tem visto o jornalismo abandonar a sua frieza para aderir às comunidades sentimentais e turbulentas que hoje o cercam e asfixiam. Sobre as redes sociais, e as empresas gigantescas como o Google e o Facebook, que hoje ditam a ordem de relevância de todos os conteúdos, ele disse que o jornalismo era, para elas, uma atividade irrelevante, “seja porque propicia receitas comparativamente irrisórias, seja porque o exercício de independência editorial gera atritos com governos, especialmente os autoritários, atritos que essas empresas se apressam a evitar. Seu comportamento tem sido quase sempre de docilidade em relação a autocracias como a chinesa e a russa”, escreveu, no início deste ano, no texto “O que é falso sobre fake news”, publicado na “Revista USP”.

Até ao fim, Otavio Frias Filho defendeu não apenas com as suas unhas e dentes o jornalismo, mas com tantas mais quantas a sua fortuna pudesse pôr ao serviço desta profissão, reforçando que “apesar das suas severas limitações, esta é uma forma legítima de conhecimento sobre o nível mais imediato da realidade”, e lembrou também que não cabe ao jornalismo suprimir todos os vícios que se detetam na “respiração mental da sociedade”, até porque, “em última análise, o mais eficiente anteparo contra as fake news – a melhor barreira de proteção da veracidade – continua sendo a educação básica de qualidade, apta a estimular o discernimento na escolha das leituras e um saudável ceticismo na forma de absorvê-las”.

Além do livro sobre o pai, cuja memória e orientação sempre valorizou, a direção da “Folha” significou um sacrifício das atividades para as quais se sentia mais vocacionado, desde logo a de dramaturgo – e ainda viu encenadas algumas das peças que publicou nos anos 90, incluindo “Típico Romântico”, “Rancor” ou “Don Juan” -, mas não soube recusar o convite do pai para se tornar editor do jornal, temendo que “se não aceitasse, ficaria o resto da vida me acusando de ter sido omisso e covarde”.