Em junho de 2004 houve eleições europeias em Portugal. Os dois maiores partidos da direita (Partido Social Democrata e Partido Popular) concorreram coligados, com João de Deus Pinheiro como cabeça-de-lista. Na oposição, o Partido Socialista escolheu, contra todas as expetativas, António Sousa Franco. O ex-ministro das Finanças do primeiro governo de António Guterres era católico e conservador e chegou mesmo a ser líder do PSD.
Na última semana da campanha eleitoral, o candidato socialista tinha pela frente um dos momentos altos da volta pelo país, algo como um clássico em cada disputa eleitoral: a ida à lota de Matosinhos. A cidade do distrito do Porto sempre foi um “terreno minado” para o PS, marcado pela desunião dos socialistas. Na altura, as forças dividiam-se entre os apoiantes de Narciso Miranda, na altura presidente da Câmara de Matosinhos, e de Manuel Seabra, então líder da concelhia socialista do Porto. Entre os dois havia uma guerra aberta.
Na véspera da visita ao mercado já se notava a tensão na comitiva socialista e a expetativa para o que viria a acontecer era grande. Sousa Franco já revelava sinais de cansaço, depois de três meses na estrada em campanha. Mas ninguém estava verdadeiramente preparado para o “cenário dantesco” que encontraram.
Na manhã do dia 9 de junho, o candidato socialista às europeias descia – em jejum e sem o habitual casaco e gravata, só de camisa azul de manga curta – do quarto do hotel. Juntava-se a António Costa, José Sócrates, José António Vieira da Silva e José Lello, rumo à lota de Matosinhos, ponto de romaria obrigatório nas campanhas socialistas. Mas Sousa Franco não esteve mais de 15 a 20 minutos no local.
O caos instalou-se e a visita tornou-se num momento de absoluta loucura com as respetivas “claques” dos dois dirigentes locais envolvidas em confrontos. Houve insultos e agressões, e nada de campanha eleitoral: Sousa Franco nem conseguiu falar com as pessoas. Em passo quase de corrida para fugir da confusão, o candidato socialista seguia agarrado de um lado por Narciso e do outro por Seabra. Já com a camisa retorcida e a fralda de fora, Sousa Franco estava rodeado de hooligans locais, entre empurrões e insultos.
Minutos depois terminava a visita, deixando para trás caixas de peixe desfeitas e bandeiras do PS, que tinham sido usadas como arma, pelo chão. “Sinto-me bem. É um bom exercício físico, mas sobretudo um exercício humano e emocional. É isso é que conta”, respondeu Sousa Franco aos jornalistas, quando questionado sobre os incidentes.
Depois disso, o candidato entrou no carro e partiu. O objetivo era regressar ao hotel para tomar banho e mudar de roupa e seguir com a mulher, Matilde Sousa Franco, para a gravação de um tempo de antena televisivo. Mas Sousa Franco não conseguiu cumprir.
Ainda não eram dez horas quando o carro que transportava o candidato socialista encostou junto à Avenida da República, um quilómetro depois da lota e cinco minutos depois de ter partido. Sousa Franco estava inanimado e teve de ser assistido pelo INEM. Acabou por morrer a caminho do Hospital Pedro Hispano, vítima de um ataque cardíaco fulminante. A confusão foi fatal para um coração que já dava sinais de fraqueza aos 61 anos.
Na lota ficou António Costa, então número dois da lista para as europeias, que ainda foi levantado em braços quando tentou acalmar os ânimos. O socialista afirmou na altura que o PS era “das pessoas” e que ninguém se podia “sentir ameaçado” pelas pessoas de Matosinhos. Não sabia ainda que Sousa Franco tinha morrido.
Depois da notícia, a classe política ficou em choque e a campanha eleitoral acabou. O que também acabou a partir daí foram as ações de campanha na lota de Matosinhos
Com a morte de Sousa Franco, António Costa passou a número um da lista e, no domingo a seguir ao trágico dia no mercado, o PS venceu de forma clara as europeias.
PS investiga
O Partido Socialista abriu um inquérito sobre o caso e, segundo o relatório, António Parada, à época coordenador do PS/Matosinhos, foi um dos principais responsáveis pela confusão na lota.
“O coordenador da secção do PS de Matosinhos, António Parada, em atitude de envolvimento impetuoso, de imediato pretendeu afastar o Professor Sousa Franco de Narciso Miranda, dado que aquele se encontrava agarrado a este para melhor poder ser conduzido. Desta ação resultou uma quase queda de Narciso Miranda e um acentuado desequilíbrio do Professor Sousa Franco, circunstância que contribuiu para o rápido aumento da tensão geral, para uma tentativa de agressão por parte de um dos presentes, usando uma haste de bandeira num movimento sustado por outro mas que, potencialmente, poderia ter atingido qualquer das figuras presentes”, refere o documento.
A comissão de inquérito apurou ainda que as peixeiras estavam “enquadradas” para expressarem “hostilidade a Narciso Miranda”, com o incentivo de António Parada. “Vários depoimentos ouvidos pela comissão de inquérito concordaram que essa hostilidade foi especialmente encorajada ou até orquestrada pelo principal agente coordenador da ação da visita à lota, o presidente da secção de Matosinhos do PS, António Parada, que aliás trabalha para uma empresa de segurança que presta serviços à lota de Matosinhos”, lê-se no relatório.
Narciso Miranda também foi censurado pela comissão por, ao tornar-se o “acompanhante privilegiado” de Sousa Franco, “nada ter contribuído para o apaziguamento das rivalidades latentes”.
A comissão salientou que nem Narciso Miranda nem Manuel Seabra tinham condições para ser candidatos nas autárquicas seguintes à Câmara de Matosinhos.
Quanto a António Parada, foi proposto que fosse suspenso de militante do PS e houve até quem falasse de uma possível expulsão. Mas isso acabou por não acontecer. Parada deixou o PS mais tarde, por vontade própria.